Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Foi interessante assistir aos muitos e justíssimos elogios que os republicanos portugueses fizeram a Isabel II a propósito dos seus 70 anos de reinado. Muitos começavam até as suas intervenções com um “Não sou monárquico, mas...”. Parece-me que não os preocupava as contradições inerentes a estes elogios. Destacavam logo a longevidade do seu reinado: tinha convivido com não sei quantos primeiros-ministros desde Churchill, conseguira adaptar-se sempre bem às grandes mudanças que o seu país e o mundo sofrera nestas sete décadas. Pois bem, isso só foi possível por Isabel II ser uma monarca, se fosse presidente de uma república cumpriria dois ou três mandatos de quatro ou cinco anos. Teria convivido, no máximo dos máximos, com primeiros-ministros eleitos até 1964, até Harold Wilson, antes de ser substituída no cargo por outro presidente, e já não teria intervenção em nada do que se passou nos últimos 50 anos.
Depois, os republicanos portugueses louvavam a forma exemplar como tinha trabalhado com todos os políticos, independentemente da sua cor política. Vamos agora imaginar novamente que o Reino Unido era uma república. Para chegar à chefia do Estado, Isabel II teria certamente que fazer carreira num dos principais partidos britânicos, seria conservadora, trabalhista, eventualmente liberal-democrata. Será que conseguiria ter tal isenção quando fosse eleita para a chefia do Estado republicano, lá para os 50 ou 60 anos de idade, depois de andar nas batalhas políticas partidárias? Ou seria sempre vista como alguém que representaria apenas uma parte do país, por muito que se esforçasse para ser de todos os britânicos? E quantas inimizades, quantos ódios até, a sua luta pelo poder acarretaria? Alguém acha que Isabel II seria a figura consensual que hoje é?
Por fim, outro dos elogios mais frequentes entre os republicanos portugueses ao longo reinado da rainha britânica é a forma discreta e elegante com que tem exercido o cargo, mesmo quando afectada pelos inevitáveis desgostos que a vida traz. Por nunca procurar a popularidade fácil, por não dar entrevistas, por se ter apenas dirigido directamente à população por meia dúzia de vezes, sempre em ocasiões marcantes. Alguém imagina um chefe de Estado eleito directamente que não andasse ao ritmo mediático, em busca de popularidade e votos, a associar-se a tudo quanto garantisse boa Imprensa e os favores da opinião pública?
São apenas três exemplos de contradições, haveria muitas mais para quem se desse ao trabalho de aprofundar o assunto em vez de pegar nele pela rama, como eu faço. Elogiar Isabel II é elogiar a monarquia constitucional. Muitos outros monarcas europeus, nestes 70 anos que ela leva de reinado, tiveram igualmente comportamentos exemplares, os quais, não tendo o destaque mediático da rainha britânica, mereceram e merecem o apoio da maioria esmagadora das respectivas populações, que não imaginam sequer mudar para um sistema republicano.
É fácil perceber que a monarquia constitucional é, inclusive em termos de estética política (tantas vezes ignorada entre nós), o sistema que melhor se adequa a todos os países europeus, com excepção da Suíça. Nestes elogios quase unânimes a Isabel II percebe-se que, em termos racionais, em termos de pura política, isso é claro. Mas depois há o lado irracional da política, os preconceitos, as visões forjadas no sistema educativo, mediático e cultural, que determinam que as repúblicas são um “progresso”, uma evolução democrática em relação às monarquias, sempre removidas para o “passado”. Perguntem a Isabel II o que acha disso. Talvez ela abra uma excepção e responda.
Quando comecei a fazer contas, custou-me acreditar que não estava enganado, mas a verdade é que o Corta-fitas completa hoje nada mais nada menos do que 16 anos de existência. Já passámos por não sei quantas mudanças no país e no mundo, que certamente afectaram positiva ou negativamente quem aqui mora, que nos fazem pensar se vale ou não a pena continuar, mas para mim o simples acto de escrever, de reagir às peripécias que se vão sucedendo, de deitar cá para fora o que nos vai na alma, são motivos mais do que suficientes para que daqui a um ano estejamos a comemorar o 17º aniversário. E a festejar presencialmente a histórica ocasião, como costumávamos fazer. Com esta avançada idade, vamos desconfiando de que tudo - por muito que hoje não pareça - um dia vai passar.
Vários canteiros dos jardins de Lisboa mostram tubos castanhos em vez de relva ou vegetação rasteira, dando outra dimensão ao conceito de “espaço verde”. Presumo que a função desta tubagem é precisamente regar plantas, para que elas cresçam e cubram o seu infame aspecto, algo que não se verifica há anos, desde que foi, literalmente, implantada. E é provável que assim permaneça por muitos mais anos. Por orgulho, inércia ou obtusidade, somos incapazes de rever soluções que já provaram que não resultam. Quem entende do assunto diz que Lisboa tem condições muito propícias ao florescimento de bons jardins, mas não há bondade do clima que consiga compensar os nossos defeitos.
