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Fico sempre surpreendido com a facilidade com que alguém lê que se defende um jardim no Terreiro do Paço quando se defende que seja realmente um espaço público, usado pelas pessoas comuns, em vez de ter quatro hectares de espaço de circulação desperdiçado em abstracções assentes num hipotético valor simbólico.
Aquilo é, e sempre foi, um terreiro, tal como o Rossio é e sempre foi um rossio.
É um terreiro que deixou de ser as traseiras da cidade quando D. Manuel mandou fazer o Paço da Ribeira (da ribeira das Naus, à ilharga de um estaleiro ou arsenal, como lhe queiram chamar, uma espécie de Lisnave da época, para se ter melhor a ideia do valor simbólico que esteve na sua génese), tal como a zona oriental de Lisboa deixou de ser a margem operária e fabril que foi até há uns trinta anos atrás.
Mas continuou a ser um terreiro, mal frequentado, sujo, dinâmico, perigoso, que o poder usava, porque tinha espaço livre, para autos de fé, cortejos nupciais reais e outras celebrações colectivas e tão perigoso que foi mesmo aí que foi assassinado D. Carlos, porque esse terreiro não era o silêncio e a ordem hierática que querem fazer dele, pelo contrário, quando a cidade lhe virou costas, voltou a ser um mero parque de estacionamento nas traseiras de Lisboa.
Sim, o Marquês de Pombal, um déspota corrupto, tentou fazer do terreiro um símbolo do seu poder (por interposto D. José), aproveitando o terramoto de 1755 para reconstruir e reforçar o centro de poder de acordo com o seu programa político, até lhe passou a chamar Praça do Comércio, mas aquilo continuou a ser o que sempre foi, o Terreiro do Paço, onde tudo o que chegava do império passava, fossem mercadorias, pessoas, ideias, de forma caótica e indomável.
A opção saloia de dar dignidade ao espaço, considerando que as fachadas do edifício e o valor simbólico definem o Terreiro do Paço, portanto tudo o resto deve ser arredado para não prejudicar a leitura do espaço - mas qual leitura, senhores? As pessoas usam quartos, salas, jardins, ruas, praças, rios, matas, por razões bem mais fortes que a facilidade de leitura dos limites que definem esses espaços - transformou aquilo numa ruína funcional, um espaço de circulação inóspito e inabitável.
Quando a propósito desta opinião se diz que se quer fazer um jardim no Terreiro do Paço, fico sem saber o que dizer, mas talvez me seja útil usar alguns exemplos.
Quando o poder decidiu que a envolvente da Torre de Belém precisava de ser requalificada (ver a fotografia, dos anos 50, para perceber bem porquê), Cotinelli Telmo desenhou uma proposta, que incluía uma alameda ladeada de estatuária dedicada aos heróis dos descobrimentos, ou seja, achou que o valor simbólico e a qualidade arquitéctónica da Torre de Belém deveriam presidir à intervenção.
Felizmente Viana Barreto, o mesmo Viana Barreto que é o principal projectista do jardim da Gulbenkian tinha outras ideias para o espaço que, respeitando integralmente a Torre de Belém, não o sacrificasse a ideias retrógadas de necessidade de afirmação do poder, mas o devolvesse às pessoas comuns, quotidianamente, do que resultou o que lá está.
Se alguém quiser comparar, é dar um saltinho à Praça do Império, ou lá como se chama aquela porcaria que está entre os Jerónimos e o Padrão dos Descobrimentos, que periodicamente volta à discussão, sem que seja possível tornar socialmente forte uma ideia simples: aquilo não vale um caracol, não serve as pessoas comuns, não serve os Jerónimos, não serve o Centro Cultural de Belém, não serve os turistas, não serve nada que não seja a abstracção do valor simbólico, e outras patranhas semelhantes, e o que é preciso é devolver esse espaço ao quotidiano das pessoas comuns, redesenhando-o com esse objectivo.
Se Viana Barreto tivesse as mesmas ideias, a envolvente da sede da mais importante fundação portuguesa teria sido, provavelmente, desenhada para destacar o edifício e espelhar a dignidade da fundação, mas felizmente os tempos eram outros e o que a fundação queria não era propriamente esmagar os visitantes com a imponência da sua sede, mas que a sua sede fosse um espaço público vivo, o que a levou a optar (depois de um concurso) por uma solução em que edifício e jardim são uma e a mesma coisa, orientadas para o uso quotidiano e não uma manifestação de poder, glória e dignidade da fundação.
Por essa razão, a proposta que ganha o concurso tem uma escala humana e é desenhada para pessoas concretas, a partir do que já existia.
E, felizmente também, depois de ganho o concurso com o seu plano geral, Viana Barreto convida o seu amigo Ribeiro Telles, que entretanto tinha batido com a porta por causa do projecto da Avenida da Liberdade em que tinha estado envolvido com Caldeira Cabral, e que a opinião pública que chegava aos jornais tinha levado a Câmara a destruir na parte já executada, e a não executar na restante, com argumentos semelhantes a estes da dignidade dos espaços e coisas afins, o que permitiu juntar, pela única vez, que eu saiba, um mestre do espaço - Viana Barreto - e um mestre do desenho - Ribeiro Telles - num mesmo projecto, com os resultados conhecidos.
Pois nem com tantos exemplos - há mais, muito mais - dos malefícios da reverência às paredes ao ponto de sacrificar o serviço das pessoas comuns, se consegue ao menos discutir o uso do actual Terreiro do Paço numa base racional, sem que apareça imediatamente a ideia, que ninguém defende, de fazer um jardim no Terreiro do Paço.
Não, meus caros, Viana Barreto não repetiu a fórmula da Gulbenkian na envolvente da Torre de Belém, porque as funções, os programas, os objectivos, o enquadramento urbano são diferentes, portanto não vale a pena usar esse espantalho a propósito do Terreiro do Paço, o que se pretende não é um jardim no Terreiro do Paço, mas uma praça que lisboetas e não lisboetas possam usar com gosto e prazer.
Se teria árvores ou não é assunto a discutir no projecto, antes é preciso discutir o programa para aquele espaço e, para mim, o programa do valor simbólico, tal como foi entendido no actual Terreiro do Paço, é lixo: funcionalmente é um desastre, como valor simbólico é uma fraude, o Terreiro do Paço é um terreiro fronteiro ao que foi um dos maiores portos do mundo, não é, nunca foi, apesar das tentativas do poder para se apropriar do espaço escorraçando as pessoas, uma praça como a Praça de São Pedro, no Vaticano, essa sim, uma praça inteiramente dedicada à representação do poder.
Decreto n.º 25/2023 de 2023-09-22 (https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/decreto/25-2023-221937428)
Classifica como bens de interesse nacional os edifícios da Reitoria, da Faculdade de Direito e da Faculdade de Letras, incluindo o património móvel integrado, e a Alameda da Universidade, sendo-lhes atribuída a designação de «monumento nacional»
Este sumário do DR atirado para o sapo pela Vida Económica esqueceu-se de dizer onde se situam os edifícios. Pois é. É em Lisboa, vejam lá. Quem diria. Mas nem poderia ser de outra maneira, porque Lisboa entende que o resto do país é "cú de Judas".
Infelizmente, o texto também só fala de Lisboa.
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