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Pensei em escrever um post sobre as trapalhadas que o governo inventou em matéria de alojamento local, depois lembrei-me que o mentor era António Costa, portanto, voz grossa e decisão inexistente será o padrão.
Para já empurrou o problema para cima das autarquias (é a forma mais eficiente de dizer que não recuou ao mesmo tempo que recua em toda a linha e, de caminho, com isto tudo, destroi a confiança dos agentes económicos no Estado) e continua sem explicar onde estão os dados e a informação que justificam um ataque descabelado contra um sector económico de sucesso e com um grande efeito multiplicador.
Estas trapalhadas, de que se alimenta António Costa, são possíveis porque somos uns grandes trapalhões na discussão de políticas públicas.
Uma senhora faz um artigo interessante e informativo sobre lares para velhos, um problema que está mais que identificado e de gestão muito difícil, entre outras razões por envolver muito dinheiro e muita gente sem capacidade de intervenção social e sem dinheiro (e que representam muito poucos votos, boa parte deles manipuláveis facilmente).
Sobre isso eu faço um post em que sugiro: 1) pagamento de um cheque lar directamente aos utilizadores, de maneira a permitir uma escolha mais alargada por parte dos utilizadores (o que aumenta a probabilidade de aparecerem novos lares, na medida em que o acesso ao financiamento depende mais da capacidade de responder aos utilizadores que do domínio de mecanismos de decisão pública); 2) Reforço da transparência na gestão dos lares (a proposta não é minha, mas da senhora que escreveu o artigo, limito-me a subscrevê-la), quer pela publicitação dos relatórios de fisclização, quer pela existência de um modelo de visitas aos utilizadores, por parte das pessoas que lhes são próximas, aumentando o escrutínio social sobre a gestão dos lares; 3) Simplificação das exigências para abertura e funcionamento dos lares, assente mais no escrutínio e fiscalização posterior que no cumprimento prévio de condições formais, consideradas essenciais por alguém que não os utilizadores e gestores.
Rapidamente, nos comentários, se esquece a realidade dos lares que existe, e pretende-se transformar a discussão num ataque à iniciativa privada, contrapondo uma defesa da intervenção directa do Estado.
Um apresenta um estudo que se limita a comparar diferentes modelos de propriedade privada, concluindo que os incentivos das "private equitity" geram um modelo menos eficiente que o de outros modelos privados, apresentando-o como um estudo que demonstra que os privados não servem para gerir serviços de saúde e conexos.
Outra fala em casos particulares de lares privados com maus resultados, esquecendo os inúmeros casos de lares públicos com maus resultados.
Claro que com um povo assim, que se entretém a discutir o sexo dos anjos, tendo pouco apreço pela informação factual e a realidade, qualquer espertalhão, como António Costa, consegue andar há semanas num ataque cerrado a um sector económico de sucesso e com um forte efeito multiplicador, com o argumento completamente delirante de que se o alojamento local desaparecer, por milagre, o preço das rendas baixa (Margarida Bentes Penedo tem a metáfora mais justa, António Costa anda a vender a ideia de que se proibirmos os Ferrari, o preço dos FIAT baixa).
Quando rebentar um problema mais ou menos generalizado nos lares (ou seja, quando as redacções dos jornais começarem a ir fazer reportagem para os lares de velhos, em vez de andar atrás das tendas que o governo semeia pelo país), António Costa vai repetir a dose, dizendo que a melhor solução para diminuir os preços dos lares e haver lugares para todos os velhos do país num lar de jeito será acabar com os hotéis: proibindo-os sem proibir, como no alojamento local (basta criar instabilidade suficiente com licenças para hotéis que são validadas todos os cinco anos) os seus donos irão reconverter os hotéis em lares por causa de benefícios fiscais de que iriam beneficiar, se tivessem os lucros que teriam como hotéis.
A forma como tratamos as pessoas mais velhas, sobretudo a partir do momento em que deixam de ser totalmente autónomos, é um problema generalizado em todo o mundo e muito difícil de resolver, entre outras razões, porque é caro e os principais destinatários, os velhos e sobretudo os velhos que dependem de terceiros, têm muito pouca capacidade reivindicativa.
Ao contrário do que se passa na infância, em que os miúdos não têm capacidade reivindicativa, mas as famílias desempenham razoavelmente esse papel, na velhice nem essa capacidade reivindicativa por procuração é generalizada e eficaz.
Este artigo do Observador é bastante informativo, embora me pareça que algumas soluções são menos interessantes que o que poderíamos garantir com outro tipo de soluções.
Comecemos na base: o custo dos lares legais (já lá vamos aos ilegais), de acordo com o artigo, anda entre os 900 e 3000 euros (não verifiquei os dados, estou a raciocinar partindo de premissas que não verifiquei) e o valor da reforma média em Portugal não chega aos 550 euros.
A mera verificação destes grandes valores agregados demonstra a razão pela qual há tantos lares ilegais que, como diz o artigo, passam a vida a fechar e abrir: há um evidente desfasamento entre o valor necessário para tratar de um velho com dependências e o dinheiro que ele tem disponível (em termos médios, como de costume, os ricos têm um tipo de problemas, os pobres têm todo o tipo de problemas).
A opção do Estado tem sido baseada em parcerias publico privadas (eu sei que estou a usar o conceito imprecisamente) ou contratos de associação (eu sei que estou a usar o conceito de forma errada), isto é, há umas entidades privadas que recebem velhos e dinheiro do Estado (e de outras proveniências, incluindo dos utilizadores desses serviços) para tratar deles.
Complementarmente o Estado trata de fiscalizar estas entidades através de um dos sectores do Estado mais ineficientes, burocráticos e avessos ao escrutínio, a Segurança Social, sendo muito opacos os resultados dessa fiscalização (a sugestão, do artigo, de que todos os relatórios de inspecção a lares sejam públicos parece-me muito boa).
Por outro lado (um aspecto do artigo em que nunca tinha pensado mas à partida faz todo o sentido para mim), as visitas aos velhos são fortemente controladas e condicionadas pelas instituições que as recebem, o que limita fortemente quer a relação dos velhos com os que lhes são próximos, quer (e esse é o aspecto em que nunca tinha pensado) a possibilidade destas visitas funcionarem como um controlo social sobre o que se passa no lar e a forma como são tratadas as pessoas que lá vivem.
E aqui chego ao que queria dizer com este post: não valerá a pena discutir a possibilidade de o Estado deixar de financiar directamente as instituições que recebem as pessoas e passar a atribuir um cheque-lar (ponham as condições de recurso que quiserem, não faz sentido financiar quem tem recursos controláveis por si, o que é diferente da família ter recursos e nos pormos a discutir o dever moral da família tratar os seus velhos, eu acho que tem, mas, com a minha idade, estou a defender os meus interesses imediatos, talvez eu não esteja a ser objectivo), ao mesmo tempo que reforça os mecanismos de transparência sobre a gestão do lar (relatórios de fiscalização públicos, apreciação de utilizadores e família, etc.) e etc.?
E, já agora, que tal diminuir as exigências formais para a constituição de um lar e permitir que aumente a concorrência no sector, assente em regras simples e eficazes e na avaliação dos utilizadores?
Se a coisa corresse bem, até é bem possível que a remuneração e capacidade de atracção dos melhores aumentasse, resolvendo um problema generalizado dos lares, a pouca qualificação de grande parte do seu pessoal.
Sobre as razões gerais pelas quais a medida do IVA zero é, em si mesma, uma má solução, escuso de escrever, várias pessoas têm falado ou escrito sobre isso com mais propriedade que eu, como por exemplo, o Filipe Charters de Azevedo neste artigo de que cito um parágrafo cristalino: "Durante a pandemia, um amigo ofereceu-se para fazer compras para uma vizinha idosa. Esta senhora recusou a ajuda, dizendo que precisava fazer as compras sozinha porque não sabia o que estava em promoção. A vizinha comprava o que estava mais barato, substituindo batatas por cenouras, porco por frango ou peixe congelado, e assim por diante. Esta sábia senhora percebeu o óbvio: não há uma lista de compras fixa, mas um orçamento a ser gerido com base nos preços marcados nas prateleiras".
Outra das pessoas que mais têm "protestado" com esta medida populista e errada tem sido Luis Aguiar-Conraria, que foi quem me chamou a atenção para um aspecto que me deveria ter saltado à vista logo à primeira, o que não aconteceu (em minha defesa tenho a declarar que não ligo muito ao que este governo diz porque sei que raramente o que diz é para levar muito a sério).
É verdade que já me tinha rido com a discriminação entre os beneficiados feijão frade e vermelho, em relação aos preteridos feijão branco, manteiga, catarino, luar, etc., tendo até comentado com a minha mulher que aparentemente toda a gente é a favor da conservação da biodiversidade agro-pecuária e das pequenas produções que garantem a diversidade paisagística, mas na primeira oportunidade alteram administrativamente o preço relativo a favor do feijão encarnado em relação ao chícharo, só porque é preciso inventar um número político qualquer.
Concluímos que aparentemente há hoje muito mais gente a favor de ervilhas com ovos escalfados que de favas com chouriço.
Foi o Luís que me chamou a atenção para a discriminação da carne de cabrito e borrego em relação ao frango, porco e vaca.
Naturalmente, sendo a negociação com a CAP, que representa a produção agropecuária comercial cuja competitividade depende essencialmente do preço, o resultado final corresponde ao alinhamento de interesses do governo - dizer que mantém os preços baixos -, da produção industrial - a que compete pelo preço -, e da grande distribuição - a que vive do preço.
Tudo o resto, as externalidades ambientais e sociais positivas, a defesa das pequenas produções, da biodiversidade, da gestão do fogo e da paisagem, tudo o resto deixou de ter a menor relevância porque o governo, boa parte da comunicação social e as oposições (incluindo a oposição liberal que se deixou enredar nesta discussão sem defender de forma clara que a manipulação administrativa de preços relativos é errada e ineficiente) resolveram cavalgar o populismo inerente aos períodos de inflação alta.