Não gosto nada de ouvir jornalistas, alguns com responsabilidades editoriais, a considerarem que determinado dirigente político “trouxe” um assunto para a agenda. Quem deve definir a agenda dos órgãos de Comunicação Social são precisamente os jornalistas e os responsáveis editoriais e não alguém exterior a eles. É claro que há temas que se impõem na agenda, desde terramotos a quedas de Governo, passando por pandemias, mas achar que a responsabilidade por dar relevância a brincadeiras com fotografias de gatinhos- ainda que disfarçada por abordagens pretensamente “sérias”, como “a importância das redes sociais nas campanhas eleitorais” – , a frases soltas ou incidentes fortuitos é de quem o faz e não de quem o destaca nas agendas, é simplesmente prescindir do papel do jornalismo.
Se os órgãos de Comunicação Social - quase todos rendidos ao “infotainment”, essa maldita mistura de informação com entretenimento que está a dar cabo do bom jornalismo -querem dar espaço a assuntos menores, desprezando a importância dos temas pertinentes que quase todos os partidos trazem diariamente para a campanha, ao menos que o assumam e não deitem as culpas para cima de outros. Podem achar que ao privilegiarem notícias a sério, no momento imediato, vão perder audiências, “cliques” e leitores, mas talvez assim se venham a distinguir melhor do que vai pelas redes sociais de que tanto se queixam e onde cada vez mais pessoas buscam informação.
Vacinei-me aos 19 anos contra ideologias. Estávamos no início dos anos 80, eu era então estudante de Economia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (que trocaria mais tarde pelo curso de Comunicação Social), e durante pouco mais de um ano militei num partido trotskista, a Convergência Socialista, albergado clandestinamente no Partido dos Trabalhadores (PT), já que a sinistra ditadura militar brasileira, mesmo no seu estertor, ilegalizava partidos marxistas. Desde essa experiência, que acabou por ter um lado positivo, desenvolvi uma imunidade não só contra tudo quanto cheire a marxismo, mas também contra doutrinas que acham que possuem uma espécie de chave para nos explicar a sociedade e a sua história.
Por isso, é para mim estranho que no Portugal de hoje haja tantos maiores de 30 anos a afirmarem-se convicta e orgulhosamente conservadores, liberais, democratas-cristãos, sociais-democratas (não vou mais à esquerda, porque é outro mundo e ainda menos compreensível), desprezando o salutar pragmatismo que deve guiar a política actual. Não estou a dizer que essas doutrinas não apresentem ideias e princípios que nos podem inspirar e orientar, mas mal de nós se os políticos, sobretudo aqueles que têm responsabilidades de governo, enquadrassem a sua acção numa qualquer rigidez doutrinária, forçando a realidade a caber na pureza de uma ideologia.
Passando para o concreto dos dias agitados da campanha eleitoral que vivemos, devo dizer que aprecio a boa educação e as boas intenções dos que professam fé na Iniciativa Liberal, mas não compreendo uma certa infantilidade em acharem que são eles que possuem a tal chave que nos vai resolver todos os problemas. Não por acaso, dizem que nas universidades os liberais disputam com o Bloco de Esquerda as preferências dos estudantes e parece-me muito provável que assim seja, já que é próprio da juventude ser atraída por este tipo de teorias totalizantes e de fácil compreensão. Eu próprio o fui na minha época e por isso longe de mim criticá-los. Além disso, prefiro mil vezes que optem pela “visão” liberal e não na de um marxismo que quanto mais tenta parecer moderno mais limitado e desadequado se mostra. Tomara, portanto, que deem muitos votos e deputados à Iniciativa Liberal.
Mas, mais forte do que esta busca por enquadramento em doutrinas, há ainda em Portugal uma enorme necessidade das pessoas em se integrarem numa das duas tribos em conflito, a Esquerda e a Direita. É uma guerra sem quartel, em que qualquer hesitação ou dúvida numa identificação total é tratada como uma traição à tribo ou cobardia em enfrentar o inimigo. Que o diga Rui Rio, que logo num dos seus primeiros discursos como líder do PSD afirmou-se inabilmente como de centro, quando devia ter passado por cima da mania destas pessoas que andam com uma régua a medir quantos centímetros se está mais à esquerda ou à direita, como se com isso ficassem com uma ideia mais clara das políticas que vão ser seguidas. Só espero que, na altura de votar, fale mais alto a necessidade de sermos bem governados, por pessoas com inteligência, decência e bom senso, que sabem lidar com uma realidade que é sempre muito mais complexa do que as soluções maniqueístas esquerda/direita e do que aquilo que prescrevem ideologias que nos querem explicar o mundo.
