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Um mínimo de brio profissional

por henrique pereira dos santos, em 30.08.22

Compro todos os dias, de manhã, o Público em papel (o que não quer dizer que o leia logo, posso lê-lo vários dias depois, um exercício que todos os jornalistas deveriam fazer periodicamente para aferirem da real importância do que escrevem, meia dúzia de dias depois de o terem feito).

Li agora uma notícia sobre a recuperação da serra da Estrela e resolvi quebrar a minha resolução de mais ou menos me reformar da discussão pública sobre fogos.

Primeiro estranhei por que razão o Público apresentava uma distribuição de percentagem de áreas ardidas por concelho, falando nos mais de 50% ardidos do concelho de Manteigas, acrescentando depois uma série de freguesias de outros concelhos, incluindo duas do concelho de ... Manteigas.

Fui verificar, é uma transcrição da resolução de conselho de ministros sobre a qual é feita a notícia e, pelos vistos, o Público acha normal transcrever enganos sem fazer notar que são um enganos.

Estranhei ainda mais 12% de área ardida "improdutiva", que se soma a áreas urbanas (pelos vistos só eu é que estranho 9% de área urbana ardida numa região de baixíssima densidade urbana e em que praticamente não arderam casas), áreas de povoamentos florestais, matos e pastagens, áreas agrícolas, mas o Público deve achar normal 12% de área ardida improdutiva que não é nem matos, nem pastagem.

E por achar isto tudo estranho, somei as percentagens e só dava 90% da área ardida.

Fui à resolução de conselho de ministros tentar perceber o mistério.

Desta vez o Público tinha achado demais que 10% de área ardida fossem águas interiores e, portanto, em vez de sinalizar essa estranheza, retira esses 10% da área ardida e pronto, fica uma notícia só sobre 90% da área ardida (note-se que 10% da área ardida são dois mil e duzentos hectares, que a resolução de conselho de ministros diz que são águas interiores ardidas, informação sobre a qual o Público passa como cão por vinha vindimada).

Até aqui é apenas a falta de brio profissional, quer da administração pública que produz resoluções de conselho de ministros com este rigor, quer dos jornalistas que a reproduzem sem maior sentido crítico que omitirem 10% da área ardida de águas interiores.

O que verdadeiramente me chateia é a conversa sobre o turismo e os fogos (nem falo dos restantes cinco eixos de intervenção porque estou cansado de conversa para boi dormir).

O turismo, em Portugal, para lá do Sol e Praia, é uma actividade dependente, em grande medida, da qualidade da paisagem envolvente.

No entanto, o Turismo, globalmente enquanto sector, e de maneira geral os seus operadores, não sabem, nem querem saber, como podem contribuir para a gestão da paisagem que lhes interessa, quer nas actividades de filantropia que levam a cabo, quer na operação do seu negócio, nomeadamente no padrão de consumo da restauração.

Mesmo operadores de turismo em que os custos dos produtos no custo final da refeição são bastante limitados, como acontece nas gamas de mais alta cozinha, resistem ferozmente a pagar mais pelos produtos cuja produção é responsável pela gestão da paisagem de que dependem.

O mesmo se pode dizer dos autarcas.

Fui, com muito gosto, um ano ao Imaginature (obrigado Luís Afonso pelo convite), fui muitíssimo bem tratado, mas num festival que tem como um dos objectivos a promoção da paisagem de Manteigas, nada remete para a gestão da paisagem, no que diz respeito à afectação dos recursos.

Eu acho óptimo que tenham produzido bons materiais de comunicação, tenho ali a caneca que me deram e de que gosto, mas continuo a achar que dar um queijo da serra é mais útil para a gestão do fogo que dar uma caneca, embora reconheça que o queijo há muito teria desaparecido e a caneca ali continua a fazer publicidade a Manteigas.

Tal como ter queijo da serra nas ementas das escolas do concelho, tal como dar aos miúdos da escola carne proveniente dos rebanhos que gerem a paisagem, tal como levar os miúdos a passar dois ou três dias no meio dos rebanhos dentro do seu programa escolar, etc., etc., etc..

Ou ter programas de transporte a pedido, em vez de andar a fazer baloiços, miradouros e passadiços, que não compete aos poderes públicos fazer: os operadores de turismo que infraestruturem o território para a sua actividade, que é uma actividade lucrativa e competitiva, ao contrário das actividades que gerem a paisagem das quais os operadores de turismo vivem (se houvesse dúvidas de que vivem dessas paisagens, bastaria ouvir os operadores turísticos queixarem-se dos prejuízos dos incêndios para perder quaisquer dúvidas sobre isso).

Alguma vez os operadores se puseram de acordo para entregar 1% das receitas das suas actividades para o pagamento dos serviços de gestão de paisagem que outros operadores, de outras fileiras económicas, lhes prestam à borla?

Como disse no princípio, estou a ver se me reformo desta discussão pública sobre fogos, mas ver o dinheiro público ser desviado para o sector do turismo, deixando de fora o pagamento da gestão da paisagem, indigna-me tanto, mas tanto, e há tanto tempo (já em 2017 protestei quando se fez o mesmo), que achei justificada esta interrupção na interrupção que gostaria de fazer da minha participação na discussão sobre o assunto.


13 comentários

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De Anónimo a 31.08.2022 às 15:01


Será que os proprietários rurais, ao limpar as suas terras, das quais não tiram qualquer rendimento e que para o fazer recorrem a dinheiro vindo de outro lado, também estão a fazer investimento público?
É que desse investimento, há muita gente, direta e indiretamente, até quem reside nas cidades pelo oxigénio que respira, a beneficiar desse seu trabalho e para o qual nada investe!
Será que isto também pode ser considerado escravatura?

Ou pelo menos aproveitamento do investimento alheio?...

E não venham com a ideia, que a solução seria a nacionalização dessas terras, pois há exemplos suficientes do que  aconteceria!

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