Baixar impostos sobre o consumo para controlar a inflação já é uma política errada, mas tem ao menos as virtudes inerentes a uma baixa de impostos (nesse caso não deveria ser temporária), agora baixar impostos sobre consumo com base em escolhas do governo que deixam de fora a alimentação infantil e privilegiando o melão face aos pêssegos, ameixas, figos ou uvas, peço imensa desculpa, mas para além de ineficiente, para além de privilegiar os modos de produção com maiores externalidades negativas e menos externalidades positivas, parece-me também bastante estúpido.
Confesso que só não senti uma grande desilusão quando ontem ouvi Rodrigo Saraiva, da Iniciativa Liberal, a comentar o número do IVA 0% no termos em que o fez, porque já não tinha grandes ilusões.
Parecer-me-ia que qualquer liberal saberia que preços são meros indicadores, são como termómetros que medem a temperatura, mas não afectam a infecção.
Bem vi que Rodrigo Saraiva ainda ressalvou que a proposta no Orçamento de Estado tinha sido no sentido de baixar o IVA em toda a alimentação, e não em produtos escolhidos, o que apesar de tudo seria menos mal, mas continua a ser uma proposta no sentido de propor que os termómetros meçam temperaturas mais baixas para resolver a febre do doente.
Se há aumento de preço, ou seja, se o termómetro mostra temperaturas mais altas, o que é preciso é tratar os sintomas no imediato, ou seja, apoiar os que não o podem suportar (tomar uma aspirina) e ir à procura da melhor terapeutica para a infecção.
Mudar para termómetros que estão calibrados para dar temperaturas mais baixas não é uma grande ideia, apenas torna invisíveis os sinais da infecção, não altera o curso da infecção e dificulta a decisão de tomar as aspirinas no momento certo, contribuindo para que o doente mantenha o incómodo da febre e a infecção prossiga o seu curso, de forma subreptícia.
Do que estaria à espera de uma oposição solidamente liberal é que se dissesse, de forma clara, que não é manipulando preços, seja pelo seu controlo, seja pela fiscalidade que se lhe aplica, que vamos gerir adequadamente a inflação, a solução tem de estar do lado do rendimento.
No caso dos que não conseguem mesmo suportar o aumento de preços, o Estado (ou a filantropia, mas já nem vou tão longe na receita liberal) que apoie directamente os que têm rendimentos mais baixos com apoios directos, impostos negativos, o que quiserem.
Nos outros, concentremos em aumentar-lhes o rendimento, seja pela via fiscal (do lado dos factores de produção, baixando impostos sobre o trabalho e o capital, e não baixando impostos sobre o consumo, mas neste ponto há mais margem para discussão), seja pelo aumento da eficiência da economia, o que é incompatível com políticas de condicionamento de preço.
A Iniciativa Liberal perdeu uma grande oportunidade para demonstrar que não está obcecada com a pequena política e com a lógica populista de seguir o que lhe parece ser o sentimento popular imediato.
Já contei esta história que não posso confirmar, mas de que gosto imenso mesmo que seja falsa (e, como diz Amparo em tudo sobre mi madre "porque una es más auténtica cuanto más se parece a lo que ha soñado de sí misma").
Em pleno PREC, quando toda a gente era revolucionária e anti-capitalista, Ângelo Correia discursava num comício do PPD, em Aveiro, malhando forte e feio nos intermediários por causa do aumento do custo de vida. Porque os intermediários assim, porque os intermediários assado ia ele discursando até que alguém do partido local lhe põe um papel à frente "a sala está cheia de comerciantes". Ângelo Correia não pára nem dois segundos e continua o discurso: "isto é o que dizem os comunistas dos comerciantes, nós não, nós isto e aquilo, etc."
Serve-me esta história para ilustrar como o ódio popular ao intermediário, a crença generalizada de que o comerciante engana os seus clientes (e raramente há um Arquimedes à mão para encontrar a melhor maneira de verificar se a coroa é mesmo de ouro ou não), é antiga e generalizada.
Mas o ódio de estimação que grande parte da esquerda portuguesa dedica ao Pingo Doce é uma coisa um bocado diferente, está um nível acima desta ideia de que os comerciantes são todos ladrões.
Com Pedro Soares dos Santos a chamar mentiroso ao ministro da economia e a ter a mesma opinião que eu sobre o indecoroso uso da ASAE para obter ganhos políticos imediatos, claro que voltou o tiro ao Pingo Doce.
Uma das minhas irmãs pergunta-se de onde virá este ódio, uma das minhas amigas repete, pela enésima vez, a mentira de que o Pingo Doce foge aos impostos e tem a sede num paraíso fiscal e um senhor que sabe muito sugere que se compare a Novadelta, de Rui Nabeiro, aos chupistas da Jerónimo Martins.
Perguntado sobre qual dos grupos cria e distribui mais riqueza sabendo que um tem cerca de 4 mil trabalhadores e outro tem à volta de 120 mil, responde cabalisticamente: "A pobreza é criada , não um acto de deus. ou seja são produzidos intencionalmente. Uma pessoa pobre não se sindicaliza, não luta pelos seus direitos, luta por comer, por sobreviver. Um dos nossos fenómenos são os pobres que tem emprego, que trabalham e, no entanto são pobres. Viver do salário mínimo, regra geral é isso. As maiores empresas e os bancos criam dinheiro que é diferente de riqueza e criam pobres. Nesta óptica, soares dos santos nao criou empregos, criou empregados pobres, que têm dificuldade em subsistir".
Nem vale a pena responder que não há salários mínimos na Jerónimo Martins há muitos anos, porque a questão não é de falta de informação, é mesmo de fé.
A demonstração disso é muito fácil.
Nestas conversas aparece rapidamente alguém que vai repescar uma história de 2019, a de uma trabalhadora que, depois de insistentemente pedir para ir à casa de banho, acaba fazendo o que tinha a fazer na caixa, sofrendo uma enorme humilhação frente a colegas e clientes.
A história aparece em todos os jornais da época, o Grupo Parlamentar do Partido Socialista pediu explicações, enfim, um grande sururu.
A denuncia vinha de um sindicato, não tinha o nome da trabalhadora (naturalmente), mas identificava o supermercado onde teria acontecido esta situação.
O Pingo Doce mandou ver o que se passava e não houve um trabalhador, uma chefia e, acrescento eu, um cliente, que dissesse que tinha assistido à situação, desconhecendo por completo que tal tenha acontecido.
O dito sindicato, perante esta forte suspeita de que era tudo treta, confirmou a história, dizendo que não identificava a trabalhadora em causa para salvaguardar a sua dignidade (a tal que tinha sido enxovalhada em frente a colegas e clientes que não existem).
O que seria normal acontecer?
O sindicato perder toda a credibilidade e cada uma das pessoas que tinham feito a acusação difamatória, mesmo que apenas dando como adquirida uma acusação cujos factos não confirmaram antes, de jornalistas a políticos, incluindo o grupo parlamentar do Partido Socialista, fazer um pedido de desculpa que se tentaria que fosse tão audível como a acusação.
Aparentemente não somos uma sociedade normal, o que aconteceu de facto é que ninguém fez isso e hoje, mais de três anos passados, a história e as notícias da denuncia caluniosa do sindicato, continuam a ser usadas como penhor de como a Jerónimo Martins tem práticas selvagens de abuso dos trabalhadores e exploração dos clientes.
O problema não está em haver muita gente que não gosta de empresas que criam riqueza (estranhamente, nesta conversa, alguém se escandalizava com o facto da Jerónimo Martins ter lucros sólidos, como se houvesse alguma vantagem em que as empresas tivessem prejuízo), o problema está no populismo dos políticos que cavalgam este sentimento de rancor contra quem cria riqueza e a distribui (sim, distribui, a forma mais eficiente de distribuir riqueza é garantir salários justos aos trabalhadores, e o facto é que como encontro sempre as mesmas pessoas a trabalhar no supermercado é, com certeza, porque podem até não gostar das suas condições e remuneração do seu trabalho, mas não encontram melhor no mercado).
Isto não é um problema da Jerónimo Martins (que até tem 80% da sua facturação fora de Portugal), o problema é mesmo nosso, do país.
Há já alguma tempo, ouvi na rádio uma entrevista do bispo Dom Américo Aguiar em que, às tantas, dizia que tínhamos de substituir o "in dubio pro reu" para "in dubio pro vítima".
Isto fez-me soar uma campaínha qualquer na cabeça, mas como não é uma área em que me sinta muito à vontade, limitei-me a registar na memória a minha estranheza pela ligeireza que me parecia haver nesta afirmação.
O caso do padre da igreja de São Nicolau, e a discussão à sua volta, fez-me voltar à memória esta frase, várias vezes.
Escuso de perder tempo com a descrição do assunto porque Filipe d'Avillez faz aqui uma síntese bastante consistente do que eu poderia escrever sobre o assunto. Na parte não religiosa da questão, entenda-se.
Há apenas uma questão que subsiste, para mim, que é a da proporcionalidade entre medidas cautelares e credibilidade dos indícios.
O vademecum da igreja para tratar deste assunto é bastante claro.
Mas, inevitavelmente, tem zonas cinzentas, o que o leva a fazer uma referência explícita ao cuidado que é preciso ter com denúncias anónimas, não as descartando e investigando e, sobretudo, ao expressamente se referir à verosimilhança da denúncia.
Ora é esta verosimilhança que exige um juízo que é tudo menos objectivo e linear, o que (suponho eu), leva o vademecum a falar da possibilidade do bispo tomar medidas cautelares, e não a dar uma indicação explícita para o fazer, explicitando que essas medidas cautelares existem para acautelar "a continuação de eventuais abusos".
É aqui que entra a minha perplexidade inicial com a afirmação do bispo Américo Aguiar, que hoje acho que percebo melhor.
Todo o sistema judicial é desenhado "pro vítima", é por causa das vítimas que existe sistema judicial.
O princípio "in dubio pro reu" é apenas, acho eu que manifestamente percebo pouco disto, falo a partir da minha noção intuitiva de justiça, um princípio que visa limitar o risco de condenar um inocente, que me parece a mim, e pelos vistos à sociedade, o maior falhanço que pode haver num processo judicial.
Esta ideia, na minha cabeça, tem tradução bíblica nesta passagem "Digo-vos que assim haverá alegria no céu por um pecador que se arrepende, mais do que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento."
