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Ontem o Público tinha uma entrevista com Raquel Machaqueiro, a senhora que organizou uma formação "histórias difíceis, legados difíceis", na Fundação Gulbenkian, que pretenderia ensinar os professores de história a ensinar melhor os alunos em matérias relacionadas com a escravidão.
Como logo o título que o Público escolheu para a entrevista (que chamou à primeira página do jornal) me parecia uma tolice "A escravização de pessoas financiou toda a empresa dos Descobrimentos", fui ler a entrevista para perceber se eram os jornalistas do Público que eram tolos, ou se era Raquel Machaqueiro que marchava disciplinadamente no exército woke que tenta contrabandear coisas destas como ciência.
Sem descartar a hipótese da jornalista Ana Dias Cordeiro ganhar em estudar um bocadinho os assuntos sobre os quais entrevista pessoas, a conclusão da leitura da entrevista é mesmo que Raquel Machaqueiro parece alinhar, disciplinadamente, no discurso woke que é esmagadoramente dominante no meio académico onde trabalha (nos Estados Unidos, os comunistas mais ferrenhos procuravam ir conhecer e experimentar o sistema socialista, estes modernos wokes, que são vagamente anti-capitalistas, preferem ser anti-capitalistas nas universidades dos EUA, para conhecer a fundo os malefícios do sistema capitalista).
"Há muita gente a dizer que os africanos já tinham escravatura e que nós só usámos aquilo que já existia. É verdade e não é. ... A escravatura que se exercia no continente africano não era baseada em critérios raciais e passou a sê-lo. ... Essa coisa das raças é uma invenção nossa, do Ocidente, que serve precisamente para criar categorias e uma hierarquização. Os negros são postos na base dessa hierarquia para justificar a sua escravização".
A quantidade de afirmações pouco rigorosas (para ser caridoso) nesta pequena citação é assombrosa.
Passemos por cima da evidente contradição entre dizer que a escravidão já existia e era praticada em África e dizer que as raças são uma invenção para hierarquizar grupos sociais e justificar essa escravização, feita por pessoas da mesma raça.
Por uma grande coincidência li isto: "Somos (um dos das Ilhas lhe tornou)/ estrangeiros na terra, Lei e nação;/ que os próprios são aqueles que criou/ a Natura, sem Lei e sem Razão."
Sou completamente ignorante em tudo o que diga respeito a Camões, mas resolvi ver se aprendo alguma coisa, de maneira que enquanto não me chega à mão o livro do meu sobrinho (cuja segunda edição, para espanto meu, tenho ideia de que poderá estar em preparação, não confirmei), comprei na feira do livro, e estou a ler, uma antologia organizada e anotada por Frederico Lourenço que, sobre a passagem que citei acima, esclarece: "Nesta estrofe, os interlocutores de Vasco da Gama assumem-se como não autóctones naquela região de África e, ao descreverem aqueles a quem cabe essa identidade, parecem querer justificar a sua escravização: "Que os próprios são aqueles que criou/ a Natura, sem Lei, nem Razão.".
Camões está a escrever na segunda metade do século XVI sobre acontecimentos passados uns cinquenta anos antes, mais coisa, menos coisa, não tenho a certeza de que a interpretação de Frederico Lourenço seja a mais adequada mas, ainda assim, é claro que Camões fala do comércio de escravos longamente estabelecido em África pelos árabes, com base no Índico e assente, parcialmente, na raça (embora a justificação seja "sem lei nem razão"), quando o comércio transatlântico ainda estava na sua fase inicial, a do ciclo da Guiné.
Para se perceber bem a dimensão da distorção feita por Raquel Machaqueiro (e a tolice do título da entrevista), Camões está a escrever os Lusíadas uns vinte ou trinta anos depois da chegada dos primeiros escravos ao Brasil, que acontece uns quarenta anos depois de Vasco da Gama chegar à Índia, ou seja, a ser verdade que é o comércio de escravos que financia todos os descobrimentos, deve ser o único exemplo na história em que o financiamento aparece depois do investimento.
Como disse alguém, ajuizadamente, puro terraplanismo.
De resto, até cem anos depois de Camões morrer, o comércio transatlântico de escravos é relativamente contido, é partir de meados do século XVII que esse comércio cresce enormemente, tornando completamente absurda a tese de que é o comércio de escravos que financia os descobrimentos, ocorridos pelo menos cento e cinquenta anos antes.
Poder-se-ia pensar que é apenas ignorância, afinal Raquel Machaqueiro é uma antropóloga com um doutoramento em mercados de carbono (fui tentar perceber quem era, ouvi partes de uma conferência de há dez anos, no Brasil, e os comentários sobre micro-crédito são suficientes para saber que é uma pessoa que fala sem medo de assuntos que desconhece em absoluto), não seria de esperar que fosse especialmente rigorosa em história.
A única questão relevante está em saber como raio a Fundação Gulbenkian se envolve nisto, sem garantir o mínimo dos mínimos de segurança académica no que promove.
Mas esta parte da entrevista demonstra bem que não é apenas ignorância, é mesmo um modo de vida.
Ignorância é desconhecer este referência bibliográfica, ou mesmo a tese de Nuno Palma de que é este facto que dá origem a uma maldição de recursos que afecta Portugal, atirando-o de um dos países mais ricos do mundo para um dos mais pobres da Europa em cinquenta anos.
O que é feito nesta referência é pura desonestidade, é impossível que alguém que faz referência a este estudo, ao ponto de saber exactamente quem são os seus autores, não saiba que grande parte do que está em causa é o ouro do Brasil e de que isto se verifica num tempo relativamente curto, tendo uma relação marginal com o comércio de escravos.
Nuno Palma até tem artigos que avaliam o efeito económico da escravidão nos países que receberam mais escravos, usando dados do Brasil e dos estados do Sul dos EUA, que Raquel Machaqueiro nunca usará, evidentemente, porque as suas conclusões contrariam as ideias de Raquel Machaqueiro, não havendo qualquer evidência de que ter recebido esses milhões de escravos se traduziu numa vantagem económica que persiste até hoje.
É assim o mundo woke, tanto se escreve sobre os mecanismos económicos de sustentabilidade, nomeadamente o mercado de carbono, como dez anos depois se escreve sobre escravidão, é o que estiver a dar em cada momento, sempre, sempre com o mesmo princípio: impedir, por todos os meios o catastrófico resultado que se pode definir pelo título do artigo "A beautiful theory, killed by a nasty, ugly little fact”.
Li aquela entrevista de forma cruzada, mas deu para perceber que a senhora doutora era uma espertalhaça, falando do que não sabe, atirando números para o ar e a olhómetro, sem qualquer aderência à realidade, confessando que não os havia contabilizado e que não sabe como fazê-lo.
Lamento que o Público se deixe cada vez mais colonizar por estas aves de arribação. E além disso, a senhora doutora é feiosa...
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A Europa inteira tem este problema comum, que não ...
A lei foi escrita, essencialmente, por Almeida San...
Exactamente. Este país tem aturado tanta aberração...
"As elites globalistas portuguesas tal como os seu...
Caro Henrique,Normalmente estou de acordo consigo....