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Domingo

por João Távora, em 09.11.25

Evangelho segundo São João 2,13-22.

Estava próxima a Páscoa dos judeus e Jesus subiu a Jerusalém. Encontrou no Templo os vendedores de bois, de ovelhas e de pombas, e os cambistas sentados às bancas. Fez então um chicote de cordas e expulsou-os a todos do Templo, com as ovelhas e os bois; deitou por terra o dinheiro dos cambistas e derrubou-lhes as mesas; e disse aos que vendiam pombas: «Tirai tudo isto daqui; não façais da casa de meu Pai casa de comércio». Os discípulos recordaram-se do que estava escrito: «Devora-me o zelo pela tua casa». Então, os judeus tomaram a palavra e perguntaram-Lhe: «Que sinal nos dás de que podes proceder deste modo?». Jesus respondeu-lhes: «Destruí este Templo e em três dias o levantarei». Disseram os judeus: «Foram precisos quarenta e seis anos para se construir este Templo e Tu vais levantá-lo em três dias?». Jesus, porém, falava do templo do seu corpo. Por isso, quando Ele ressuscitou dos mortos, os discípulos lembraram-se do que tinha dito e acreditaram na Escritura e na palavra de Jesus.

Palavra da salvação

Domingo

por João Távora, em 02.11.25

Evangelho segundo Lucas 12,35-40

Naquele tempo, disse Jesus a seus discípulos: Que vossos rins estejam cingidos e as lâmpadas acesas.
Sede como homens que estão esperando seu senhor voltar de uma festa de casamento, para lhe abrir, imediatamente, a porta, logo que ele chegar e bater.
Felizes os empregados que o senhor encontrar acordados quando chegar.
Em verdade eu vos digo: Ele mesmo vai cingir-se, fazê-los sentar-se à mesa e, passando, os servirá. E caso ele chegue à meia-noite ou às três da madrugada, felizes serão, se assim os encontrar!
Mas ficai certos: se o dono da casa soubesse a hora em que o ladrão iria chegar, não deixaria que arrombasse a sua casa. 
Vós também, ficai preparados! Porque o Filho do Homem vai chegar na hora em que menos o esperardes.

Palavra da salvação

Uma declaração de desvoto

por João Távora, em 31.10.25

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Nos próximos meses a contenda vai agitar-se, a cadeira de Chefe de Estado está a vagar e há que lá sentar uma personalidade nacional que satisfaça uma significativa proporção de portugueses, capazes de o exibir na lapela. A expectativa do regime, uma ilusão benigna, é que no final da contenda todos se sintam representados por essa figura. Evidentemente que tal ensejo é irrealizável, mas todos nos conformámos com o circo. No dia seguinte ás eleições, os eleitores assistirão a um processo de erosão, de desmistificação do eleito, fenómeno que, basta consultar os jornais, se repete inexoravelmente desde o início desta terceira república. Os crachás cairão das lapelas dos adeptos, mesmo dos mais fervorosos, como folhas secas no outono. A questão está no facto das pessoas terem memória curta e por isso não discernirem que o problema não está no malabarista que ocasionalmente é inquilino de Belém, mas na arquitectura retorcida e ineficaz do regime de Chefe de Estado que nos coube em azar. Todos saberão o que eu penso do assunto, não nos detenhamos nisso.

A relativa novidade da eleição que se avizinha, é a excepcional partidarização e consequente atomização dos profusos candidatos que se propõem ir a votos. Da esquerda extrema à direita trauliteira temos protagonistas para várias sensibilidades partidárias, sendo naturalmente o centro do bolo a fatia mais cobiçada. O sectarismo das candidaturas é, no entanto, indisfarçável, facto que, tendo em conta o papel que cabe a um Chefe de Estado, de representar toda uma Nação, não deixa de ser estranho. Se não vejamos: Marques Mendes foi o candidato presidencial anunciado no congresso do PSD, e prepara-se para receber o apoio do CDS, ou seja, será o candidato da AD. Mesmo que sem apoio unânime, António José Seguro, destacado militante socialista, obteve a anuência do seu partido para tentar finalmente reconquistar o Palácio de Belém para a esquerda, de lá apeada há 20 anos. André Ventura candidata-se para aumentar a base de apoio do Chega, fazer tanto barulho quanto possível, perorar contra os ciganos e contra os imigrantes – entretenimento puro para o comentariado e para os debates. Em termos de espalhafato só lhe faria frente a Joana Amaral Dias que, no entanto, não goza de grande simpatia nos Media. A Catarina Martins caberá a ingrata tarefa de levantar as bandeiras do Hamas, das minorias LGBT, e as franjas esquerdistas do PS, entre outras micro-causas, sempre contra o "patriarcalismo reaccionário". Imaginem a mensagem de Ano Novo da presidenta Catarina Martins se ganhasse as eleições. Mais abrangente será o discurso de Cotrim de Figueiredo, mais um a disputar o centro a Marques Mendes, e a fincar o seu partido na agenda das presidenciais. Admirável é a fidelidade dos comunistas ao seu eleitorado em vias de extinção, no boletim constará orgulhoso António Filipe que se sacrifica a correr para Belém.