Chove copiosamente na minha rua e quatro pessoas abrigam-se debaixo do toldo de uma loja. Hesito em chamar a Protecção Civil para as vir salvar e também as televisões para registarem a tragédia iminente. Ficaria como exemplo de como comportamentos de gente incauta, que sai à rua indiferente aos inúmeros AVISOS AMARELOS - que a Comunicação Social tão afanosamente divulgou para este fim de semana alargado - podem ter consequências destas. Ainda por cima, logo no sábado, dois acontecimentos tenebrosos deviam ter servido de aviso: rebentou uma conduta de água da Av. da Índia, em Lisboa, e caiu uma árvore numa linha férrea, já não me lembro onde. E os bombeiros receberam mais de mil ocorrências, embora pareça que nenhuma tão grave a ponto de ser individualizada nas notícias.
Eu próprio atrevi-me a ir ao mercado no sábado de manhã (mesmo tendo conhecimento do rebentamento da conduta de água, a minha irresponsabilidade é lendária) e fiquei a saber que, segundo os comerciantes, o movimento estava bem menor, provavelmente devido ao terror dos clientes perante os avisos amarelos. E muitas mais pessoas prudentes devem ter seguido os alertas, deixando de fazer outras compras, de estar com familiares e amigos, de viajar, de passear, de assistir a espectáculos, de fazer desporto, de ir a restaurantes, cafés, bares e discotecas. Mas o que interessam estes prejuízos sociais e económicos quando é a vida humana que está em causa? E se fossem submergidos por chuvas torrenciais, fulminados por raios, arrastados por correntes de lama ou por rajadas de vento ciclónico?
Entretanto, na minha rua, a chuva abrandou e as quatro pessoas abandonam o toldo salvador rindo e conversando, inconscientes do risco que correram. Quero ver, quando vier o próximo “aviso”, que há de ser laranja, se também vão ficar assim tão divertidos!
As autárquicas provocaram um debate sobre a validade das sondagens absolutamente delirante. Comentadores, analistas, jornalistas, políticos sublinham que elas são “retratos do momento” e não “previsões”, acusam de “iliteracia” quem as leva a sério e salientam as suas insuficiências: amostras erradas, respostas pouco sinceras, gente que já nem tem telefone fixo, gente que não abre a porta quando o inquérito é presencial, impossibilidade de medir a abstenção, falta de recursos das empresas de sondagens e por aí fora. Mas, e aqui reside o delírio destes especialistas, quem lhes manda continuar a basear as suas análises políticas (como ainda na noite das autárquicas se viu em relação às sondagens para as legislativas) nestas sondagens que afinal são de tão pouca valia, tão falíveis, decretando quem está “garantido”, quem “não tem hipóteses”, quem está “a crescer”, quem está “em queda”?
Para o delírio ser completo, consideram que estas opiniões não influenciam em nada quem os ouve e lê, como se em Portugal (e provavelmente em muitos outros países) não houvesse eleitores que avaliam a qualidade dos políticos pela sua capacidade de ganhar, que querem afastar os que parecem estar condenados a perder, que gostam de se colar a vencedores, que morrem de medo de estar associados a derrotados. Temia que um dia cairia na tentação de me citar a mim mesmo e esse dia vai ser hoje, transcrevendo um texto que escrevi na minha página no Facebook a 30 de Abril deste ano:
“Pós-graduações em conceituadas universidades europeias desabam perante 806 entrevistas telefónicas. Raposas felpudas do jornalismo político derretem com subidas ou quedas de 0,5%. Senadores do comentário empalidecem com margens de erro de 3,5%. Por cá, as sondagens são o alfa e o ómega da análise política. Para quem está bem nelas, tudo se justifica. Já para quem está mal, tudo é erro - quando se calam e quando falam -, tudo merece desprezo e troça. Claro que as interpretações das sondagens requerem bons actores, capazes de disfarçar a banalidade da “análise” – e, muitas vezes, a parcialidade – com ares de quem só eles conseguem compreender essa informação preciosa, essa explicação do mundo da política que partilham com “spin doctors” que no fundo invejam. Se as urnas vierem a desmentir as amostras, como tantas vezes se verifica, vamos em frente, nada acontece, ninguém perde a face, na próxima sondagem quem se lembrará? E a “opinião pública” dança ao som desta música porque, num país pequeno e pobre, apostar no cavalo errado é considerado sinal de pouca esperteza.”
