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Um Estado disfuncional

por henrique pereira dos santos, em 14.01.23

Um dia destes, na minha página do facebook, a propósito de se ir iniciar brevemente o período da declaração do IRS, falei do facto de este ano já ser possível consignar 0,5% do IRS à Montis, dizendo "finalmente, ao fim de anos de esforços, já é possível consignar 0,5% do IRS à Montis".

Um amigo, simpático e conhecedor dos meandros teóricos desta coisa, comentou: "Porquê anos de esforços? Após o período legal de 3 anos de funcionamento a atribuição é direta, desde que a ONGA faça o seu registo na AT.... Mas ainda bem, mais vale tarde".

O meu amigo está certo, a lei das Organizações Não Governamentais do Ambiente diz que ao fim de três anos, há uma atribuição automática do estatuto de utilidade pública (o que tem sido utilizado, sem qualquer problema, pela Montis, para aceder ao mecenato, tratando as doações à associação como tal, o que proporciona benefícios fiscais aos doadores).

Só que, como muito bem diz este meu amigo, para se ter acesso aos tais 0,5% do IRS que as pessoas têm o direito de consignar, é preciso fazer um registo na Autoridade Tributária, a mesma que aceita os benefícios fiscais associados ao mecenato, com base na tal norma legal que atribui utilidade pública às ONG de ambiente ao fim de três anos (eu discordo de todo este edifício legal, mas isso é irrelevante).

A Autoridade Tributária não aceita como boa a norma legal que atribui automaticamente esse estatuto, e exige uma declaração da Presidência do Conselho de Ministros (que é a entidade que reconhece, mais ou menos discricionariamente, esse estatuto a quaisquer organizações que o requeiram e que a Presidência do Conselho de Ministros entenda que reúnem condições para que lhes seja atribuída a utilidade pública) reconhecendo essa utilidade pública que a lei atribui automaticamente.

Sem problema, visto que a lei atribui automaticamente esse estatuto, basta pedir à Presidência do Conselho de Ministros que ateste que a organização está inscrita como ONG de Ambiente e que há uma norma legal que atribui esse estatuto (um passo estúpido e desnecessário, mas qualquer pessoa normal considera que se resolve numa semana).

Errado, a Presidência do Conselho de Ministros entrega o assunto a uns juristas com quem não se consegue falar, a quem não se podem pedir responsabildiades, de quem não se pode fazer queixa pelos atrasos, e os juristas entretêem-se a escrutinar as normas estatutárias que o Estado já aceitou através da Agência Portuguesa do Ambiente, quando aceitou o registo como ONG de Ambiente, há uns anos atrás.

A própria Presidência do Conselho de Ministros não atende o telefone, nem responde a mails, nem sequer para dizer qual é o ponto de situação do processo, e leva meses nisto. Além disso, resolve que o prazo de funcionamento da associação para atribuição do interesse público não é o que está na lei das ONG de Ambiente (três anos) mas na lei que regula a atribuição do estatuto de utilidade pública (cinco anos)

A certa altura, lá aparece uma resposta ao pedido (ultrapassados todos os prazos e mais alguns do Código do Procedimento Administrativo) que exige umas alterações de lana caprina nos estatutos (do género, a sede da associação não pode dizer que é no concelho tal, tem de ter uma morada, que pode ser fictícia, claro).

Era o que mais faltava que a Presidência do Conselho de Ministros emitisse uma declaração de interesse público que a lei reconheceu automaticamente, pensarão eles.

Como não vale a pena discutir com Estados disfuncionais (a alternativa eficaz é conhecer as pessoas certas que resolvem estas coisas em três tempos), lá se faz uma Assembleia Geral e aprovam-se todas as alterações estatutárias explicitamente referidas no tal parecer, submetendo de novo o processo, com a indicação de ter sido dado cumprimento ao exigido, portanto uma semana deverá chegar para verificar se as duas ou três alterações estatutárias respondem ao parecer emitido.

Errado mais uma vez, depois de mais uns meses, lá vem novo parecer exigindo novas alterações estatutárias com a mesma importância das anteriores.

Lá se fazem as alterações, com nova Assembleia Geral, lá se manda tudo outra vez, e finalmente lá se obtém a dita declaração, mesmo a tempo de inscrever a Montis na Autoridade Tributária antes do período de declaração do IRS do ano seguinte.

Errado, mais uma vez, a Autoridade Tributária aceita a inscrição no fim de 2021, mas não para os rendimentos do ano em que é feita, apenas com efeitos nos rendimentos do ano seguinte (sem qualquer base legal que tenha sido invocada, é assim que a Autoridade Tributária decidiu e está decidido), 2022, cujo período de declaração de rendimentos começa agora.

E é isto o Estado português, a lei reconhece que ao fim de três anos as ONG de Ambiente têm estatuto de utilidade pública, que lhes confere o direito a receber 0,5% do IRS que os contribuintes queiram atribuir-lhe, mas os serviços do Estado conseguem transformar esse prazo quase no triplo, sem que ninguém seja responsabilizado pela evidente ilegalidade de toda a actuação dos serviços do Estado.