Desenganem-se aqueles que, por eu ser um conservador, pensam que tenho alguma predilecção por militares, fardas ou patentes. Como a história dos últimos duzentos anos nos reclama dos livros, foram mais as vezes que as suas intromissões na política deram asneira do que o contrário. Escuso de listar aqui uma interminável lista de sinistras personagens fardadas que nos fadaram a este triste destino. Não é por isso que nutro alguma simpatia pelo Almirante Gouveia e Melo, cuja candidatura emerge fora dos partidos. Se os partidos são importantes numa democracia liberal, parece-me redutor que tudo se tenha de cingir a eles e às facções que representam na vida pública. E se, na lógica “republicana”, faz sentido o presidente emergir das facções em litígio, também deveria ser natural que a sua eleição obedecesse a outra ordem de razões – nem sempre, nem nunca. Já o disse aqui há atrasado: a mim, parece-me que a figura de Gouveia e Melo é o que vislumbro de mais parecido com um Chefe de Estado independente, sóbrio, austero e patriota - o rei.

O campeonato das presidenciais definitivamente não é para mim que disso sou objector de consciência, mas entristece-me ver tanto preconceito contra o único candidato apartidário. Tiranizado o espaço público pela hegemonia partidocrata, seria uma boa surpresa para mim que o Almirante passasse à segunda volta.

Domingo

por João Távora, em 26.10.25

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo, Jesus disse a seguinte parábola para alguns que se consideravam justos e desprezavam os outros: «Dois homens subiram ao templo para orar; um era fariseu e o outro publicano. O fariseu, de pé, orava assim: ‘Meu Deus, dou-Vos graças por não ser como os outros homens, que são ladrões, injustos e adúlteros, nem como este publicano. Jejuo duas vezes por semana e pago o dízimo de todos os meus rendimentos’. O publicano ficou a distância e nem sequer se atrevia a erguer os olhos ao Céu; mas batia no peito e dizia: ‘Meu Deus, tende compaixão de mim, que sou pecador’. Eu vos digo que este desceu justificado para sua casa e o outro não. Porque todo aquele que se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado».

Palavra da salvação.

Silêncio que se vai cantar o fado

por João Távora, em 22.10.25

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A única coisa de que me queixo é da chegada tardia de Astérix à Lusitânia, ao fim de 40 álbuns de originais, quase 50 anos depois da morte de Goscinny o seu genial guionista e criador; e cinco anos depois da partida aos 92 anos de Urdezo, o desenhador que concebeu graficamente e deu vida às personagens da série. Michele Vaillant, personagem de Banda Desenhada (de corridas de automóveis que eu adorava) de Jean Graton, em 1971 já tinha vindo competir no Rally de Portugal, e voltou mais tarde em 1984 com “O Homem de Lisboa”, não sem antes ter passado por Macau em 1983. Dir-me-ão que o Hergé jamais colocou os seus personagens em terras da língua de Camões... ele era cuidadoso na indefinição dos países por onde Tintim passava, muitas vezes inventados. Mas é verdade, assim que me lembre de repente, Tintim passou pela URSS, China, Congo Belga, EUA, Tibete, Escócia, e Bélgica naturalmente (não explicitamente, julgo). Facto é que os personagens de Edgar Pierre Jacobs, Blake & Mortimer, visitaram a Lagoa das Sete Cidades na Ilha de São Miguel, Açores, no álbum “O Enigma da Atlântida”, um verdadeiro clássico.

Enfim, para a geração da Banda Desenhada de linha clara, “Astérix na Lusitânia” é assim como ganharmos o Eurofestival ao fim de décadas de irrelevância…

Mais vale tarde que nunca, recebamos estas celebridades gaulesas, Astérix e Obélix, com gáudio e todas as honras, a partir de amanhã numa livraria perto de si.

Domingo

por João Távora, em 19.10.25

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo, Jesus disse aos seus discípulos uma parábola sobre a necessidade de orar sempre sem desanimar: «Em certa cidade vivia um juiz que não temia a Deus nem respeitava os homens. Havia naquela cidade uma viúva que vinha ter com ele e lhe dizia: ‘Faz-me justiça contra o meu adversário’. Durante muito tempo ele não quis atendê-la. Mas depois disse consigo: ‘É certo que eu não temo a Deus nem respeito os homens; mas, porque esta viúva me importuna, vou fazer-lhe justiça, para que não venha incomodar-me indefinidamente’». E o Senhor acrescentou: «Escutai o que diz o juiz iníquo!... E Deus não havia de fazer justiça aos seus eleitos, que por Ele clamam dia e noite, e iria fazê-los esperar muito tempo? Eu vos digo que lhes fará justiça bem depressa. Mas quando voltar o Filho do homem, encontrará fé sobre a terra?».