Na minha rua e nas da vizinhança, trotinetas em cima do passeio que obrigam pessoas a circular pelo asfalto - como mostra esta fotografia tirada hoje – são o pão nosso de cada dia. Estava à espera que os candidatos à Câmara Municipal de Lisboa falassem dessa questão, bem como dos graffiti que emporcalham as paredes da cidade, do lixo colocado em sinistros e nauseabundos sacos pretos (quando não está directamente na rua) espalhados por todos os cantos, dos pontos de reciclagem transformados em lixeiras a céu aberto, muito por culpa dos restaurantes e das lojas das redondezas, a sujidade espalhada por todo o lado, inclusive nos “espaços verdes”, da poluição sonora das motas de escape aberto, das obras intermináveis (públicas e privadas) e outros assuntos comezinhos que afectam a qualidade de vida de quem aqui vive. Mas nada, até agora não vi nenhum candidato falar disso, são só “estratégias”, “visões”, “políticas de futuro”. E quem lhes faz perguntas parece sobretudo interessado nessas vacuidades ou se eles vão ser candidatos à liderança dos respectivos partidos e outros maquiavelismos.
É claro que eu sei que essas questões comezinhas não serão as mais importantes. A fundamental é a descaracterização urbanística e arquitectónica da cidade que dura há anos e anos. Mas quanto a isso não tenho ilusões. A nossa sociedade, seja por indiferença seja por até desejar essa “modernização”, nunca conseguirá travar o processo. Os candidatos sabem disso e nem perdem tempo com o assunto, refugiando-se, quando muito, em generalidades. Da minha parte, só espero conseguir terminar os meus dias sem ver Lisboa completamente transformada na “Dallas parola” para a qual já alertava Gonçalo Ribeiro Telles nos anos 80.
Aqui está um livro que não recomendo nem para as férias de Verão, nem para qualquer outra altura do ano. Uma história mal-ajambrada, personagens ridiculamente construídos, insuportáveis piscares de olhos à “modernidade”, tudo com muita pretensão à mistura. A provar que eu não percebo nada disto estão os jurados do Goncourt, que lhe atribuíram o prémio no ano passado, e inúmeros especialistas que muito elogiaram “A Anomalia”, do francês Hervé Le Tellier. Tenho como desculpa nunca ter apreciado literatura do género “fantástico”, e muito menos “ficção científica”, com uma ou outra excepção, desconfiando sempre de autores para quem a realidade não basta como ela é.
Parece-me, no entanto, que estou cada vez mais em minoria, a julgar pelo êxito que este tipo de ficção obtém junto do público em geral. Antes reservados a determinados e respeitáveis nichos de apreciadores, o “fantástico” e a “ficção científica”, assim como o “terror”, invadiram as nossas sociedades. Basta ver a quantidade de filmes e séries televisivas (às vezes, com base em livros), que se produzem para um mercado massificado, em que há robots, gente metade humana metade máquina, gente que viaja no tempo, que vem do passado, que vem do futuro, que lê pensamentos, que voa, que tem “superpoderes”, que vem de outro planeta, que prevê acontecimentos, adultos que voltam a ser crianças, crianças que se transformam instantaneamente em adultos, mortos que voltam à vida, vivos que afinal estão mortos. E ainda vampiros, zombies e lobisomens por todo o lado. Não sei o que isto diz do mundo em que, de facto, vivemos, mas coisa boa não é.
Estou bastante decepcionado com os comentários que tenho ouvido sobre a abstenção de 60% nestas presidenciais – percentagem para a qual contribuí alegremente, como já tinha feito para os não-pandémicos 51% de 2016 e os 53% de 2011. Em vez de, como de costume, esta opção da maioria absoluta do eleitorado em mandar à fava os candidatos semi-presidenciais provocar a necessidade de uma “profunda reflexão”, agora há um sentimento de alívio por a abstenção não ter sido ainda maior. Foi a pandemia, foi não sei quê com cadernos eleitorais e emigrantes, foi as reeleições serem sempre menos participadas (esquecendo, claro, os 70% com que Mário Soares conseguiu o segundo mandato em 1991).
Políticos, comentadores e demais especialistas que passam horas a examinar meticulosamente sondagens garantem-nos que “esperavam muito pior”. Pois eu esperava muito melhor, porque confiei em sondagens meteorológicas e queria ver a abstenção superar os 70%, já que não estava a ver o eleitorado esperar em filas ao ar livre, à chuva e ao vento previstos, para cumprir o seu “dever cívico”.