Reconheço que a ligação não é directa, mas há ali uma ideia de atenção à redenção do pecador, ou se quisermos em linguagem menos religiosa, ressocialização do condenado, que na minha cabeça liga as duas ideias.
Aparentemente, tenho uma hipersensibilidade à injustiça da condenação de um inocente, que me parece de uma violência brutal.
Penso que seja por isto que tenho muita relutância em aceitar situações em que os direitos das vítimas se sobreponham, de forma desproporcional, aos direitos dos acusados, sobretudo quando as acusações dizem respeito a suspeições que nunca poderão ser reparadas por um processo judicial justo, na medida em que a suspeição se mantém sempre, sempre, qualquer que seja a decisão formal do processo judicial (veja-se a quantidade de vezes que Paulo Pedroso é citado a propósito do processo Casa Pia, apesar de todas as decisões judiciais entretanto tomadas).
E deve ser por isto que acho que quem decide sobre uma suspeição concreta deve ser especialmente cauteloso na definição de medidas cautelares (passe a aparente contradição), em especial só as adoptando na estrita medida em que elas sejam indispensáveis para evitar a continuação de abusos sobre os quais haja suspeita verosímil (não precisa de ser uma suspeita credível, basta que seja verosímil, e por isso maior deve ser o cuidado na proporcionalidade da definição de medidas cautelares, diria eu, dada a amplitude do que é a verosimilhança de uma denúncia deste tipo de crimes).
O risco da hierarquia da igreja centrar-se menos no seu compromisso com a verdade que no seu compromisso com o mundo, e portanto tender a esquecer os direitos dos acusados, como pede o mundo, não me parece pequeno.
Pode ouvir-se ao minuto 29 e 45, mais coisa menos coisa.
"o governo está a tentar dar resposta também a este problema. Posso afirmar que neste momento estamos a começar a estruturar, no ministério da saúde o apoio psicológico e psiquiátrico a estas vítimas, justamente porque a igreja não criou nenhum dispositivo de escuta e de apoio a estas pessoas".
Por ano, em Portugal, existem cerca de 2400 processos por abuso sexual de menores (para dar contexto aos números, uma coisa que a mim me parece fundamental mas que agora parece que se chama branquear o que quer que seja, boa parte destes processos dizem respeito à criminalidade on-line).
Vamos admitir, grosseiramente, que estes processos reflectem um terço da realidade (sim, é uma estimativa grosseira, mas não absurda face ao que a investigação sobre o abuso de menores conclui. Em qualquer caso, dar-nos-á uma estimativa por defeito, visto que um terço está bem no limite superior do que se admite), descontemos qualquer coisa, e temos cerca de 7000 casos por ano.
A comissão independente sobre os abusos relacionados com a igreja católica, em Portugal, estimou cinco mil vítimas (no parágrafo anterior falei de processos, podem envolver bem mais que uma vítima, mas depois de fazer esta ressalva, lembremo-nos que estamos sempre a falar de estimativas grosseiras, para dar contexto, nada mais) em setenta anos, portanto, um pouco menos de 75 vítimas por ano (vamos esquecer que as percepções públicas sobre este crime se alteraram muito nestes setenta anos, como lembrou Laborinho Lúcio, "O atentado ao pudor nessa altura integrava o coito anal, o coito oral, masturbação, etc.", o que reflecte bem a evolução da forma como a sociedade olha para estas acções nos últimos setenta anos).
Admitamos que a estimativa da comissão independente é muito baixa e multipliquemos por três, ou seja, estamos a falar de 225 vítimas por ano.
Pois bem, Daniel Sampaio acha normal dizer que "estamos a começar a estruturar, no ministério da saúde o apoio psicológico e psiquiátrico a estas vítimas, justamente porque a igreja não criou nenhum dispositivo de escuta e de apoio a estas pessoas", isto é, Daniel Sampaio acha normal dizer que o Serviço Nacional de Saúde só está a tratar de dar resposta a estas vítimas, por ausência de acção da igreja, esquecendo completamente as responsabilidades do Serviço Nacional de Saúde na resposta, não a estas 225 vítimas anuais que preocupam Daniel Sampaio, mas às outras 7 000 (sete mil) vítimas anuais que estimei, grosseiramente, que existem em Portugal (volto a dizer, esta estimativa tem uma fragilidade evidente ao estar empolada pela criminalidade on-line, por isso fiz sempre opções que maximizam as vítimas no contexto da igreja e minimizam as vítimas no contexto da sociedade, porque apenas me interessa ter uma ideia, mesmo muito grosseira, das diferentes ordens de grandeza do problema).
Caro Daniel Sampaio, tem alguma consciência do que está a fazer a essas sete mil vítimas ao omiti-las totalmente quando fala das 225 vítimas que o preocupam?
Ou, na verdade, ao contrário do que diz, está mais preocupado em contribuir para a renovação da igreja que defende, e não tanto com o problema sério do abuso de menores na sociedade?
Isso explicaria por que não conheço qualquer comentário seu às indecorosas declarações do Secretário de Estado do Desporto, em resposta à sugestão da APAV, de que é altura de olhar para o desporto da mesma forma que se olhou para igreja.
O que o leva a não dizer nada sobre o facto dos dirigentes de tutela do desporto acharem que há uma especificidade nacional que os leva a rejeitar liminarmente uma investigação independente que permita fazer o diagnóstico do que se passa no desporto em Portugal, uma vez que em todo o mundo se verifica que o desporto (como é natural que aconteça em todas as organizações de socialização de menores) é exactamente um dos sectores em que os abusos de menores ocorrem frequentemente?
Não lhe parece que seria bom deixar de se centrar n"estas vítimas" e passar a incluir também "essas vítimas"?
É que, mesmo que se considere a minha estimativa exagerada e se considere apenas um terço do valor dessa estimativa, "essas vítimas" ainda são, pelo menos, dez vezes mais que "estas vítimas".
A comissão independente sobre abusos sexuais na igreja católica, em Portugal, tinha uma missão difícil, a de caracterizar a situação referente a um crime que é, por natureza, muito elusivo.
E sobre ser muito elusivo, ocorre dominantemente no contexto de relações de poder assimétrico (pais e irmãos mais velhos, treinadores desportivos, guias espirituais, conselheiros, amigos próximos, professores, etc.) em que as vítimas são escolhidas pela sua vulnerabilidade e em que o contexto é favorável ao agressor.
É favorável ao agressor, não apenas por ter uma relação de poder sobre a vítima, mas também por ter relações privilegiadas com a comunidade envolvente (seja a família, o grupo desportivo, a igreja, o escutismo, etc.), que tornam muito difícil à vítima, quando se consegue libertar as relações de dependência em relação ao agressor, ter uma envolvente social de apoio.
Nestas circunstâncias, não há muita alternativa que não passe por ter um crivo muito largo de aceitação de testemunhos, chegando ao ponto de aceitar testemunhos como "Nascido na década de 30, M preencheu o inquérito online com a ajuda de um neto. Conta que, com 14 anos, foi uma vez confessar-se, numa igreja importante de uma cidade do Norte e o padre lhe fez perguntas «impróprias e sexuais. Disse: "já namoras? Já puseste as mãos nas maminhas da tua namorada? e nas coxinhas?" (…) Fui-me embora e nunca mais entrei numa Igreja.» Contou aos pais que lhe pediram «para não falar»". (testemunho transcrito aqui).
Até aqui, nada a dizer sobre isto, como digo, tenho as maiores dúvidas de que houvesse qualquer alternativa a isto.
Questão diferente é a forma como depois alguns membros da comissão, com especial destaque para Daniel Sampaio, pretenderam equivaler testemunhos a denúncias e interpretações da realidade em orientações normativas, chegando Daniel Sampaio a fazer afirmações gravíssimas que se escusa de fundamentar, como considerar que há tentativas de desvalorizar o relatório feito (sempre sem concretizar mais do que "arautos daquilo que eu tenho chamado as pessoas que não querem uma igreja renovada") e, pior ainda, "a igreja é responsável por milhares de vítimas de abuso sexual" (não acreditei que Daniel Sampaio tivesse dito isto, ispsis verbis, mas está aqui, vale a pena ouvir a partir do minuto 26).
Por puro acaso, há hoje um artigo no Observador sobre responsabilidades de entidades colectivas em crimes com dolo que explica muito bem o problema: "atenção que a responsabilidade penal das empresas não pode servir como ‘biombo’ ou ‘para-raios’ da responsabilidade individual das pessoas individuais; atenção que a responsabilidade penal das empresas é e tem de ser autónoma, assente em fundamentos e critérios próprios, e não nasce nem se forma automaticamente por decalque, como mera consequência acessória da responsabilidade penal de pessoas individuais."
A preocupação de Daniel Sampaio é claríssima, tão clara que salta levianamente por cima de direitos fundamentais que separam a civilização do resto: "quando eu proponho que os padres devem ser imediatamente afastados, os padres suspeitos, ..., há razões para isso, é porque essas pessoas não são doentes mentais no sentido rigoroso do termo, são até pessoas muito bem inseridas na comunidade, são pessoas que prestam relevantes serviços, porque são pessoas que desempenham funções importantes, mas são pessoas que têm uam sexualidade perturbada, de uma forma muito simples são pessoas que têm um alerta sexual perante a imagem de uma criança ... portanto se essas pessoas não tiverem uma intervenção teraupêutica, essas pessoas ficam em alerta sexual, e portanto nós estamos a ter muitas pessoas que estão em risco de repetir o crime que cometeram".
Qual é o problema?
É quando se verifica que isso significa que deve ser suspenso um padre que é padre há mais de quarenta anos porque há uma denúncia anónima, sem caracterização dos factos que permita avaliá-los.
Estou a defender que este testemunho anónimo deve ser desconsiderado?
De maneira nenhuma, há matérias sobre as quais não ponho as mãos no fogo por ninguém, e já aprendi o suficiente sobre o problema de abusos sexuais de menores para saber que não se podem descartar testemunhos deste tipo, nem se podem invocar as consabidas virtudes públicas das pessoas visadas como penhor da ausência de vícios privados.