Palavra da salvação.

Domingo

por João Távora, em 12.10.25

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo, indo Jesus a caminho de Jerusalém, passava entre a Samaria e a Galileia. Ao entrar numa povoação, vieram ao seu encontro dez leprosos. Conservando-se a distância, disseram em alta voz: «Jesus, Mestre, tem compaixão de nós». Ao vê-los, Jesus disse-lhes: «Ide mostrar-vos aos sacerdotes». E sucedeu que no caminho ficaram limpos da lepra. Um deles, ao ver-se curado, voltou atrás, glorificando a Deus em alta voz, e prostrou-se de rosto em terra aos pés de Jesus, para Lhe agradecer. Era um samaritano. Jesus, tomando a palavra, disse: «Não foram dez os que ficaram curados? Onde estão os outros nove? Não se encontrou quem voltasse para dar glória a Deus senão este estrangeiro?». E disse ao homem: «Levanta-te e segue o teu caminho; a tua fé te salvou».

Palavra da salvação.

Uma pergunta simples

por João Távora, em 10.10.25

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É importante que os lisboetas percebam que, o que está em jogo nas eleições de Domingo para a Câmara Municipal de Lisboa, é a escolha entre uma frente de esquerda liderada por Alexandra Leitão e Carlos Moedas por outro. A questão não é de somenos: pretendem-se vereadores e deputados municipais consumindo horas a fio com os temas fracturantes tradicionais da esquerda, como a Faixa de Gaza, ou o activismo LGBTI, o radicalismo anti-automóvel, o fundamentalismo animalista; ou quere-se um executivo com condições políticas de implementar um modelo de gestão da cidade equilibrado mas abicioso, focado nas aspirações dos munícipes?

O mandato que agora termina foi limitado pela maioria de esquerda (dez vereadores contra sete), que se dedicou a torpedear qualquer projecto mais ambicioso de resolução dos problemas de fundo da cidade: foi uma força de bloqueio para agora apresentar esses problemas como bandeira contra Carlos Moedas.  

A pergunta é simples: queremos uma cidade cativa das agendas extremistas à esquerda e à direita, uma cidade terceiro-mundista entregue a um executivo incapaz de reformar, de conciliar interesses conflituantes, pelo contrário, a servir-se das fracturas e dos conflitos para se afirmarem com as suas agendas revolucionárias?

Os lisboetas querem a cidade liderada por Alexandra Leitão ou Carlos Moedas?

Lisboetas, uns e outros

por João Távora, em 10.10.25

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Serve este artigo, publicado por mim já há alguns anos, mas devidamente reciclado nesta data, para homenagear Filipe Anacoreta Correia, que termina a sua missão na Câmara Municipal de Lisboa por estes dias. O Filipe, meu amigo de longa data, é um orgulhoso minhoto que se deixou adoptar por Lisboa há já muitos anos. E Lisboa, que já houvera servido como autarca na freguesia de Alcântara, deve-lhe justiça e gratidão. Pelo meu lado, eu agradeço o seu indómito espírito de serviço com estas linhas. E com elas renovo a minha declaração de amor a Lisboa.

Não, a maioria dos habitantes de Lisboa não são lisboetas. Até podem gostar da cidade um bocadinho como sua, mas não são de cá: têm as raízes noutras paragens, sempre idílicas, que cultivam em visitas periódicas donde chegam como se viessem do paraíso.

De facto, como é sobejamente conhecido, a maioria da gente de Lisboa não é lisboeta. Em Lisboa, uma cidade de passagem e acolhimento, a maioria daqueles que nela actuam diariamente não nasceram aí, e boa parte deles recolhe ao fim do dia ou ao fim-de-semana aos seus lugares originários.

Um lisboeta não é, tão-pouco, aquela figura criada pelo imaginário tripeiro de Rui Moreira, que vive entrincheirado no Terreiro do Paço a conspirar contra a «província», de que se afasta como filho ingrato. O lisboeta que se preze enquanto tal, não tendo de ser necessariamente um «puro-sangue», como eu, terá no mínimo que ter nascido na cidade e já não possuir uma «terra» dos seus ascendentes onde ir baptizar os infantes num fim-de-semana prolongado, ou regressar periodicamente nas férias para reencontrar os seus familiares. Quando era pequeno assisti não poucas vezes a diálogos entre guarda-freios da Carris sobre idas à «terra» tratar das vinhas ou trazer sacas de batatas, mas para um lisboeta de gema, a nostalgia do regresso não o desloca ao Minho ou ao Alentejo, mas lança-o directamente para o vasto mundo imenso que da Torre de Belém se vislumbra oceano adentro. Enquanto isso não se realiza, vai a Sintra com a família visitar a tia velha, e de caminho traz umas queijadas.

Também importa delimitar geograficamente Lisboa até à circunvalação da cidade. Um lisboeta não é de Massamá, Odivelas ou do Estoril aprazível para onde vim morar, mas que sentirei sempre como um exílio, ainda que dourado, com a praia quase à porta.