Por falar em “civismo”, parece que é isso que nos falta a nós abstencionistas em presidenciais. Isso e não sermos suficientemente espertos, deixando que “outros decidam por nós”. Claro que não mereceríamos essas classificações se apoiássemos candidatos do comunismo, do venturismo ou do tinoismo. Ou se fossemos contribuir com o nosso voto para eleger semi-presidentes de uma república falida, venal, imbecilizada com esquematismos esquerda x direita, que nem sequer consegue identificar os motivos da sua decadência, quanto mais mudar de rumo para os ultrapassar. E vamos mas é avançar, porque temos de novo um “presidente de todos os portugueses”, eleito, de facto, por 23% dos eleitores.
Nota: Quadro de abertura retirado da página de Facebook de Nuno Garoupa
Já li, sem nunca ter vontade de parar, as mais de 850 páginas de “M – O Filho do Século”, de Antonio Scurati, a “biografia ficcionada” ou “romance documental” sobre Mussolini, que incide sobre os anos que vão de 1919 a 1924, quando conquista o poder. É um excelente livro e aprendi imenso sobre um período e uma personagem a que nunca tinha dedicado grande atenção. A primeira coisa que mais impressiona é o grau de selvageria com que os fascistas actuam, com execuções sumárias de adversários, muitas vezes com requintes de crueldade - como, por exemplo, matar pais em frente aos filhos - batalhas de rua, queima de edifícios, fazendo da apologia da violência um programa político. É certo que, do outro lado, estavam socialistas radicais (a cisão que daria origem ao Partido Comunista Italiano ocorreria em 1921) que davam vivas a Lenine e agiam muitas vezes com igual violência sobre quem consideravam adversários, incluindo os militares regressados da Primeira Guerra, que acusavam de ter lutado numa “guerra burguesa”. Uma época de barbárie.
A segunda coisa que mais me surpreendeu no livro foi precisamente a proximidade que há entre os primeiros fascistas e os socialistas/comunistas. Achava que a passagem de Mussolini pelo Partido Socialista Italiano tinha sido episódica, um “desvio de juventude” como tantos tiveram. Qual o quê. O futuro Duce nasceu em 1883 e desde 1902 - então emigrante na Suíça - que militava pelo socialismo (aliás, o seu pai era um operário socialista) e, quando voltou a Itália, continuou a defender a revolução socialista e o derrube do capitalismo, à boa maneira bolchevique, chegando a director do “Avant!”, o jornal oficial do partido. Só em 1914 foi expulso, não por grandes divergências ideológicas, mas sim porque defendeu a intervenção de Itália na Primeira Guerra, contrariando a direcção socialista.
Para se ter uma ideia, em 1919, o programa dos “Fasci di Combattimento”, conforme o livro revela, inclui muitos temas caros aos socialistas revolucionários: jornada laboral de oito horas, salário mínimo, representação sindical nos conselhos de administração, gestão operária das indústrias, distribuição aos camponeses das terras não cultivadas, impostos extraordinários de carácter progressivo sobre o capital, confiscação de todos os bens das congregações religiosas, entre várias outras medidas de que nenhum bolchevique desdenharia. Aliás, não era só Mussolini, também outros dos principais dirigentes fascistas vinham das fileiras do socialismo revolucionário, caso dos influentes Cesare Rossi, Michele Bianchi, Giovanni Marinelli, Roberto Farinacci ou Mario Giampaoli. Já no poder, Mussolini funda a sua polícia política, a Ceka, inspirado na Tcheka de Lenine. Só mais tarde, precisamente por darem combate violento aos “vermelhos”, os fascistas - que tiveram resultados ínfimos nas eleições - passariam a ser oportunisticamente apoiados por latifundiários e industriais, iniciando-se a viragem à direita.
Devo ainda referir outro facto que me impressionou no livro, tanto mais que sou monárquico. A inacção quase cúmplice com que o rei de Itália permite a “marcha sobre Roma” (na fotografia) e a ascenção e consolidação no poder de Mussolini, não se fazendo valer dos seus poderes constitucionais para defender o regime democrático. Tenho a impressão que é um dos piores exemplos da actuação de um monarca europeu no século XX e devíamos estudar mais o caso e aprender com ele.
Parece que Antonio Scurati está a preparar, ou já tem preparados, dois novos volumes sobre Mussolini que dão continuidade a este. Mal posso esperar. É bom ver confirmadas em obras destas as razões porque sou alérgico a “movimentos de massas”, sejam de esquerda sejam de direita.