No caso, prejudicando a transferência directa, por decisão do contribuinte, de impostos do Estado para organizações da sociedade civil, reconhecidas pelo Estado, durante uns quatro ou cinco anos.

Sociedade civil essa que se está nas tintas para isto porque são trocos nos seus orçamentos, quando comparados com os recursos que se conseguem obter directamente do Estado conhecendo as pessoas certas, usando os canais de comunicação adequados e entregando moedas de troca úteis a quem tem o poder de decidir.


5 comentários

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De Luis a 14.01.2023 às 12:12

Os mais de 700.000 funcionários do Estado têm que fazer de conta que fazem algo, quanto mais não seja burocratizarem e complicarem tudo e mais um par de botas. No final ainda o cidadão comum tem de lhes pedir por favor e tratar parte deles como se fossem semi deuses do Olimpo. Lembro-me de ter ido com o meu filho às 2 semanas de vida do rapaz e estar 1h a olhar para o vazio à espera que a única funcionária que tratava deste tipo de registos na repartição em causa, nos atendesse. Porquê? Porque não tinha marcação segundo a sra. que me fez levar seca de 1h a ver se me ia embora enquanto foi fumar, beber café, falar com os colegas, fazer chamas ao telemóvel,... Como sou péssimo a lidar com gente com má vontade, lá foi a minha esposa pedir-lhe por favor e lá nos atendeu mas sempre em "modo de frete". Lá está o simples cidadão tem de lhes suplicar e de os tratar como se fossem profs catedráticos caso não os conheça de lado nenhum ou não tenha um contacto com poder dentro do sistema. 
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De entulho a 14.01.2023 às 14:55

aquela coisa mesquinha a que chamam estado tem uma AT que  50 anos depois da nacionalização do bes e da minhas acções, que hoje valeriam 150 mil€, me xateou por não ter declarado a venda de acções por 4 € de que não tive conhecimento
em tempos cobraram-me 5 mil escudos alegando que teria pedido 20 anos antes 1000 escudos ao estado, como se precisasse de pedir esmola.
a burrocracia (ps ou partido sanguessuga) desencoraja qualquer um de fazer seja o que for. estamos na merda e quanto mais se mexe mais fede.
fiz 10 pedidos da UE sobre agro-pecuária: aprovaram um, mas não havia dinheiro.
comprei 500 ovelhas: o agente 'altamente qualificado' que foi verificar o nº só sabia contar até 50 e desconhecia que as crias andavam à parte  
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De uidade e a 15.01.2023 às 11:39

incompetência que descreve subiu aos patamares da ineficácia, por isso chamemos aos bois pelos nomes tudo isso é laxismo, desmazelo, desinteresse pela coisa pública e uma grande irresponsabilidade no desempenho das tarefas para que foram incumbidas. Mas tudo se deve a uma cultura que se instalou, de falta de rigor e muita permissividade no recrutamento de pessoas com mérito e preparação para essas (e outras) funções. 


Enfim, é mais um exemplo do nosso próprio retrato infame, que vem somar-se aos recentes e sucessivos escândalos, para reforçar o nível de disfuncionalidade a que o país desceu. Atravessamos uma das nossas maiores crises, mas convém lembrar que toda esta podridão _porque disso se trata!_ se tem passado debaixo do nosso nariz, (há anos!) com a complacência geral da sociedade e um encolher de ombros. 


 A situação que descreve é uma consequência da mais pura incompetência, corrupção e compadrio que alastram nas nossas instituições e na forma como as pessoas são "engajadas" para ocuparem cargos públicos de responsabilidade. Mas "o estado a que isto chegou"  também se deve à excessiva frouxidão e tolerância dos cidadãos, convém lembrá-lo... 
Não sabemos se estamos a tempo de travar o rastilho, mas esta mistura é um caldinho prestes a explodir! Serão mais uns pregos no caixão do "regime" e a descredibilização da própria Democracia. Quem beneficia? Os extremistas! Obviamente a «ética»  muito elástica do dr.Costa e do seu cínico governo não hesitarão um segundo se deles vierem a precisar para a sua sobrevivência...  
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De uidade e a 16.01.2023 às 09:19

Com sua permissão, indico dois textos a não perder, ambos relacionados com o tema que abordou : a "disfuncionalidade" do país.


https://observador.pt/opiniao/our-greatest-national-disaster/
https://observador.pt/opiniao/comparar-factos-e-conhecer-melhor-portugal/
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De Ricardo Miguel Sebastião a 18.01.2023 às 17:00

E o estado do nosso Estado e agora com a pandemia aproveitaram para fechar de vez as portas aos cidadãos. Finanças e Segurança Social que antes estavam sempre obviamente abertas todos os dias para atendimento ao público, passaram a funcionar por marcação pelo que atendem muito menos pessoas, qualquer coisa que seja preciso tratar com urgência e necessitando de falar com alguém por detrás do "sistema" é impossível!

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