Como é bom de ver, não sobra muita gente a quem chamar lisboeta. Mas esse reduzido número de pessoas tem um traço tão marcado quanto inédito: ama a sua cidade, o seu bairro e as suas ruas com a profundidade intensa dos fadistas e poetas – também eles, não obrigatoriamente lisboetas…

Foi na tropa que entendi a importância da origem geográfica de cada um: no quartel, todos os meus companheiros me perguntavam de onde eu provinha e identificavam-se pela sua terra de nascimento, cujo nome muitas vezes era adoptado como alcunha. Filho, neto e bisneto de lisboetas, também eu fui aí nascido e criado em Campo de Ourique, «a minha aldeia». O meu avô paterno, engenheiro civil, ajudou a construir a igreja de Santo Condestável. Tem um jardim com coreto, um mercado agora muito em voga (a que chamávamos praça), uma escola primária e outra do ciclo (que frequentei), e um odor inconfundível, que respiro com deleite, sempre que lá vou. Irónica, digamos assim, foi a «ascensão» da família do meu pai que me trouxe aquele planalto da cidade: do Palácio de Santos, hoje Embaixada da França (onde os meus bisavôs ainda moraram), à Calçada da Estrela, e depois à Travessa do Patrocínio, onde o meu avô, acabado de casar, se fixou depois de mais de duas décadas exilado pela república, até ao generoso 3.º andar em Campo de Ourique onde cresci, passaram menos de 100 anos – é o que se chama subir na vida!

Em Campo de Ourique, e seu redor, viviam muitos dos meus primos, tios e amigos da escola, e era daí que o autocarro n.º 9 saía para a Avenida da Liberdade, onde viviam os meus outros avós. Ainda conheci e ouvi histórias da minha bisavó Valentina que, na primeira década do século, precocemente viúva, foi ocupar o 1.º Esq.º do prédio 232, a um quarteirão da Rotunda. Da varanda, assistiu ela às escaramuças que nos impuseram a revolução republicana.

Lisboa corre-me nas veias, portanto.

Podemos distinguir um lisboeta na rua pelo seu olhar blasé de quem já viu o outro lado da Lua: normalmente veste com sobriedade, tanto mais que não vai em modas antes delas estarem já bem experimentadas e quase em declínio. No fundo, o lisboeta de Lisboa é filosoficamente um monárquico, descendente de fidalgos arruinados, republicanos desenganados ou anarquistas desiludidos, acalentando sempre orgulho na sua ascendência, seja de fadistas, professores primários, jornalistas ou de modestos lojistas. Desconfiado de grandes aparatos, e principalmente da alegria dos vizinhos que vão e vêm das festas «na terra», dos seus filhos com demasiados piercings e tatuagens e filhas de cabelo azul-eléctrico, têm nos seus genes a secreta certeza de que as revoluções, as suas ou as dos adversários, nunca serviram para nada; que a vida é o que é. Mas o bom lisboeta toma sempre partido e não recusa uma boa discussão de política no café do bairro, e se for necessário cita o seu antepassado de que mais se orgulha.

O lisboeta não esconde o ensejo de um emprego estável, na função pública de preferência, à moda das rendas novecentistas enviadas da província, que lhe permitiam pagar o alfaiate e umas compras num Chiado afrancesado. Gosta de jardins, cafés e esplanadas para ler jornais ou namorar, e conhece os vizinhos com equidistância; é católico, agnóstico ou ateu com a determinação de quem optou em pleno discernimento, que na capital as disputas existenciais têm séculos de discussão, nas cortes, no partido, no clube recreativo, no parlamento e na taberna.

Os lisboetas pronunciam um português mortiço e tendem a omitir as vogais abertas, talvez para poupar energia, talvez por timidez. Distinguem-se dos vizinhos por um entusiasmo reservado, pelo andar mais lento e por um sorriso triste de quem imaginou ter herdado fortunas indivisas dos tetravôs das índias. O lisboeta, para lá das «questões futebolísticas» (às quais já não dá grande valor), não entende o rancor nutrido pelas gentes do Porto, afinal uma cidade bonita e acolhedora — e onde nasceram tantos progenitores de futuros lisboetas – esta é para ti, Filipe.

Depois, há que reconhecer que um lisboeta não se distingue pela sua cor dos olhos ou da pele: há-os com as mais variadas origens e culturas. No entanto, reconheço que existe uma ameaça na «consanguinidade» lisboeta. Para não perderem o brilho nos olhos, os alfacinhas deverão abrir-se ao casamento com forasteiros — foi o que fiz. Já os meus filhos cresceram em São João do Estoril e não entendem a mística da grande cidade, que sentem como hostil, e desconfio que a acham tão velha e fora de moda como o Pai, que é um monárquico militante, se atafulha em jornais, livros e discos de vinil e lhes conta histórias de outros mundos. Talvez um dia, por um qualquer acaso, retornem para lá viver e entendam a alma da minha cidade e os tiques deste inveterado lisboeta que também lhes está no sangue.