Já despachei os sete episódios de “O Gambito de Rainha”, minissérie da Netflix. É muito bem feita e representada, embora a história seja banal, do tipo “jovem heroína vence todas as adversidades, apesar de vir de baixo, graças a uma vocação extraordinária”. É uma espécie de “Karate Kid” do xadrez, filme de êxito nos anos 80, que motivou várias sequelas. Adivinho que este “Gambito” também terá mais temporadas, porque de facto a fórmula funciona e eu vi a série com rapidez e agrado, facto ao qual o recolher obrigatório não é alheio. Ao que consta, a minissérie está a causar interesse pelo xadrez um pouco por toda a parte, sobretudo entre os jovens, o que é louvável. O mais estranho é que, apesar de ter consultores ilustres (como o antigo campeão Garry Kasparov), pareceu-me que quase não se aprende sobre o xadrez, nem se percebem as jogadas para quem vê a série descontraidamente. Talvez voltando atrás, parando as imagens e analisando-as, mas não estou para isso.
Foi impossível não me lembrar do celebérrimo encontro entre Boris Spassky e Bobby Fischer, ocorrido em Reiquiavique em 1972, que, embora só tivesse 9 anos de idade, acompanhava todas as noites nas reconstituições que a RTP de então transmitia em horário nobre. Sete anos mais tarde, acompanhei no Rio de Janeiro, onde vivia, um torneio interzonal (uma espécie de eliminatória para decidir quais os candidatos a desafiar o campeão) e vi como o xadrez pode ser absorvente. Durante mais de três semanas, para mim e alguns amigos adolescentes igualmente entusiastas pelo xadrez, o mundo esteve todo no Copacabana Palace – o fantástico hotel onde decorria o torneio – e, quando não estávamos lá, íamos para casa uns dos outros reconstituir as partidas e discutir as peripécias do dia. Encontrei na Internet um recorte de um jornal da altura, em que estão os participantes, que acima reproduzo. Foi ganho pelo húngaro Lajos Portisch, ficando em segundo o soviético-arménio Tigran Petrosian, que já tinha sido campeão do mundo, perdendo o título precisamente para Spassky, em 1969. Pude então confirmar algo que se vê no “Gambito”, que os jogadores soviéticos, apesar de competirem entre si, se ajudavam mutuamente nos intervalos das sessões. Lembro-me de ver Petrosian, sempre acompanhado pela mulher, numa sala à parte a analisar as suas partidas com Balashov e Vaganian. Rezavam as más-línguas que estas sessões se prolongavam noite fora, com muita vodka à mistura.
O que me pareceu pior na série da Netflix foi dar a ideia que tudo se resolve numa só partida, quando é quase sempre em longos (e, por vezes, enfadonhos) encontros com várias partidas. Mas aceito que, para a economia dramática da ficção, resultasse melhor desta maneira. Há ainda algo que continua a intrigar-me: porque é que existem campeonatos só para mulheres? Sendo-lhes permitida a participação dos campeonatos ditos “masculinos” - como se vê na série - e não havendo as razões físicas que motivam a separação entre sexos noutras modalidades, julgo que é extremamente sexista organizá-los. Deve haver uma boa explicação, sobretudo quando temos no mundo de hoje tanta atenção a estes assuntos (e ainda bem), mas não consigo encontrá-la.
Não conheço ninguém, absolutamente ninguém, que à direita não esteja desiludido, ou até mesmo zangado, com Marcelo Rebelo de Sousa. O que não deixa de ser extraordinário. É claro que na hora das eleições muitos destes eleitores, por falta de opções, poderão acabar a votar nele - e que terá conquistado muitos votos entre os socialistas -, mas a verdade é que é quase impossível que se reeleja com os miríficos mais de 70% com que, segundo os entendidos, ambicionava superar o Soares do segundo mandato. Além disso, 70% de quê? Nas últimas eleições presidenciais, a abstenção foi de 51,3%, na anterior foi de mais de 53%. Pelo menos, no tempo de Soares (1991) era “apenas” de 38%. Nas próximas, com a direita neste estado de espírito e com a pandemia a ajudar, vamos ver com quantos votos vamos eleger o “presidente de todos os portugueses”.
Talvez Marcelo esteja a debater-se interiormente (“sou tão bom, tão inteligente, sei tanto de política, que seria um pecado privar os portugueses da luz com que os ilumino”), mas parece-me agora mais plausível a hipótese de ele não se recandidatar e deixar, como ouvi por aí, a tarefa para Leonor Beleza. Sendo pessoa que admiro, não me faria deixar de ser abstencionista nas presidenciais, porque a acho mal empregada para tão funesto cargo. Como, aliás, Marcelo e Cavaco já o foram.