Mas, como diz Daniel Sampaio, se é de um abusador que falamos, então esse testemunho serve essencialmente para que se procurem apurar outros testemunhos, se a situação é como Daniel Sampaio a descreve, mais de 40 anos padre devem ser suficientes para que o crime se tenha repetido e haja outras vítimas hoje caladas, ou a vítima que testemunhou se sinta hoje suficientemente segura para dizer, mesmo sob anonimato, onde e quando ocorreram os factos descritos.
Insistir na lógica tremendista de que todos os referidos em denúncias que não podem ser validadas, porque lhes falta o mínimo dos mínimos de elementos verificáveis, devem ser sumamente imolados, como se acusações injustas sirvam as vítimas existentes e não criem novas vítimas de outro tipo, serve apenas para reforçar a convicção de que a comissão independente fez um relatório que serve como diagnóstico da situação, mas não é lá grande coisa como bússola para orientação da acção futura.
E que a insistência de alguns membros da comissão nas posições públicas que têm tido (Daniel Sampaio, na entrevista ligada acima mente com a maior das facilidades, ao dizer que a confusão sobre a lista de nomes foi criada pela conferência episcopal e não pela própria comissão independente que anunciou uma lista e entregou uma lista substancialmente diferente da que anunciou) resulta apenas das suas agendas pessoais e não de qualquer compromisso nem com as vítimas passadas e muito menos com as vítimas potenciais futuras.
E isso cria um risco de efeito de boomerang sobre o trabalho da comissão (bem como a credibilidade dos seus membros) que não interessa a ninguém.
Ao ler este artigo do Observador, fiquei espantado com uma afirmação, que aliás é contestada (e bem) nos comentários à notícia, e por isso fui ouvir o que dizia exactamente Dulce Rocha (a escuro as perguntas, em letra normal as respostas de Dulce Rocha).
"Existe margem para o pagamento de indemnizações nestes processos? Obviamente. E quem deveria pagar, a Igreja? A igreja já. Penso que essa é uma responsabilidade da igreja, por ter permitido que este fenómeno prosseguisse sem o descobrir e sem o revelar, não é? ... A quem é que cabe pagar essas indemnizações? Eu lembro-me que na altura da Casa Pia, era ministro Bagão Félix e ele decidiu indemnizar, achou que o Estado tinha responsabilidade, independentemente de depois os tribunais virem ou não a decidir outro tipo de compensações, mas houve indemnização por parte do Estado, portanto estava à espera do anúncio por parte da igreja...".
Estas afirmações são feitas por uma procuradora com larga experiência.
Eu, que sou só um pobre homem da Póvoa, embora com larga experiência de decisões financeiras por parte do Estado, fiquei imediatamente de pé atrás, porque não vejo como possa um ministro decidir pagar o que quer que seja, com base na sua opinião de que o Estado tem ou deixa de ter responsabilidade no que quer que seja.
Por isso fui ler e, sem surpresa, verifiquei que a senhora procuradora Dulce Rocha foi traída pela sua memória, que a levou a dizer um disparate monumental.
Bagão Félix, bem, decidiu recorrer a um tribunal arbitral para avaliar se o Estado tinha ou não responsabilidades para com as vítimas.
O tribunal, não Bagão Félix, decidiu que o Estado tinha responsabilidades porque, estando as vítimas a seu cargo, o Estado não tinha sido suficientemente diligente na sua protecção e na sua responsabilidade para com crianças a seu cargo, e não por ter "havido esse fenómeno e ter permitido que ele prosseguisse".
Mas, mais que isso, o advogado da Casa Pia, e das vítimas, defendeu em tribunal (e o Estado entrou com uma acção nesse sentido) que o Estado deveria pedir uma indemnização aos condenados pelo prejuízo que causaram ao bom nome da Casa Pia (dando aliás origem a uma cena inacreditável de passa culpas entre a provedora da Casa Pia e o advogado por haver um lapso no pedido de indemnização que omitia o nome de Paulo Pedroso), demonstrando que o Estado, mesmo reconhecendo a sua falta de diligência na protecção das vítimas a seu cargo (e indemnizando-as por isso ao aceitar a decisão do tribunal arbitral), entendia que a responsabilidade dos crimes e a sua reparação cabia aos abusadores, e não à instituição.
Não vou discutir se a situação é a mesma no caso da igreja (intuitivamente diria que é a mesma quando tem as vítimas a seu cargo, por exemplo, no caso dos seminários, mas falta-me competência e informação para discutir isto), mas interessa-me muito perceber como a memória traiçoeira de uma procuradora a leva a dizer coisas que são absurdos completos, como dizer que um ministro decide indemnizar pessoas com base na sua opinião sobre as responsabilidades do Estado.
A duplicidade de julgamento quando está a igreja metida ao barulho, ou quando não está - diria que Daniel Sampaio é o expoente desse ponto de vista, dentro dos que têm obrigações de um mínimo de equilíbrio na sua avaliação - que se traduz no silêncio e falta de reacção às declarações do Secretário de Estado do Desporto à sugestão da APAV, declarações que são completamente inaceitáveis neste momento e provocariam um terramoto se fossem proferidas por qualquer responsável da igreja, por mais obscuro que fosse, não serve uma gestão racional do problema.
O abuso sexual de menores é um problema transversal da sociedade em que está sempre presente a ocultação, a desvalorização dos sinais quer do lado dos agressores quer das vítimas, a ausência de consciência de que a generalidade dos agressores são pessoas normais e, frequentemente, muito bem integradas no seu meio social, a que se soma a dificuldade das vítimas falarem do problema, em especial no momento em que ocorre.
E é por ser assim, e por ser claro para qualquer pessoa que tenha procurado informar-se sobre o problema que o que se passa (o tempo verbal é explicitamente este) na igreja é apenas uma pequena parte do que se passa na sociedade, que não entendo a energia gasta a denegrir o esforço pioneiro (e, com certeza, não isento de críticas) da igreja, energia essa que seria bem mais útil para as vítimas potenciais futuras se fosse canalizada para a discussão da melhor forma de o minimizarmos em todas as organizações de socialização de menores, começando pela principal dessas instituições: a família.
No mesmo dia em que o Observador tem um texto meu sobre a aplicação do Fundo Ambiental e a gestão da paisagem, o Jornal de Notícias faz uma manchete, que é replicada por toda a gente, sobre umas declarações de autarcas que protestam contra a possibilidade das pessoas serem impedidas de sair de casa por causa do risco de incêndio.
Confesso que não percebo a manchete do Jornal de Notícias, nem a surpresa dos senhores autarcas: aquilo a que se referem é apenas o resultado de uma política de gestão de fogo que esquece a realidade e acredita que o Estado é a fonte do poder de gerir o mundo, política essa que tem sido fortemente apoiada pelos senhores autarcas em geral.
O Estado português, em vez de aceitar que o fogo é um processo natural, filho do seu contexto, e que o actual padrão de fogo em Portugal resulta da falta de recursos necessários para a gestão da paisagem, decide fazer uma abordagem moral do problema, achando que os proprietários têm o dever moral de cuidar bem da sua propriedade (o que é verdade), ao ponto de terem obrigações de a gerir em função dos interesses de terceiros, mesmo que com isso se arruinem (o que já é mais que discutível).
Portanto o Estado português montou todo um edifício jurídico assente nessa moral, criando legislação atrás de legislação cujo objectivo, em teoria, é obrigar os proprietários a fazer o que o Estado (de que fazem parte os senhores autarcas), e grande parte da sociedade, acham que é o seu dever de gestão.
Na realidade, e isso pode ser visto de forma muito clara na tese de doutoramente de Tiago Oliveira, que hoje é o manda-chuva da Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais (de quem sou amigo, fica feita a declaração de interesses), a produção da tal legislação aumenta quando existem grande fogos, e diminui nos anos que correm mais ou menos, demonstrando que a legislação serve essencialmente para que os decisores passem a impressão de que estão a gerir o problema, sem ter de fazer o que realmente é difícil: gerir o problema.
Mas este modelo, assente em legislação que persegue os proprietários, em corpos de bombeiros que recebem milhões de euros dos contribuintes, apesar da gestão mais que opaca de muitas das organizações de bombeiros, e numa protecção civil onde se encaixam os náufragos da política, é o modelo que tem sido apoiado pela acefalia das redacções dos jornais e pela generalidade da sociedade.
Agora que a necessidade de ir sempre mais longe, de embarcar em fugas para a frente neste modelo de gestão do fogo assente em legislação cada vez mais absurda, sem qualquer avaliação de resultados séria, chega ao ponto de terem transformado uma carta técnica (fraquinha, já agora, e bastante inútil, mesmo para o fim a que se destinava) num instrumento normativo que dá resultados tontos, os senhores autarcas, em vez de pararem para pensar, acham que o que é preciso é alterar essa carta que, suspeito, nem sabem como é construída, nem para que serve.
Meus senhores, o resultado que agora vos assusta (mas não tem assustado nestes anos todos em que se tem vindo a caminhar neste sentido), não se resolve alterando documentos técnicos produzidos com fins definidos e abusivamente usados para fins normativos, isto resolve-se liquidando a generalidade da legislação sobre prevenção de incêndios, que é estúpida, inútil e nunca deu nenhum resultado relevante, por aquilo para que a informação relevante e séria aponta: o pagamento da gestão de combustíveis finos que permita aos proprietários gerir o que é deles de forma razoável e sustentável.
Por causa do meu post de ontem, sobre o afastamento de António Araújo do Expresso, alguém me lembra que António Araújo pode não ter sido afastado do Expresso, pode ter-se afastado.
Dito de outra maneira, o Expresso pode ter abordado António Araújo para se conversar sobre o que ele tinha escrito no seu blog pessoal, e António Araújo pode ter mandado o Expresso dar uma curva por não ter nada a conversar sobre o assunto, batendo com a porta.
Esta hipótese é perfeitamente plausível.
Só que não retira nem uma vírgula ao essencial: demonstrada, ou pelo menos bem fundamentada, a canalhice da jornalista, o Expresso prefere abordar António Araújo sobre a demonstração, ou pelo menos boa fundamentação da canalhice, em vez de aplicar tolerância zero ao abuso dos privilégios que os jornalistas têm (e bem) para escrever livremente.