Acontece que os lisboetas nasceram e cresceram impregnados de história, calcorreiam-na todos os dias através das ruas antigas, passeios puídos, prédios velhos e monumentos históricos com os quais se foram familiarizando diariamente, por osmose. Da rua do Arsenal ao Bairro Alto, das calçadas íngremes da Lapa aos escritórios centenários da baixa pombalina, da igreja de São Domingos à rua de Santa Marta, ao Hospital de S. José, do Largo do Chafariz de Dentro às ruelas de Alfama até à velha Sé de Lisboa, do fatídico Terreiro do Paço (onde mataram o Rei), da inevitável Avenida Almirante Reis que já foi Rainha D. Amélia, do Jardim da Estrela aos do Castelo, o lisboeta corporizou, sem dar por isso, o relativismo do momento, a estreiteza da modernidade e das suas disputas tantas vezes risíveis.

Mesmo habitada por tantos fantasmas, Lisboa tem uma alma extraordinária, um jogo de luz e sombras que é mágico. Com as suas colinas e ventos, renova-se de ar novo e empolgante todos os dias, ampliado pela animação daqueles muitos que chegam e nela se instalam, ou a visitam ocasionalmente.

É com este sangue novo, entusiasmo e muita ilusão que a cidade se reconstrói diariamente das cinzas. Lisboa só é o fim da linha para quem vem do Estoril.

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Domingo

por João Távora, em 05.10.25

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo, os Apóstolos disseram ao Senhor: «Aumenta a nossa fé». O Senhor respondeu: «Se tivésseis fé como um grão de mostarda, diríeis a esta amoreira: ‘Arranca-te daí e vai plantar-te no mar’, e ela obedecer-vos-ia. Quem de vós, tendo um servo a lavrar ou a guardar gado, lhe dirá quando ele voltar do campo: ‘Vem depressa sentar-te à mesa’? Não lhe dirá antes: ‘Prepara-me o jantar e cinge-te para me servires, até que eu tenha comido e bebido. Depois comerás e beberás tu’?. Terá de agradecer ao servo por lhe ter feito o que mandou? Assim também vós, quando tiverdes feito tudo o que vos foi ordenado, dizei: ‘Somos inúteis servos: fizemos o que devíamos fazer’.

Palavra da salvação.

Desarvorados

por João Távora, em 01.10.25

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Atraiu-me a palavra “arvorar”. Desarvorar, em termos populares, segundo o dicionário Priberam quer dizer abalar, safar-se, desaparecer. Mas a palavra exibe a sua origem, talvez longínqua, em “árvore”, que na linguagem náutica significa o mastro do navio. Assim,  pode entender-se o seu verdadeiro significado: desarvorar é arriar o que está arvorado, nomeadamente a vela de um barco, a bandeira de um castelo. Já a palavra “arvorar”, soa-me a “fazer-se de árvore”, assumir uma postura altiva, de quem vê o mundo lá de cima, em perspectiva.  Mas a árvore tem raízes, como é possível então o acto de desarvorar, como quem diz, fugir por aí a fora?

Estamos todos muito desarvorados por estes dias. Arriamo-nos, pusemos a viola no saco. Safámo-nos e abalámos, arrastando as raízes soltas que levantam pó. Se nos arvorássemos teríamos outra perspectiva. Lá em cima estamos sempre mais próximos de Deus, o que é o mesmo que dizer “do Altíssimo”. É “arvorados”, se possível no cimo da montanha, que Lhe podemos melhor chegar. No entanto, optamos demasiadas vezes por desarvorar, que é uma forma de fugir, cá em baixo, rente ao chão. De raízes a arrastar.

Mas podemos sempre arvorar as velas, içar as bandeiras, subir a serra, olhar o mundo de cima. A maior vantagem de ser uma árvore, é olhar o mundo lá de cima.

Na imagem: Escultura de Vanderlei Lopes

Domingo

por João Távora, em 21.09.25

Leitura da Primeira Epístola do apóstolo S. Paulo a Timóteo

Caríssimo: Recomendo, antes de tudo, que se façam preces, orações, súplicas e ações de graças por todos os homens, pelos reis e por todas as autoridades, para que possamos levar uma vida tranquila e pacífica, com toda a piedade e dignidade. Isto é bom e agradável aos olhos de Deus, nosso Salvador; Ele quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade. Há um só Deus e um só mediador entre Deus e os homens, o homem Jesus Cristo, que Se entregou à morte pela redenção de todos. Tal é o testemunho que foi dado a seu tempo e do qual fui constituído arauto e apóstolo – digo a verdade, não minto – mestre dos gentios na fé e na verdade. Quero, portanto, que os homens rezem em toda a parte, erguendo para o Céu as mãos santas, sem ira nem contenda.

Palavra do Senhor.

