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Um longo processo de "estranhamento"

por henrique pereira dos santos, em 12.11.24

Talvez eu devesse ter optado por um título mais claro, "um longo processo de distanciamento", mas, por razões que desconheço, foi de estranhamento que me lembrei.

O meu desconforto com a palavra levou-me a este artigo da wikipedia, bem interessante, aliás, que acabou por determinar a opção de usar a palavra, mas com aspas, para assinalar o meu distanciamento em relação a estranhamento.

O post não pretende ser sobre linguagem, é sobre o que hoje se chama, administrativamente, ordenamento do território, em Portugal.

Eu sou arquitecto paisagista, mas nunca projectei jardins (com uma excepção nos espaços exteriores do ATL dos meus filhos, em Rio Maior, e mesmo esse com um erro de execução da minha responsabilidade), sempre trabalhei em ordenamento do território.

Acontece que a esmagadora maioria da minha vida profissional esteve ligada à conservação da natureza e, progressivamente, a componente de ordenamento foi perdendo valor para a componente de gestão da paisagem, para o que não terá sido irrelevante ter trabalhado com quem trabalhei logo no princípio, quer Robert de Moura, quer Ilídio de Araújo, numa altura em que várias vezes o ouvi defender (e está documentado numa conferência cuja intervenção está registada por escrito) que o essencial do planeamento era o que sobraria se no dia da apresentação do plano um mafarrico qualquer queimasse todos os elementos materiais do plano.

Esta ideia de que os processos são mais relevantes que os resultados (que é, também, aquilo que define a democracia) acompanhou-me sempre, empurrando-me para a gestão.

Por essa razão fui perdendo o interesse nas discussões académicas e profissionais em torno do que hoje é o ordenamento do território em Portugal, um conjunto de procedimentos burocráticos que se cristalizam em normas administrativas cujo objectivo é levar outros a fazer o que os técnicos entendem que é necessário para criar as paisagens que os seus preconceitos definem como ideais.

Hoje, por mero acaso, e contra o que seria a minha primeira opção, li este texto.

"Analisando os municípios ao nível do regime jurídico que teve por base a publicação do PDM, é possível observar que 91 municípios ainda têm PDM ao abrigo do DL nº 69/90 (37% da área do país e 23% da população). Apenas 13 municípios têm PDM aprovados à luz do DL 380/99 (5% da área do país e 4% da população). A grande maioria (137 municípios) foi aprovado com base no DL nº 316/2007 (42% da área do país e 58% da população). Finalmente, apenas 37 municípios foram aprovados à luz do regime mais recente (DL nº 80/2015) (16% da área do país e 15% da população)".

O texto é todo ele sobre quem cumpre qual legislação, em quanto tempo, ao fim de não sei quantos adiamentos, sendo a única referência a resultados concretos uma coisa quase lateral: "A comparação da evolução dos valores médios de venda por metro quadrado em cada município até final de 2023, não permite estabelecer uma correlação num maior aumento dos valores de mercado em municípios com PDM mais recentes / a cumprir as regras atuais. Ou seja, a redução de solos urbanos e uma teórica falta de solo urbano, não parece ter nestes dados uma correlação estatística".

Não tenho nada contra o texto, que é bastante bom, apoiado num conjunto de mapas catita, mas, e esse não é um problema do autor do texto (João Correia), é uma longa ladainha sobre legislação em permanente movimento para tentar resolver o permanente incumprimento que se verifica.

Quando ninguém cumpre uma norma, ao ponto das normas se tornarem irrelevantes, não é a altura de concluir que o problema não está nas pessoas e nas comunidades, mas no facto das normas não serem reconhecidas como úteis pela sociedade, provavelmente por serem um caminho errado para obter o resultado que se pretende?


6 comentários

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De G. Elias a 12.11.2024 às 12:55

Revejo-me totalmente no teu último parágrafo e penso que isso se aplica a uma data de matérias: quando as pessoas não acreditam nas leis que têm, a tentação para não as cumprir é grande.


Um exemplo prático de um domínio completamente diferente: temos uma lei do ruído que proíbe, entre outras coisas, que sejam feitas obras nas habitações ao fim-de-semana. Na prática, muita gente escolhe exactamente o fim-de-semana, por ser nessa altura que tem disponibilidade para realizar as ditas obras e aparentemente a sociedade lida razoavelmente bem com esse incumprimento sem levantar grandes ondas. Portanto dir-se-ia que a lei não reflecte o pensamento da sociedade sobre essa matéria. Curiosamente, há coisa de um ano, e estando eu um bocado irritado pelo facto de uma obra perto de minha casa estar a ser realizada aos fins-de-semana, interpretei uma patrulha da gnr a perguntar qual era a procedimento para lidar com essas situações. Com grande espanto meu, o agente desconhecia a lei e pensava que ao sábado se podia fazer obras.
Conclusão: quando até os agentes da autoridade desconhecem a lei, então é porque há aqui alguma coisa errada...
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De passante a 12.11.2024 às 18:32

até os agentes da autoridade desconhecem a lei


O inglês às vezes dá jeito para cotejar conceitos. Em inglês americano usa-se muito a expressão "law enforcement" para referir polícias de variadas agências (FBI, policia estatal, policia local, "sheriff", "rangers", etc.)


O agente da lei não é obrigatoriamente um legista - está treinado nos procedimentos de fazer cumprir a lei, mas não nos detalhes desta, que terá de averiguar nos casos que não forem rotineiros.


A chatice em Portugal é que se passam, ou mudam, leis abundantemente, mas como se o seu cumprimento fosse graça divina, e não tivesse de ter mecanismos de aplicação - o tal "law enforcement".


É como passar cheques em branco: "Don't let your mouth write cheques your ass can't cash" é outro conceito útil 
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De G. Elias a 12.11.2024 às 23:57

Concordo que o agente da autoridade não tem de conhecer as leis e muito menos de cor. Mas uma coisa é não saber, outra muito diferente é pôr-se a inventar.
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De Anonimo a 14.11.2024 às 07:29

Os deputados também desconhecem a s leis, e fazem-nas
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De Anónimo a 12.11.2024 às 14:15


Se ninguém cumpre uma norma isso talvez não seja por a norma ser tomada como irrelevante pela sociedade, mas porque quem deveria impôr a norma não tem a diligência necessária.
Isso verifica-se, por exemplo, nos licenciamentos. Se as entidades estatais não licenciam as atividades com a necessária diligência (rapidez), então as pessoas tentam levar a cabo as atividades à margem da lei - não porque não reconheçam a utilidade da lei, mas sim porque quem a deveria impôr não se mexe com a celeridade devida.
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De Anónimo a 13.11.2024 às 10:36

O Estado português está transformado numa gigantesca geringonça burocrática (caríssima), onde os reais valores (de toda a ordem) se encontram submersos. Hoje, não interessa que haja bons técnicos na Administração. Interessa bons técnicos administrativos que mantenham o rodopio de requerimentos, pedidos de parecer, submissões a isto e àquilo, verificação do cumprimento de normas de todo o género, ineficazes e inadaptadas a objetivos sem jeito nem qualquer lógica e a um futuro que não se persegue, sem rumo.
E a máquina roda e roda e ai de quem a impeça de rodar. De rodar em falso, claro. Os nossos recursos não chegam para a alimentar? Venham de lá mais fundos europeus..! Somos um verdadeiro buraco negro da Europa. Muito triste!

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