Não é nada de estranhar: já Nicolau Santos tinha andado a promover o burlão António Baptista Silva por estar cego pela sua agenda política de crítica a Passos Coelho, para promoção da qual se esqueceu de aplicar princípios básicos de verificação dos factos inerentes à sua profissão, e não aconteceu nada, o Expresso continuou a considerá-lo apto para manter o seu lugar de director adjunto e é hoje presidente da agência LUSA, sem qualquer escândalo na profissão.
Não se pense que este é um problema do Expresso, estes são apenas exemplos de uma doença que corroi o jornalismo, penso que em todo o lado com diferentes graus, mas seguramente em Portugal, numa extensão profundíssima: um corporativismo que assenta na grande superioridade moral em que vive a generalidade do jornalismo (com honrosas excepções, evidentemente).
Os jornalistas (perdoem-me a generalização, que é muito injusta para as excepções) são os últimos operadores económicos que encaram as críticas ao seu desempenho profissional como ofensas pessoais (ainda há pouco tempo um director de um jornal deixou de me responder por eu lhe ter dito, em privado, que o seu jornal estava a espalhar desinformação em matéria de fogos), em vez de as encararem como um dos mais baratos e eficientes mecanismos de melhoria do seu desempenho.
Não por acaso, a generalidade dos operadores económicos gastam fortunas a procurar ouvir a opinião dos seus clientes, o jornalismo não, gasta tempo e recursos a condicionar as opiniões de terceiros sobre o seu trabalho, para evitar ser confrontado com situações como as que deram origem ao diferendo entre António Araújo e o Expresso.
É exactamente por admitir que foi António Araújo que bateu com a porta quando o quiserem condicionar nas suas opiniões que eu não fiz qualquer alusão ao papel dos restantes colaboradores do Expresso nesta história, por exemplo, estabelecendo um paralelismo com a forma como trabalhadores da BBC responderam à suspensão de Gary Lineker, porque o paralelismo me parece mais que forçado e os restantes colaboradores do Expresso não têm qualquer obrigação de solidariedade com António Araújo, sobretudo no caso de ter sido ele a bater com a porta.
Insisto, no entanto, é a tentativa do Expresso de condicionar a expressão de António Araújo sobre o conteúdo do jornal que conta.
Embora o resultado penalize o jornal, na medida em que perde um colaborador valioso, o facto é que tem um benefício enorme: ficam todos os outros avisados dos riscos de criticarem o jornal, mesmo fora das suas páginas.
Adenda: um leitor, com razão, chama-me a atenção para o facto de eu estar desactualizado. O embarretado Nicolau Santos já não está na Lusa, preside ao conselho de administração da RTP
A história conta-se rapidamente.
Uma jornalista do Expresso faz uma peça sobre uma biografia de Fernando Pessoa de João Pedro George.
António Araújo, colaborador do Expresso e amigo de João Pedro George (e sobre o qual escrevi há tempos um post), não gostou e criticou, forte e feio, essa peça.
João Pedro George foi ainda mais longe, e para além de criticar a peça, foi muito claro a demonstrar a tendência para o plágio da jornalista em causa.
Na altura deste segundo texto, já António Araújo tinha deixado de colaborar com o Expresso, visto ter um entendimento diferente do jornal sobre o estatuto e deveres funcionais dos colaboradores.
Traduzido em miúdos, António Araújo entende ter o direito a criticar o jornal para defender um amigo que acha que tem razão, o jornal acha que o respeitinho é muito bonito e não quer colaboradores que critiquem o jornal nos termos em que António Araújo escolheu fazer.
Sobre esta história, que já tem semanas, há um quase silêncio.
Aparentemente, a generalidade das pessoas aceitam como normal o entendimento de liberdade de expressão do Expresso.
Acho que o Expresso tem o direito a ter os colaboradores e jornalistas que entender, e eu tenho o direito a não ter respeito nenhum por um jornal que dispensa pessoas como o António Araújo por delito de opinião.
Laborinho Lúcio:
"Nós organizámos a lista com os nomes justamente porque isso estava acertado com a própria Conferência Episcopal Portuguesa, que o que iríamos entregar eram alegados abusadores e entregaríamos no trabalho feito diretamente nas dioceses pelo Grupo de Investigação Histórica, a conexão factual entre aqueles nomes e esta lista. Evidentemente, quando na conferência de imprensa da CEP é dito “foi-nos entregue uma lista com nomes”, isto é verdade. Mas, enfim…
O que é que falta nessa verdade?
Mal comparado, o que falta é isto. Admitamos que convido um conjunto de pessoas para um casamento. E depois prometo: na véspera envio-vos a lista com o nome dos convidados. As pessoas não vão dizer “tenho aqui uma lista com nomes convidados, não sei para que é que isto serve”. Evidentemente, toda a gente sabe que aqueles convidados são para o casamento e as pessoas têm mais ou menos a ideia do que acontece num casamento. Ora, os senhores bispos tinham toda a informação sobre o casamento, o que lhes faltava era ter o conjunto exato dos nomes dos convidados."
Américo Aguiar:
"Vamos aos factos. Uma folha A4 com 24 nomes. Ponto. Se sabia, se não sabia, se tem dados, se podem ter acesso… Pode ser tudo. O que é que foi entregue à comissão diocesana de Lisboa, nas mãos do senhor patriarca, que recebeu no dia 3? Uma folha A4 com nomes.
...
Oito nomes foram identificados como sacerdotes falecidos, quatro nomes foram identificados como desconhecidos — portanto, até ao momento não conseguimos identificar, podem ter sido sacerdotes, podem ter sido leigos. Depois, há quatro ou cinco casos que são os já conhecidos, trabalhados e mediatizados, há um leigo — concluímos que é um leigo, que tem um petit nom. Tenho dado o exemplo de “Toy”, de brinquedo ou do cantor, mas não é o que está lá, é um petit nom desse género, que pode ser qualquer pessoa, de qualquer circunstância. E, depois, temos os tais sacerdotes…
Os cinco.
Os cinco ou seis, sobre os quais, naquilo que é o arquivo histórico, naquilo que é o conhecimento direto mais recente da vida no patriarcado, não há qualquer indicação de que tenha havido, de que possa haver, de que houve ou que não houve."
Alguém está a mentir aqui e, na opinião de Paulo Ferreira, no Observador, tem de ser o bispo porque entre Laborinho Lúcio e um bispo, por definição, ele acredita em Laborinho Lúcio.
Eu estranho que um jornalista use este critério para perceber quem está a mentir e, pessoalmente, uso outro, prefiro olhar para os factos.
Ora o que acontece é que Laborinho Lúcio reconhece que o que foi entregue apenas uma lista, mas diz que essa não é toda a verdade. E quando lhe perguntam qual é a parte que não é verdade, em vez de responder objectivamente, faz uma metáfora.
Qual é o problema dessa metáfora?
É que não corresponde aos factos que ele próprio reconhece como verdadeiros: a comissão independente anunciou uma lista de convidados para o casamento, mas entregou uma lista que inclui convidados e fornecedores, deixando a quem recebe a lista o trabalho de ir consultar o planeamento do casamento para saber quais são os convidados, para se poder organizar as boleias entre eles.
E, nesse momento, quando os que recebem a lista dizem que têm uma lista de nomes que os vai obrigar a ter mais informação para saber como podem organizar as boleias, Laborinho Lúcio vem dizer que não estão a dizer bem a verdade porque todos têm o planeamento do casamento, onde podem procurar a informação de que precisam.
O facto é que, se alguém mente aqui (eu acho que não é bem mentir, por uma razão que me escapa a comissão independente lida muito mal com a pressão da opinião pública e tem medo de ser acusada de estar a fazer o jogo da igreja, pelo que alguns dos seus membros se desdobram em declarações, completamente escusadas, que lhes permitam aparecer publicamente como os justiceiros que não fazem cedências na defesa das vítimas, ou melhor, destas vítimas, porque sobre as vítimas dos mais de 95% de crimes, que não ocorrem na igreja, demonstram bastante indiferença e não se escandalizam quando o membro do governo que tutela o desporto diz que não existem dados para avaliar abusos no desporto, assédio sim, mas abusos não, uma excepcionalidade portuguesa que se escusa de fundamentar, claro), é mesmo Laborinho Lúcio, porque é aquele que se recusa a descrever os factos tal como eles são, usando a sua brilhante oratória para passar a ideia que quer, mesmo quando aparentemente está a dizer outra coisa e a ser muito objectivo.
O que me deixa baralhado nisto é o facto destes membros da comissão independente terem tanta necessidade de estar sempre a procurar demonstrar que a hierarquia da igreja não está a fazer o que pode para responder ao problema, mas provavelmente é um mistério que nunca verei esclarecido, como o mistério desta comissão propor a revisão do segredo da confissão, questão que não se percebe qual seja a relação com o abuso sexual de menores.
Pedro Strecht já demonstrou, na Casa Pia, que quando as coisas não garantem a defesa das vítimas, bate com a porta.
Neste caso, não bateu com a porta.
Assim sendo, de que se queixam estes membros da comissão independente?
Regularmente, seguramente pelo menos uma vez por ano, comento a aplicação do dinheiro do Fundo Ambiental.
Hoje é um bom dia para isso porque foi publicado, ontem ou hoje, o Despacho nº 3355-A/2023, do Ministro do Ambiente e Acção Climática, que aprova o orçamento do dito Fundo Ambiental.
Receitas por volta dos 1200 milhões de euros decididos por despacho de um Ministro, e este é o meu primeiro comentário: 1200 milhões de euros decididos por despacho de um Ministro.
Ficamos a saber que metade dessas receitas provêem do comércio europeu de licenças de emissão de carbono, o que significa que pelo menos 300 milhões destas receitas terão de reverter para acções climáticas.
No caso português, 60% (360 milhões) dessas receitas dizem respeito ao apoio a energias renováveis, isto é, a financiar a diferença de custo de produção dessas energias.
Esse é o meu segundo comentário: o Estado português prefere subsidiar a promoção de energias renováveis a apoiar a eficiência energética.
A aplicação das receitas deste fundo são em mais de 700 milhões de euros para apoio a projectos nos sectores da água, energia e transportes, quase duzentos milhões nos projectos definidos neste despacho (ver abaixo), outros quase 200 milhões em compromissos de anos anteriores, e sobram cerca de 100 milhões, dos quais 34 milhões aplicados em candidaturas abertas (ver abaixo).