A miragem do bem-estar

por João Távora, em 18.09.25

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Muito se tem escrito e falado sobre a polarização política que ameaça a paz social nas democracias ocidentais, nomeadamente na Europa em geral e particularmente em Portugal.  A causa desta rebelião, repetidamente afirmada pelos comentadores e que eu me permito refutar nestas linhas, é a falta de expectativas pelo povo da melhoria das condições de vida que foi proporcionada às gerações anteriores (à minha e inclusive). Não sendo o meu caso particular um bom exemplo, não me escuso de o mencionar: a ascendência de que provenho, há vários séculos que vem perdendo influência social e poder económico. Esse facto não faz da minha família e parentescos gente particularmente dada à revolta e à irreverência, antes pelo contrário.

Não tenho dúvidas de que o custo da vida, no sentido de dificuldades de realização material, ainda é muito penalizador para demasiados portugueses, certamente por muitas razões que não vêm ao caso aqui elencar. O elevador social em Portugal é demasiadamente imperfeito e isso tem custos sociais relevantes: o grau de esforço necessário a um individuo para sair do circuito de pobreza ainda é muito grande a comparar com outras nações europeias. O problema é que os comentadores referem este fenómeno de falta de expectativas materiais também noutros países bem mais “evoluídos” social e economicamente que o nosso. Veja-se o grau de polarização no Reino Unido e em França só para dar dois exemplos mais mediáticos.

Ora, o que eu tenho para mim é que, atingido um determinado nível de bem-estar material, a certo ponto permite relevar-se no individuo outra classe de insatisfação. A “satisfação”, como cantam os Rolling Stones, é algo sempre inatingível para a natureza humana. Portanto, colocar a resolução dessa inquietação existencial em objectivos materiais seria sempre um erro. Como foi uma ingenuidade dos políticos acreditarem que seria possível uma economia eternamente em crescimento.

Acontece que algo me diz que a “felicidade” é uma meta muito mais longínqua sem uma educação espiritual. Sem a crença em algo maior que nós, sem um crescimento interior, com vista a aspirações mais ambiciosas, a causas maiores. Talvez a secularização da Europa explique em grande medida os fenómenos de radicalização e rebelião que nos ameaçam. São uma ameaça justamente no ponto do globo com mais bem-estar económico, regalias sociais, e pasme-se, liberdade individual. Quem diria que tudo isso junto se poderia tornar numa armadilha, o nosso pesadelo - a ausência de Deus.  

Gravura: execução de Robespierre

A batalha de Lisboa

por João Távora, em 12.09.25

(...) "Só Carlos Moedas, devido ao sistema eleitoral, pode evitar que a maior câmara do país caia sob a influência de quem acha que o problema da habitação é haver proprietários privados, que o problema da segurança é haver demasiado policiamento, que controlar as migrações é racismo, ou que a nossa história e as nossas tradições são para ser repudiadas.

Acredita que o elevador da Glória nunca teria caído se estivesse pintado com as cores da Palestina? Porque deve haver na candidatura socialista alternativa a Moedas quem seja capaz de acreditar nisso. Para que haja uma maioria de bom senso e para impedir que Lisboa seja reduzida a uma comuna woke, é possível — e até talvez recomendável — votar em outras listas que não a do PSD e dos seus aliados para a Assembleia Municipal. Mas para a presidência da câmara, só é possível votar em Carlos Moedas."

Rui Ramos no Observador

A política TikTok

por João Távora, em 11.09.25

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Como é que é possível, sessenta deputados da Nação, influenciados por um vídeo TikTok produzido pelo seu líder (e depois apagado), oporem-se a uma viagem presidencial à Alemanha à Festa dos Cidadãos, “Bürgerfest”, por pensarem que se tratava de um festival de hambúrgueres? Segundo a nota do Palácio de Belém, a "Bürgerfest", em português Festa dos Cidadãos, “realiza-se anualmente nos jardins da residência oficial do Presidente Federal, para honrar o trabalho voluntário e promover o envolvimento cívico dos cidadãos”. Não havia nenhum deputado capaz de evitar este boçal disparate, talvez com a ajuda da Inteligência Artificial, à falta de outra?

É este o sentido crítico e conhecimento técnico destes nossos representantes que todos os dias com estardalhaço reclamam competência e ética no exercício dos poderes públicos? Não consigo evitar uma enorme vergonha alheia. É o preço do poder popular, dos critérios de escolha dos eleitores, bem sei. Quantos destes incapazes se preparam para conquistar lugares de responsabilidade nos órgãos autárquicos do país?

É a natureza humana à rédea solta, que em instituições fracas adquire demasiado protagonismo. O mundo está perigoso, é o que eu vos digo.