Numa entrevista nesta semana, o novo director do ABC (Julián Quirós, na foto) afirma que o jornal pretende “atender e inspirar as amplas camadas liberais e conservadoras da sociedade espanhola”. Mais adiante, sublinha que o jornal não está “subordinado aos partidos”. Imagino que se a entrevista fosse com um hipotético novo director do El País, este diria que iria “atender e inspirar as amplas camadas socialistas e progressistas”. Sinto falta desta clareza e pluralismo na Comunicação Social portuguesa, onde quase todos os meios têm redacções com a mesma mundividência, basicamente de esquerda, que implica as mesmas agendas, as mesmas hierarquizações de temas a desenvolver, as mesmas fontes, a mesma confusão entre o que é seguir uma tendência politica e o servir partidos. Até aqueles meios que, por causa das secções de Opinião, julgamos que são diferentes, mas cuja informação praticamente não se distingue da enfadonha mesmice instalada.
Marcelo cola-se a António Costa porque António Costa é popular. Se não fosse, não se colava. Não percebo porque se perde tanto tempo a analisar as evidências do nosso lindo e original sistema semi-presidencial, que prevê eleições directas para a presidente da República. Parece que na minha área política, as melhores cabeças se ocupam em arranjar um candidato alternativo, alguém que nos venha vingar das derrotas nas urnas nas eleições legislativas. A “dupla legitimidade” do voto no seu esplendor, o país que se lixe. Outros apostam em fortalecer Marcelo para ele combater São Bento a partir de Belém num segundo mandato redentor. E o país que se entretenha a assistir, deliciado, a quem melhor esgrime o florete no duelo.
Eu compreendo perfeitamente que nem todos consigam ser monárquicos – foram demasiadas aulas a mostrar os sentidos em que a História progride, demasiado filmes e séries de Hollywood -, mas ao menos os republicanos podiam parar um pouco para pensar se, depois de 44 anos (quarenta e quatro anos) de semi-presidencialismo, não seria melhor adoptarmos um sistema parlamentar, com eleições indirectas para presidente, como, por exemplo, acontece na Alemanha ou Itália. Ou então que se presidencialize o regime de uma vez, como se fez em França.
Não percebo como gente inteligente e que ainda tem esperanças no futuro do país, não tire nenhuma ilação do que aconteceu nas eleições presidenciais da nossa III República. O resumo é rápido de fazer: Eanes, hoje santificado pela nossa proverbial falta de memória, fez a vida negra aos primeiros-ministros eleitos, Soares e Sá Carneiro, e acabou a patrocinar a partir de Belém um partido inspirado na sua figura. Soares apoiou Cavaco no primeiro mandato - desiludindo o PS, despachando Vítor Constâncio e acabando com o partido de Eanes – e fez tudo para o derrubar no segundo. Sampaio colaborou activamente no descalabro guterrista, dissolveu a maioria absoluta de Santana, lançou Sócrates. Cavaco - o primeiro presidente de direita, que ia finalmente mostrar as virtudes do semi-presidencialismo português – deixou Sócrates à solta no primeiro mandato, foi impotente para contê-lo no segundo, quando o desvario já era evidente, e acabou por não conseguir impedir a geringonça. Marcelo é o que se vê. Acham, realmente, que agora é vai aparecer alguém que vai mostrar as grandes vantagens nosso ridículo e medíocre semi-presidencialismo?
Nada como um período de confinamento obrigatório para me poder dedicar, sem sentimentos de culpa, a puzzles de 1000 peças. Gosto especialmente daqueles que reproduzem obras de museus que vou visitando, comprados nas lojas à saída. Neste momento, todas as atenções vão para o “Jardim das Delícias”, de Bosch, adquirido no Museu do Prado, em data que já não recordo, mas que milagrosamente se encontrava ainda por fazer aqui em casa.
No Inverno passado, tinha sido a vez do “Bom Governo” (“Effetti del Buon Governo in città ed in campagna", na fotografia, depois de concluído), fresco de Ambrogio Lorenzetti que figura numa das paredes da Sala da Paz, também chamada do Conselho dos Nove, do Pallazzo Pubblico, sede do antigo poder em Siena, contrastando com uma parede oposta, que representa o “Mau Governo”, pintados entre 1337 e 1339. Quando vi estes espectaculares frescos, uma alegoria dos efeitos da boa e má governação, ocorreu-me que bem perto dali, em Florença, cerca de 150 anos depois, Maquiavel escreveria “O Príncipe”, obra de mérito que dispensa defesa, mas que teve o condão de influenciar mal analistas, jornalistas e comentadores políticos dos séculos XX e XXI, que vêem nele um manual para interpretar a acção dos governantes, admirando sobretudo aqueles que melhor se equilibram no poder e destroem os adversários. O julgamento da boa ou má governação passou para segundo plano, para o da “ingenuidade” dos frescos de Siena, já não interessa a pintores nem a ninguém.