Este é o meu terceiro comentário, a conservação da natureza (ver abaixo) e a gestão florestal (ver abaixo), nem aparecem autonomamente.
Escuso-me a fazer a descrição do que são os projectos previstos neste despacho, no essencial, são financiamento do Estado com as mais delirantes justificações.
Estão lá dois milhões e meio para projectos de conservação da natureza não especificados, do Instituto de Conservação da Natureza e Florestas, porque na opinião do Estado português, quem faz conservação da natureza é o organismo do Estado que tutela o sector, e não os gestores do território.
E mais uns quantos milhões de transferências para o Instituto de Conservação da Natureza e Florestas sob as mais diversas capas (ora é para a co-gestão, ora é para os projectos de co-gestão, enfim, qualquer coisa que uma imaginação fértil queira chamar a um mero financiamento do Estado por fundos autónomos).
E depois há uns quantos beneficiários, cuja razão para ali estarem não se entende, sejam o estudo do património natural costeiro dos concelhos de Sintra, Cascais e Mafra (porquê estes?), ou a mata do Bussaco (porquê esta?) e meio milhão para comemorar os 100 anos de Serralves (porque não?).
Como habitualmente há 600 mil (costumava ser meio milhão) para financiar festivais sob a capa de umas acções de esverdeamento daquilo, projectos de apoio ao pastoreio têm meio milhão, mas não se pense que é para apoiar pastores, os beneficiários são, por esta ordem, autarquias, associações e organizações com intervenção no território, entidades gestoras de baldios, e coisas que tais, agora pagar 100 por hectare a cada três anos a pastores que façam pastoreio, isso é que nem pensar.
Francamente, isto deprime-me, mas deprime-me muito mais que, ano após ano, esta bandalheira, este absurdo, esta dissipação do erário público continue a não suscitar mais que ligeiros murmúrios, como este que aqui deixo e, mesmo assim, de pouco mais de meia dúzia de pessoas.
Nem a Iniciativa Liberal, nas as ONGA, nem os artistas da rádio tv disco e cassette pirata mexam um dedo para pedir responsabilidades políticas por este despautério.
Durante anos, Passos Coelho poderia dizer ou fazer o que quisesse que era sempre trucidado nos jornais e na opinião publicada, seja atribuindo-lhe frases que nunca se provaram que foram ditas (como a célebre história do Diabo), seja comentando o facto de ir ao um espectáculo depois de tomar uma decisão difícil e com implicações na vida das pessoas como a da TSU (compare-se com o pianinho, pianinho com que foi tratada a questão das férias de Costa na altura do incêndio de Pedrogão), etc., etc., etc..
A mais vulgar das técnicas era dizer que comunicava mal, e demonstrava-se deturpando o que dizia (seja a história da emigração, seja a história do piegas, etc.).
Passos Coelho, apesar disso tudo ganhou as eleições de 2015, depois de aplicar um duríssimo programa de reequilíbrio financeiro, negociado pelo PS, com um enorme sucesso, mas mesmo assim conseguiram atribuir-lhe as culpas por as reuniões com o PS para a formação de um governo não darem em nada (quando era evidente que o PS não estava interessado em que dessem alguma coisa, porque estava a tratar de formalizar a geringonça).
A história da discussão dos abusos sexuais de menores na igreja segue o mesmo padrão: os membros da comissão independente podem dizer o que quiserem, que estão sempre certos e o relatório não é passível de crítica, a hierarquia da igreja pode dizer o que quiser que dir-se-á sempre que comunica mal, que toma decisões incompreensíveis e que não está a fazer nada para alterar coisa nenhuma. E, coisa que alguns consideram gravíssimo, não fala a uma só voz (a diversidade só é virtude nalgumas coisas, pelos vistos).
Um bom exemplo é a acusação recente, feita por Laborinho Lúcio, de que a hierarquia da igreja criou um facto com a lista de (escrever o que der jeito em cada momento) que foi entregue por essa comissão aos bispos, com o objectivo de evitar a discussão do relatório da comissão.
De acordo com Laborinho Lúcio:
"Esta lista não era para ter só os nomes de pessoas que estão no ativo? Inicialmente, foi essa a nossa perspetiva. É interessante verificar e começar por dizer isto: esta lista de alegados abusadores foi sempre referida, nomeadamente nas conferências de imprensa que fomos fazendo ao longo do ano, como sendo uma lista que nós enviaríamos, nomeadamente à CEP, que foi onde ela acabou depois por criar algumas dificuldades. Inicialmente, a nossa ideia era essa. Mas, no dia em que a entregámos, no dia 3 de março, à Conferência Episcopal, tivemos o cuidado de dizer que não era uma lista de alegados abusadores no ativo, mas era uma lista de alegados abusadores. E que, portanto, iria integrar também aqueles que já teriam falecido. E a razão é muito simples, e foi justamente essa razão que nos levou a alargar a lista para lá daqueles que estavam efetivamente no ativo. É que o facto de esses alegados abusadores já terem desaparecido conduz, evidentemente, à impossibilidade de os perseguir criminalmente ou disciplinarmente, mas não retira a possibilidade de procurar atingir a responsabilidade que a Igreja tenha em matéria de indemnização às vítimas, por exemplo."
" nós não podíamos tirar da lista aqueles que já tivessem desaparecido por morte, porque isso anularia a possibilidade de fazer as averiguações necessárias para definir os atos que eventualmente tivessem praticado e, a partir disso, poder indemnizar as vítimas".
"O caso específico de alguns que, entretanto, não são identificados ou de outros que até já tivessem tido processos, desses não tínhamos necessariamente essa informação para nós. E, como não tínhamos, não podíamos estar a adivinhar quem é que estava nessa posição. ".
"Sim, é maior do que se previa, embora nós não tivéssemos a previsão exata quantificada. Mas é maior, uma vez que nós tínhamos previsto enviar apenas aqueles que estavam no ativo e, depois, enviámos independentemente de estarem no ativo ou não."
"Os factos que constavam eram, pelo menos, a identificação da pessoa, os abusos sexuais que tinha praticado, o lugar onde eles tinham acontecido e o ano em que eles tinham ocorrido. Pelo menos estes factos estavam transmitidos e foram conhecidos de todos os senhores bispos ou dos representantes que eles próprios indicaram."
"Isto não significa que todos os testemunhos são verdadeiros, como é evidente, mas significa que há uma enorme, uma imensa probabilidade de verdade em todos eles. Isto, ligado à indicação daqueles factos que referi — e depois há a disponibilidade que a comissão tem de poder indicar mais um ou outro facto, desde que não ponha em causa o segredo quanto à identidade da vítima, porque isso é um compromisso nosso desde o início. Portanto, neste momento, em todos os lugares podia haver a adoção de medidas preventivas."
"bem podia ter acontecido que os senhores bispos, junto dos alegados abusadores, os tivessem levado a aceitar com naturalidade que eles próprios pedissem o seu afastamento enquanto o processo estivesse a decorrer. Não porque isso signifique qualquer antecipação do juízo de culpa, não porque se esteja a dizer que aqui está comprovado que foram eles que praticaram estes atos, mas apenas porque eles próprios diriam: o que está em causa é gravíssimo em função daquilo que é o prestígio da própria Igreja, eu sou um membro da Igreja, se é uma denúncia relativamente a mim estejam à vontade para me afastar de funções enquanto estiver sujeito a esta suspeita. E vamos avançar rapidamente com os respetivos processos. Nem isto se fez, nem os próprios senhores bispos tomaram a iniciativa, na maioria dos casos, de avançar nesse sentido, o que está a criar, evidentemente um imenso ruído à volta disto e a permitir — e isso é o menos agradável — que se comecem a firmar posições antagónicas, que se opõem umas às outras e que não vão levar, claramente, a nenhuma solução."
"Nós organizámos a lista com os nomes justamente porque isso estava acertado com a própria Conferência Episcopal Portuguesa, que o que iríamos entregar eram alegados abusadores e entregaríamos no trabalho feito diretamente nas dioceses pelo Grupo de Investigação Histórica, a conexão factual entre aqueles nomes e esta lista. Evidentemente, quando na conferência de imprensa da CEP é dito “foi-nos entregue uma lista com nomes”, isto é verdade. Mas, enfim…"
"O que é importante é isto, e é isto que eu julgo que nós temos de destrinçar: uma coisa é deixar claro que a lista que foi entregue aos senhores bispos era uma lista acordada, que foi esclarecida quando foi entregue. Relativamente a essa lista, há um conjunto de factos com ela cruzados que permitem que, a partir dela, e a partir da credibilidade dos testemunhos, se possam adotar ações de natureza preventiva."
Poderia continuar a citar a longa entrevista, mas o essencial é claríssimo: a comissão indepentende tinha uma ideia inicial de fazer um tipo de lista - a de acusados no activo - e depois decidiu fazer outra, a de acusados.
Nada contra, mas entre uma coisa e outra, parece-me claro que isso obriga a um trabalho posterior sobre a lista, no sentido de caracterizar melhor as situações, e foi que os bispos disseram que iam fazer (eu não entendo por que razão, havendo pelo menos a informação sobre nome, tipo de abusos, local e ano, não foi entregue uma tabela com essa informação, em vez de uma lista, mas eu estou perfeitamente disponível para aceitar que a comissão fez o melhor que lhe era possível).
Como uma boa parte das pessoas estavam à espera da lista que tinha sido anunciada inicialmente, e como os membros da comissão deixaram crescer a ideia de que os bispos poderiam actuar imediatamente a partir de uma lista que na verdade não foi preparada para isso (a informação estará no relatório, diz a comissão, mas exige que a lista seja confrontada com o relatório, como é evidente), gerou-se um sururu sobre o arrastar de pés dos bispos (em menos de quinze dias boa parte das dioceses tomaram decisões e faltam algumas que acharam que precisavam de mais informação, como aliás Laborinho Lúcio reconhece na entrevista que é possível que assim seja "Relativamente a essa lista, há um conjunto de factos com ela cruzados que permitem que, a partir dela, e a partir da credibilidade dos testemunhos, se possam adotar ações de natureza preventiva").