Domingo

por João Távora, em 07.09.25

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo, seguia Jesus uma grande multidão. Jesus voltou-Se e disse-lhes: «Se alguém vem ter comigo, e não Me preferir ao pai, à mãe, à esposa, aos filhos, aos irmãos, às irmãs e até à própria vida, não pode ser meu discípulo. Quem não toma a sua cruz para Me seguir, não pode ser meu discípulo. Quem de vós, desejando construir uma torre, não se senta primeiro a calcular a despesa, para ver se tem com que terminá-la? Não suceda que, depois de assentar os alicerces, se mostre incapaz de a concluir e todos os que olharem comecem a fazer troça, dizendo: ‘Esse homem começou a edificar, mas não foi capaz de concluir’. E qual é o rei que parte para a guerra contra outro rei e não se senta primeiro a considerar se é capaz de se opor, com dez mil soldados, àquele que vem contra ele com vinte mil? Aliás, enquanto o outro ainda está longe, manda-lhe uma delegação a pedir as condições de paz. Assim, quem de entre vós não renunciar a todos os seus bens, não pode ser meu discípulo».

Palavra da salvação.

Lembrando velhas amizades

por João Távora, em 03.09.25

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Talvez porque me puseram um álbum do Tintim nas mãos antes sequer de eu saber o meu nome me tenha chocado a versão deficientemente animada, a estranheza daquelas falas mal dobradas e simplificação das histórias na TV. Afinal não foi a minha imaginação que lhe deu voz e movimentos? Até fui eu que inventei as tramas, enquanto folheava atento os livros ainda sem saber ler... Com o Tintim na TV fiquei definitivamente enciumado com a exposição pública e a banalização do meu herói.

Quase desde o berço que passeei por dentro daqueles quadradinhos, daquelas histórias e mistérios. É por isso que nunca consegui entregar de bom grado o Tintim ao mundo, como se cada aventura guardasse um segredo só meu, um pacto silencioso entre leitor e personagem. O eco das páginas lentamente viradas nas tardes soalheiras das férias intermináveis, o cheiro do papel, os risos partilhados com Milou e os sermões científicos do Professor Girassol, tudo isso moldou um universo privado onde os heróis eram eternos e os perigos, embora assustadores, terminavam sempre com um sorriso de esperança. E aquilo que hoje escapa a muita gente, a bondade de Tintim, a generosidade desse herói profundamente cristão.

Lembro-me das horas estáticas, que passei de pernas cruzadas, em puro deleite diante da última prancha do álbum Carvão no Porão, aquele insólito e colorido rally nos jardins de Moulinsart. As horas passadas em êxtase, fisgado num só quadradinho, invejando o pequeno carro vermelho do rebelde Abdallah em No Pais do Ouro Negro. Hergé deu-me os meus melhores amigos de toda a infância, de quem aliás fui íntimo. Com o Tintim e Milou fui crescendo e lutei contra os sovietes e contra a máfia. Ajudei a libertar os escravos e lutei contra o tráfico de droga. Fui também à lua, onde ia perdendo os meus amigos todos e não salvei o Engº Wolf de uma heróica morte. Planei arrastado por um condor pelas encostas dos Andes. Tremi de medo e gelei de frio a caminho do Tibete, num hino à generosidade. Comovi-me com o cão mais simpático do mundo, ri-me com os excessos do bêbado mais divertido de todos, o Capitão Haddock. Ao Hergé, genial criador destas histórias ficarei sempre grato pelos amigos que me proporcionou.

Com o passar dos anos, aquelas páginas passaram a ser refúgio e companhia, à medida que a vida se tornava mais complexa e o mundo parecia mais vasto e menos decifrável. Os personagens iam-se densificando. A cada releitura, descobria detalhes antes despercebidos, diálogos que se revelavam mais espirituosos, enigmas que cresciam em profundidade conforme a minha própria compreensão amadurecia. Havia sempre um novo segredo guardado entre os balões de fala, uma nuance nos olhares das personagens, uma nota de humor que só se revelava ao leitor mais atento. Assim, as aventuras de Tintim transformaram-se num território de familiaridade e surpresa, onde a infância encontrava refúgio e o espírito de aventura permanecia ao alcance das mãos.  

Por tudo isto em minha casa se cultiva este extraordinário herói e os seus amigos, e todos os anos se estreia em lugar de destaque um vistoso calendário temático publicado pela editora. E ainda hoje ao reencontrar um álbum em lugar nobre da estante, sinto a mesma emoção pueril, na expectativa de uma nova descoberta, como se a infância se deixasse viver, uma e outra vez, através da magia das linhas claras e cores vivas do desenho de Hergé. Ele é por certo responsável por muitas das mais felizes horas da minha infância, e por isso ser-lhe-ei sempre grato.

Texto adaptado duma troca de impressões escritas, no tempo áureo dos blogs.