Mas o importante aqui são os puzzles. Que têm vantagem de poderem ser acompanhados por música e até ocasionarem danças celebrativas, motivadas pelo encaixe de peças mais difíceis de encontrar.
Presentes ao acto, da esquerda para a direita, o Fundador, Miguel Morgado, Vasco Rosa, Henrique Pereira dos Santos, João Távora, Maria Teixeira Alves, Vasco Mina e João Afonso Machado
Foi ainda na fase gin tónico que eu alvitrei um renascimento da blogosfera motivado pelo desencanto de gente civilizada pela superficialidade do Facebook, Twitter e Instagram. Desafortunadamente, senti logo que os meus digníssimos colegas do Corta-fitas que se encontravam presentes não acompanhavam com grande entusiasmo este optimismo. Julgo que recebi mesmo um ou outro olhar de esguelha. Pareciam pensar: “Olha este, que já não escreve um post nem quando o rei faz anos, agora vem com histórias...”. Creio que decidiram mesmo punir-me, obrigando-me a escrever este relato do jantar. Mas eu, valendo-me do meu estatuto de fundador que resta do blog, vou fazê-lo só pela rama. É para aprenderem a não me encarregarem de assuntos sérios.
Estávamos nas cercanias do Parlamento, no simpático restaurante Parlatório, na Rua de São Bento, e esperávamos pelo nosso convidado, Miguel Morgado, sem dúvida uma das vozes mais interessantes que existem no Portugal não-socialista. Empenhado em construir uma “federação de direitas”, tendo já fundado o Movimento 5.7, a sua intervenção tem muito a ver com o que tem sido a vivência deste blog desde que surgiu, em pleno primeiro mandato de José Sócrates, quando, tal como acontece um pouco hoje, parece que quem não é de esquerda não é bem visto em Portugal. No mínimo. Ora no Corta Fitas sempre albergámos diversas maneiras de ser não socialista, desde que tolerantes e respeitadoras da democracia burguesa.
Foi na fase vinho branco que a conversa com o convidado se desenvolveu e Miguel Morgado não desiludiu. Entre bacalhau à Brás, rosbife e empadão de vitela, trocámos impressões sobre o futuro do CDS, PSD e Iniciativa Liberal, sobre a Comunicação Social portuguesa, comparámos a governação socialista com a de Passos Coelho (à qual Miguel Morgado pertenceu), sobre as dificuldades de ser de direita entre nós, quando muitas vezes até falta apoio de quem naturalmente pertence a este espaço, e sobre várias outras coisas de que agora não me lembro.
Lembro-me sim do que achei na altura e que confirmou o que já conhecia do nosso convidado. A sua geração apresenta uma série de pessoas bem-educadas, cultas e desassombradamente não-socialistas, que estão - ou estiveram - na política pelos melhores motivos. Mas nem todas possuem uma grande qualidade que me parece distinguir Miguel Morgado, a combatividade. Atrever-me-ia mesmo a considerar que ele gosta do cheiro a pólvora, que nunca se queixa de se ter metido na política partidária, sabendo de antemão o que isso implica. Por outro lado, também se distingue por não se deixar limitar e intimidar pelo discurso da esquerda. Não esperem dele frases que comecem com “sou de direita, mas em certas coisas...”, perdendo tempo em intervenções públicas a justificar que não é “ultramontano” ou que não tem nada a ver com salazarismos ou regimes autoritários afins. Nele é tão evidente que não precisa de ser enunciado.
Tivemos, portanto, um convidado excepcional e, a julgar pelo tempo que demorou e pela animação das conversas, fico com a ideia de que Miguel Morgado também gostou da jantarada. Venham mais como ele e nós cá continuaremos a estar no Corta-fitas para os ouvir. Afinal, digam o que disserem os moderninhos, os blogs ainda são o melhor lugar para estar.
Nota: O nosso convidado bebeu só uma (1) cerveja
Julgava que era como cuspir para o chão, tinha felizmente desaparecido no Portugal actual. Mas não, por cá nunca podemos dar nada por adquirido e nos últimos tempos sou frequentemente sobressaltado com canos de escapes extremamente ruidosos, quase sempre de motos. Os problemas que isto causa numa sociedade civilizada são tão evidentes que me dispenso de enumerá-los. Parece que, além de absoluta falta de civismo e de bom gosto, são também sintomas de impotência sexual e de imbecilidade, segundo especialistas que já vi citados. E são também ilegais, mas isso em Portugal não quer dizer nada.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.
> Quem ataca o Jornalismo? A questão é a invers...
Acho que não percebeu a substancia do texto...
O jornalismo saiu do papel e da tv e estabeleu-se ...
Os gastos em Defesa e a crise europeia (do articul...
O Público é o jornal de referência de uma elite bu...