Pretender que a ambiguidade de vários membros da comissão em relação a essa lista e ao que ela seria não existe e que os bispos quiseram inventar factos para evitar discutir o relatório é simplesmente complicar o que o é simples: em processos complexos é normal que haja hesitações, contradições, problemas e o que interessa é perceber como se faz o processo andar para onde será mais útil.
Só que isso pressupõe duas coisas: admitir que o trabalho da comissão não é perfeito e muito menos os membros da comissão que se pronunciam publicamente sobre o assunto, e que os bispos não são uma máfia que pretende rebentar com todo o processo, através de manobras florentinas.
Isso, admitir essa coisa simples de que a generalidade das pessoas estão de boa fé mas que o processo é complexo e com problemas inerentemente não lineares, não só parece ser uma posição ultra-minoritária, como é frequentemente qualificada como sendo uma defesa da igreja ou, pior, dos acusados de pedofilia, o que evidentemente impede qualquer debate civilizado sobre o assunto.
Resumindo, a racionalidade neste tipo de discussões é um bem escasso, que o diga Passos Coelho.
Este post responde a um extenso comentário ao meu post sobre a melancólica degradação institucional em que vamos deslizando sem esperança.
"- Os lucros das empresas nunca são excessivos, são apenas o merecido retorno do seu árduo trabalho..."
Neste primeiro comentário, que pretende resumir o que digo no tal post, há duas ideias sem qualquer relação uma com a outra e que passo a tentar esclarecer.
É verdade de que não faço a menor ideia do que sejam lucros excessivos e penso que ninguém sabe, o que me parece natural visto que não existem. Pode haver lucros legítimos ou ilegítimos, legais ou ilegais, e outras coisas que tais, mas excessivos não sei o que sejam e penso que não existem.
Só que isso não tem qualquer relação com merecidos retornos de árduo trabalho, que é uma coisa muito diferente. Os lucros podem resultar de sorte ou azar, sem qualquer relação com o mérito de gestão de uma empresa (por exemplo, posso ser o melhor fabricante de luvas, se as pessoas deixarem de usar luvas por razões sobre as quais não tenho a menor responsabilidade, os meus lucros potenciais quase desaparecem, o inverso sucedendo se de repente toda a gente começar a usar luvas outra vez), podem resultar de condições de mercado pontuais, por exemplo, se eu vender ouro posso fazer uma fortuna se de repente começar uma guerra ou falir um banco, desde que tenha um stock relevante, etc..
Portanto, primeiro ponto, não embarco em visões moralistas de lucro, limito-me a dizer que em mercados razoavelmente abertos, com muitos concorrentes, é muito difícil que os lucros se possam aguentar muito tempo só em função de preços que não reflectem essas condições de mercado.
"Porque não se fala dos mais variados expedientes, lícitos e ilícitos, encontrados por essas empresas para "fugir" ao pagamento de impostos e defraudar o erário público"
Porque não sou especialista em fiscalidade, mas expedientes lícitos não são fugas aos impostos. Já quanto aos ilícitos, a administração pública que demonstre a sua existência e actue. Partir do pressuposto de que as empresas, em especial as grandes empresas, fogem aos impostos e que isso é a base relevante em que assentam os seus lucros, é um processo de intenções que não faço e não faço porque acho inútil e, na verdade, bastante pouco razoável.
Em qualquer caso, fugir aos impostos não é defraudar o erário público, defraudar o erário público é meter três mil milhões de euros na TAP, de dinheiro dos contribuintes, sem qualquer contrapartida de valor social, ou acabar com as PPP da saúde, pagando mais para ter serviços piores e outras coisas que tais.
"forma escandalosa e absolutamente injusta para todos os cidadãos a quem são cobrados impostos, sem qualquer possibilidade de "fuga" ou de encobrimento de lucros?"
Mais uma vez, uma afirmação sem qualquer base factual: a lista dos dez maiores pagadores de impostos em Portugal inclui, regularmente, as maiores empresas de distribuição, como a Jerónimo Martins e a SONAE.
"- Os Serviços Públicos, onde trabalham uns putativos "malandros", que pouco fazem, deveriam ter um horário de trabalho semanal para além do estipulado legalmente e deveriam abdicar de ter vida própria, em prol dos restantes cidadãos... E, já agora, esses putativos "malandros" costumam pagar todos os impostos devidos e não têm a possibilidade de "fugir" ao Fisco, mas isso, como alguém diria, "também não interessa nada"...".
Não me lembro de ter discutido qual o horário ideal para a função pública, mas seguramente nunca defendi horários de trabalho para lá do estipulado legalmente. De resto, lembro-me de há muitos anos ter escrito sobre os meus próprios horários de trabalho.
"Recomenda-se uma análise séria e honesta, por exemplo, aos Sectores da Saúde e da Educação, onde praticamente todos são mal pagos e trabalham, muitas vezes, abnegadamente, em prol de um verdadeiro serviço público...".
É o que tenho procurado fazer, demonstrando que é inaceitável que se defenda o que está a acontecer nos serviços públicos em Portugal, em que crescentemente há uma educação para quem pode pagar e outra, pior, para quem não pode pagar, uma saúde para quem pode pagar, e outra para quem não pode pagar, sendo os trabalhadores do sector público, em especial os mais diferenciados, uma das principais vítimas do desvario e degradação a que se assiste todos os dias.
E, francamente, não consigo entender como raio é que há quem defenda que a defesa de melhores condições de vida para os trabalhadores da função pública se conseguem obter através da perseguição das melhores, mais eficientes e mais lucrativas empresas portuguesas, perseguição essa que tem que se justifica estritamente com a obtenção de ganhos políticos de curto prazo por parte de quem usa o poder do Estado para as determinar.
Não entendo mesmo.
No Domingo, 12 de Março, o Público tinha umas quantas páginas sobre o facto dos apoios às raças autóctones, que existe há trinta anos, não parecer estar a dar o resultado esperado (impedir o desaparecimento dessas raças).
A Rosa Pomar, cuja retrosaria e trabalho com a lã podem conhecer aqui, republicou essa reportagem, e uma pessoa fez, sobre ela (a reportagem, não a Rosa), o seguinte comentário:
"Infelizmente o amor á camisola não chega. Precisamos de outras mentalidades. Desde o governante ao criador de gado passando pelo consumidor. É preciso outra visão do que temos. Mais do que olhar para estes animais como peças museológicas é preciso ver as qualidades que têm e fazer-se melhoramento nos pontos menos produtivos, mesmo que isso implique cruzamento com outras raças.
Os subsídios são uma ajuda, mas pouco mais têm feito que criar dependência.
Também precisamos mais gente como a Rosa Pomar que promove e valoriza as nossas raças e os nossos produtos. Precisamos que as associações que gerem os livros genealógicos abracem e criem este tipo de projectos em vez de fazerem apenas o mínimo obrigatório.
Enquanto criador de Churras Mondegueiras sinto a falta disto tudo e estou cada vez mais cansado deste romantismo em volta do autóctone. E a ideia de mudar para outras coisas mais rentáveis é cada vez uma hipótese a considerar.
Obrigado Rosa Pomar e desculpe este desabafo".
A Rosa disse que gostava de saber a minha opinião sobre isto e como eu também fiquei com curiosidade para saber o que eu pensava sobre o assunto, resolvi escrever este post.
Comecemos pelo princípio e pela maior divergência entre o que eu penso e o que se lê na dita reportagem e neste comentário: tradicionalmente, a principal função dos rebanhos de pequenos ruminantes, penso eu, não é a produção directa de bens (seja lã, carne ou leite), mas a função coproiética, traduzindo, o transporte e acumulação de nutrientes, sob a forma de estrumes, a partir das terras pobres para junto das terras de pão.
E foi para cumprir esta função que as raças foram sendo apuradas, portanto, as raças tradicionais têm milhares de anos de apuramento das raças no sentido de os animais morrerem pouco naquelas condições, ter menos doenças e servirem bem para aproveitar melhor os pastos da envolvente da exploração na sua função de canalizar fertilidade para os campos agrícolas.
Uma vez desfeita a necessidade de gerir a fertilidade através do pastoreio, visto que passámos a produzir adubos em fábricas desde a generalização da síntese da amónia, o pastoreio entra em declínio, passando a depender da remuneração da produção directa de bens (lã, carne, leite e afins).
Tendo sido as nossas raças apuradas para se aguentar em pastagens pobres, naturalmente estão em desvantagem em relação às raças que foram sendo apuradas para optimizar a produção de um bem específico, nos locais onde havia melhores condições para isso.
Aqui chegados, a pergunta central (finalmente entro na questão levantada) é a de saber qual é o problema das raças desaparecerem e por que razão deverão os contribuintes pagar a sua manutenção, mesmo que seja deficitária (ou melhor, mesmo que tenham um custo de oportunidade muito alto porque com o mesmo investimento noutras raças, se pode produzir coisas de forma muito mais rentável).
Há uma razão que não vou fundamentar aqui pormenorizadamente, mas que posso tentar explicar brevemente: cada uma destas raças tem um património genético que não sabemos se não nos será útil no futuro (por exemplo, a resistência a uma doença que apareça e se espalhe pelas ovelhas do mundo).
Nesse sentido, por uma questão de diversidade genética, faz sentido manter esse património que hoje existe, mas para isso não é preciso que haja grandes rebanhos, basta tratar essas espécies como peças de museu e fazer-lhes o que se faz nos bancos de germoplasma, manter uma capacidade reprodutiva que possa ser rapidamente expandida em qualquer altura.
No dia em que começamos a melhorar esse património genético para que sirva objectivos diferentes daqueles que o moldaram durante séculos, estaremos a criar novo património genético à custa da perda do património genético anterior.
Nada contra (ou a favor), estou apenas a caracterizar o problema de querer, ao mesmo tempo, conservar os elementos e os processos evolutivos, uma impossibilidade de facto.
Questão muito diferente é a do pagamento dos serviços de ecossistema proporcionados pelo pastoreio: se quisermos optimizar a produção de leite de ovelha, faz sentido procurar as melhores ovelhas produtoras de leite e as técnicas que optimizam essa produção, desde as que dizem respeito à alimentação, às que dizem respeito ao maneio, como a estabulação.