Domingo

por João Távora, em 31.08.25

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas

Naquele tempo, Jesus entrou, num sábado, em casa de um dos principais fariseus para tomar uma refeição. Todos O observavam. Ao notar como os convidados escolhiam os primeiros lugares, Jesus disse-lhes esta parábola: «Quando fores convidado para um banquete nupcial, não tomes o primeiro lugar. Pode acontecer que tenha sido convidado alguém mais importante do que tu; então, aquele que vos convidou a ambos, terá que te dizer: ‘Dá o lugar a este’; e ficarás depois envergonhado, se tiveres de ocupar o último lugar. Por isso, quando fores convidado, vai sentar-te no último lugar; e quando vier aquele que te convidou, dirá: ‘Amigo, sobe mais para cima’; ficarás então honrado aos olhos dos outros convidados. Quem se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado». Jesus disse ainda a quem O tinha convidado: «Quando ofereceres um almoço ou um jantar, não convides os teus amigos nem os teus irmãos, nem os teus parentes nem os teus vizinhos ricos, não seja que eles por sua vez te convidem e assim serás retribuído. Mas quando ofereceres um banquete, convida os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos; e serás feliz por eles não terem com que retribuir-te: ser-te-á retribuído na ressurreição dos justos.

Palavra da salvação.

Inquietação

por João Távora, em 29.08.25

O facto de perceber que o caminho traçado pelo mundo não aponta para um futuro melhor, e de saber que as minhas opiniões não conseguem inverter essa dinâmica, não me exime da responsabilidade de defender aquilo em que acredito. O valor das ideias não se mede pela quantidade de pessoas que as seguem, mas pela profundidade e honestidade com que são sustentadas. Valha-nos essa liberdade.

Ao longo da história, quem demonstrou uma consciência mais aguçada sentiu, de forma inevitável, a inquietação de não se encaixar no pensamento dominante. A lucidez manifesta-se como uma chama inquieta, que arde silenciosa em quem se recusa a render-se ao consenso fácil. Existe uma dignidade particular em erguer convicções solitárias diante do ruído da maioria: trata-se do preço a pagar por se permanecer acordado enquanto tudo em redor se acomoda ao conforto das ideias feitas e das tendências passageiras. Quantos se insurgiram perante a iniquidade da crucificação de Jesus?

A celebrada ideia de progresso e a satisfação existencial representam, na sua essência, um sinal de visão limitada. O apelo da vulgaridade atrai multidões, e o apaziguamento proporcionado pela resignação revela-se como um convite fatal à decadência colectiva.

Que não haja dúvidas: são sobretudo as "causas perdidas" que exigem inconformismo e empenho genuíno. E é neste esforço, por mais inútil que pareça, que poderemos fazer alguma diferença no balanço final da existência.

A culpa, a nossa tão grande culpa

por João Távora, em 27.08.25

culpa.jpg

Tempos houve que, perante uma tragédia, perante um cataclismo, um funesto mau ano agrícola, ou infausta epidemia, a comunidade enchia as igrejas, recorria aos santos que nos andores saíam em procissão, suplicando-lhes o povo a intercessão ao Criador por uma redentora intervenção - eram uns totós. Chegados à laica modernidade, esvaziadas as igrejas e secularizado o espaço público, o fenómeno permanece com outras roupagens – só pode ser o sentido de humor de Deus: o sentimentalismo e a indignação são as novas formas de prece, sonoras suplicas laicas, vociferadas nos ecrãs das TVs e dos telemóveis quais oratórios ou altares domésticos. Os nossos “pensamentos” estão com as vítimas, dizem. Deve adiantar muito, deve…

Enfim, como já não se implora por milagres a Deus, exigem-se milagres aos impotentes políticos, que na verdade se puseram a jeito. O resultado disso, perante uma qualquer desgraça, mesmo sazonal, é uma ruidosa cacofonia desregrada, que não vale uma missa.  O fragor irá entreter o burguês no seu sofá por uns tempos até que o assunto desapareça da agenda, escapulido como o vento escapa entre os dedos das mãos. De resto, a pandemia, os incêndios, as alterações climáticas, como é bom de ver e corrente acreditar-se, é responsabilidade nossa, do capitalismo ou da religião, e por consequência dos governantes ou do heteropatriarcado. Mas se por um lado já se armam as piras para queimar as bruxas, seja nas comissões de inquérito ou nos debates de televisão – o ritual da expiação da culpa, nossa tão grande culpa (e dos incendiários), assim o exige; no horizonte adivinham-se as vozes dos novos profetas que prometem soluções para vergar a natureza, soluções que afinal sempre estiveram nas nossas mãos (o aquecimento global que se cuide) na forma de mais legislação - como é que ninguém tinha visto isso ainda? O melhor caminho para se retomar “a vida como habitualmente” como já nos prometia o saudoso (?) António.

A propósito de saudade, sonhos, sentimentos e assim: para toda esta interminável e incómoda tragédia que é a nossa passagem pela vida terrena, já o John Lennon preconizava uma solução eficaz: imaginem uma existência sem céu, sem inferno, sem países, sem religião, enfim, toda a gente a viver em paz. Um mundo sem pessoas como solução. É o que nos irão propor um dia destes, os sentimentalistas e os populistas que conhecem as soluções fáceis e simples, que ninguém ainda tinha pensado.

Imagem daqui


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