Isso far-se-á à custa das alterações de características do produto final (os queijos ou a lã produzidos assim não são os mesmos que produzidos assado), uma questão que cabe ao mercado resolver (comprei ontem um frasquinho de figos pingo de mel em calda por mais de doze euros, Casa das Rendufas, para quem queira saber, porque gosto, porque a minha madrinha já morreu e a minha tia e irmã que os fazem produzem quantidades pequenas para muitos interessados e, ainda, porque acho que é bom financiar produções alternativas que garantam diversidade paisagística).
E far-se-á à custa de uma alteração dos instrumentos de gestão da paisagem que tem efeitos sociais bastante negativos, razão pela qual faz sentido que os contribuintes se substituam aos mercados no pagamento desses serviços de ecossistema que são dificilmente apreensíveis no mercado.
Resumindo, para responder à Rosa, e esperando ter clarificado para mim a minha opinião, as partes museológicas da conservação do património devem ser tratadas como tal, é preciso optimizar o mercado potencial para o financiamento de produtores que desalinham em relação à produção dominante e teremos muito a ganhar se a sociedade pagar directamente aos produtores alguns serviços de ecossistema em que o pastoreio é muito competitivo e interessante (também porque ajuda à regeneração de solos depauperados, porque ajuda à gestão do fogo, porque ajuda à conservação do património botânico, porque ajuda à diversidade paisagística e social, etc.), aumentando a escolha potencial dos diferentes produtores, no momento das decisões de investimento.
Amanhã alguém me pode convencer a ter uma opinião diferente, que esta é pouco sedimentada.
Fizeram-me chegar o artigo de Luis Aguiar-Conraria, no Expresso.
Conheço o Luis, não pessoalmente, peço-lhe ajuda frequentemente em questões económicas, gosto do bom senso, informação sólida verificável e equilíbrio com que fala de muitos assuntos.
Por isso nem duvido que tenha avaliado cuidadosamente as razões pelas quais diz que as leis do trabalho não se aplicam à igreja católica, que o levam a concluir que: "Como é evidente, se uma empresa (em especial, uma grande empresa) fizesse uma segregação sexual tão rígida como a Igreja faz, impedindo as mulheres de exercerem uma série de funções e de chegarem às posições mais importantes da hierarquia, seria escandaloso. Inconstitucional, na verdade, e com toda a certeza seria condenada em tribunal de trabalho."
O Luís não citou o artigo da constituição em que baseia a sua convicção sobre a inconstitucionalidade evidente em que vive a igreja católica, mas suponho que seja o artigo 4º da constituição "2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.".
Daí a minha estupefacção pelo facto do Luís se rebelar apenas contra discriminação baseada no sexo, quando a discriminação baseada na religião é muitíssimo maior e mais profunda: se em relação ao sexo a igreja ainda poderia argumentar com os conteúdos funcionais do emprego de padre e freira, procurando demonstrar que não discrimina ninguém em função do sexo, parece-me evidente que só existem padres e freiras católicos na igreja católica, uma discriminação com base na religião que seria absolutamente impossível de aceitar em qualquer empresa e com certeza condenaria qualquer empresa no tribunal de trabalho a que recorressem os seus trabalhadores.
João Francisco Gomes é um jornalista do Observador que escreve sobre a igreja católica (ele diz que escreve sobre religião, mas não é isso que tenho visto, como leitor).
Hoje, está uma peça dele em destaque sobre o que têm feito os bispos com a tal lista de cem nomes.
A lista, ainda hoje, é descrita por João Francisco Gomes desta maneira: "lista com os nomes dos alegados abusadores sexuais que ainda se encontram no ativo".
Ora hoje já é perfeitamente seguro dizer que pelo menos um terço desses nomes são de pessoas mortas (é preciso uma grande fé para considerar como abusador no activo uma pessoa morta), outros não estão no activo, outros não se sabe quem são, etc..
Ou seja, a lista não é o que o jornalista diz que ela é.
Esta informação está perfeitamente fixada, portanto se o jornalista continua a chamar-lhe uma lista com nomes de alegados abusadores sexuais no activo é apenas porque isso serve os seus objectivos, não porque seja informação fiável, isto é, é porque é desonesto no seu trabalho (essencialmente, está na mesma situação do restaurante que serve gato por lebre).
Ana Sanlez e Ana Suspiro assinavam, há dois dias, uma peça com o título "Distribuição sob pressão máxima do Governo por causa de preço dos alimentos. Medidas de outros países estão a ser estudadas" em que, entre outras coisas, tratam informação do governo sobre ilegalidades nos supermercados como permitindo uma dúvida razoável de que há especulação nos preços dos bens alimentares.
Nada nessa informação, nem numa reportagem que o Observador também fez acompanhando uma fiscalização da ASAE, permite supor isso, tanto mais que o principal argumento usado para essa suspeita (suspeita criada pelo principal interessado em que a suspeita exista, o governo) é simplesmente estúpido: uma comparação entre preços de compra e venda de produtos, feita num relatório que não é público e sem qualquer consideração sobre os custos associados a essa venda, o que as jornalistas sabem perfeitamente.
Puro populismo (igual ao que se passa na conversa sobre rendas de casa, igual ao que se verifica nas reportagens sobre lares de terceira idade, igual à conversa que foi usada durante a epidemia, igual à conversa sobre o governo que geriu o memorando de entendimento que o PS negociou para evitar a bancarrota, igual à conversa sobre a TAP, etc., etc., etc..).
Que assenta na pura desonestidade na escolha de informação, como é típico de populistas e do populismo dominante nas redacções dos jornais.
O estado do Estado, em Portugal, é muito deprimente e sem qualquer esperança de que venha a melhorar, no curto prazo.
Uma Inspecção Geral de Finanças que aceita fazer uma auditoria à medida do que o Governo sobre a indemnização de Alexandra Reis em que não só não ouve a CEO da TAP, como depois se desculpa com a economia de meios, é inqualificável.
Uma ASAE que se dispõe a fazer fiscalizações à medida da operação de intoxicação da opinião pública desencadeada pelo governo sobre os preços dos bens alimentares, difundindo a ideia de que encontrou lucros brutos inaceitáveis no mercado retalhista, é inqualificável. Não só é inqualificável pôr-se ao serviço do governo - os serviços públicos servem as pessoas e a lei, não ser servem o governo - como é inqualificável aceitar que se difunda o equívoco voluntário de chamar lucros brutos a margens brutas de comercialização, para obter o efeito de comunicação desejado.
Uma segurança social, que aceita pôr-se ao serviço da campanha de contenção de danos do governo na gestão dos gravíssimos problemas decorrentes do governo não ter nenhuma política séria para a gestão dos aspectos sociais relacionados com a velhice, é inqualificável.
Um Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana que aceita não produzir informação séria sobre habitação que permita uma discussão sobre os efeitos potenciais das medidas sobre o sector que o governo pretende adoptar, é inqualificável.
Uma administração dos serviços de saúde que aceita calada a degradação dos serviços decorrentes das opções das 35 horas de trabalho e do fim das PPP (cara Graça Freitas, e que tal se a directora geral de saúde tivesse tido a coragem de falar sobre os efeitos destas medidas na saúde do país, em vez de discutir as intoxicações com bacalhau à braz?), é inqualificável.
E poderia continuar, direcção geral a direcção geral, incluindo naturalmente aquela em que trabalho e de cujo presidente sou amigo pessoal, a dar exemplos da profunda degradação dos serviços público em Portugal, que se transformaram em meros gabinetes governamentais, em vez de orgãos de administração com autonomia, assente em compromissos para com as pessoas e a lei, em vez de dependência estrita do governo de turno.
A degradação das instituições, e dentro destas, daquelas que estão mais profundamente no perímetro do Estado, será a principal herança futura daquele a quem muitos continuam a considerar o melhor político da sua geração e um génio político: António Costa.
A dimensão dessa degradação só é possível porque reflecte a degradação dos mecanismos de controlo e escrutínio em Portugal (em que país seria admissível que os ministros responsáveis por despedir a CEO da TAP em directo, pela televisão, viessem reconhecer, umas horas depois, que na verdade ainda vão tratar de a despedir, depois de cumprir os formalismos legais que não cumpriram antes e, mesmo assim, continuassem ministros?).
Já várias vezes tenho usado esta história que, para mim, nos define enquanto sociedade.
António Costa perdeu as eleições em 2015, mas formou governo aliando-se a outros partidos.
Nada haveria a dizer se, na campanha eleitoral, essa hipótese tivesse sido clara, discutida e escrutinada, e não apenas revelada depois das eleições.
Mas o relevante não é esta chico-espertice.
O relevante é que na última semana da campanha eleitoral, numa acção de campanha, Costa convida uma jornalista para ir com ele no carro, revela-lhe que é isso que fará depois das eleições, mas impõem à jornalista que não diga qual é a fonte dessa informação.
Dois dias antes das eleições, o mais influente semanário do país faz a sua manchete dizendo que essa vai ser a opção de António Costa se perder as eleições, mas mantém o anonimato da fonte (qualquer pessoa com dois dedos de testa percebe a diferença entre dizer que é António Costa que diz isso, ou deixar num limbo a origem da informação, que pode ser uma mera especulação do jornal).
O anonimato das fontes é um mecanismo que o jornalismo defende com unhas e dentes (e bem) para protecção das fontes que podem correr riscos revelando informação de interesse público (por exemplo, um mecanismo ilegal de tráfico de droga).
Não é, nem um jornalista digno desse nome deixaria que fosse, um mecanismo de tráfico de influências, como na história citada: a jornalista tem uma informação privilegiada que mais ninguém tem, que permite ao jornal fazer uma manchete bombástica, perfeitamente legítima se identificada a fonte, mas que é mera manipulação do jornal pela fonte, quando ela se mantém anónima.
Que toda a gente conheça esta história - há até um livro escrito por duas jornalistas que a contam ao pormenor, para explicar como Costa fez a geringonça em 54 dias - e que isso seja sistematicamente apresentado como uma demonstração da habilidade política de Costa e como uma actuação legítima por parte da jornalista e do jornal, é bem o retrato de uma sociedade em que os mecanismos de escrutínio do poder estão num estado de melancólica degradação tão fundo, mas tão fundo, que nem nos damos conta de como isso é deprimente e nos condena à mediocridade, por muitos anos.
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