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O fenómeno a que hoje chamamos violência doméstica será tão antigo quanto a humanidade e trata-se sem sombra de dúvida uma das expressões mais reles da barbárie a que o Homem se consegue rebaixar - a sua plena erradicação só será possível com a extinção do ser humano. A questão está em saber se o número de casos está realmente a aumentar ou se é a percepção que temos desta tipologia de crimes que se vem ampliando, com a crescente vigilância mediática sobre eles.
Independentemente da falta de uma perspectiva histórica conclusiva sobre o tema, parece-me que a questão merece ser reflectida sem preconceitos. Nesse sentido, pelo que me é dado observar empiricamente, receio que a violência doméstica (e entre namorados – um fenómeno recente) tende a aumentar nos próximos anos, por razão da fragmentação social resultante da decadência ou extinção das pequenas comunidades urbanas e rurais, assim como da crise que perpassa na família natural que não resiste à cultura do individualismo e da democratização do divórcio. Acontece que a estas micro estruturas sociais cabia também um papel de vigilância e projecção de expectativas com potencial repressivo aos desvios à norma (moral), que o Estado (ainda bem que) não consegue substituir. Seja na amalgama dos grandes centros urbanos, nos apartamentos das cidades do interior ou casa isoladas nos campos, actualmente os núcleos familiares (quantas vezes monoparentais) não respiram o oxigénio de uma pertença mais alargada. A liberdade individual é sublimada na proporção em que a responsabilidade social (comunitária) é desconsiderada. A plena democratização do divórcio e as relações “abertas”, a transformação do casamento civil numa instituição descartável, generalizou o fenómeno de famílias recompostas com fronteiras difusas, um fenómeno que não é acompanhado pela maturidade psicológica e grau civilizacional que essas escolhas e vivências implicam – educar "os meus os teus e os nossos" implica muita racionalidade e amor cristão (no sentido de serviço), que são requisitos pouco abundantes. Tudo questões incómodas de que não deveríamos desviar o olhar.
O facto é que criámos uma sociedade fragmentada, que gera pessoas desestruturadas, problema para o qual suspeito que não haja ordenamento jurídico que lhe valha. O caso de uma mulher que se incinera a si e à sua filha de 10 anos e dum homem que espanque ou assassine a sua parceira, têm em comum uma profunda insanidade mental, a mais completa amoralidade. Que a natureza humana é capaz do melhor e do pior, sabemos que sempre assim será. Mas convém reflectir nas consequências do caminho que vamos percorrendo, se daqui a alguns séculos a nossa cultura e as opções políticas que tomámos não serão consideradas bárbaras.
O meu amigo Filipe Nunes Vicente por vezes não resiste à sua costela jacobina e agora vem (uma vez mais) reclamar do silêncio da Igreja a propósito da violência doméstica e para tanto propõe-nos uma pesquisa no Google à qual eu me atrevo a sugerir outra: “Patriarcado do Lisboa + Violência Doméstica”. Aí encontrará o Filipe diversas referências ao tema com proveniência de diferentes sectores da hierarquia da Igreja - claro está que, se o Estado decidisse legalizar a violência doméstica, de outro modo tocariam as trombetas. Nesse jogo de retórica o Filipe demonstra algo que já sabíamos: que não frequenta e mal conhece a Igreja dos dias de hoje, lugar em que diariamente se acolhem e socorrem os casos mais dramáticos de pessoas em busca de caminho, de redenção, quantas vezes nossos vizinhos envergonhados. Esses casos tanto podem ser de agredidos ou agressores: essa é a radicalidade do acolhimento de Jesus Cristo. Ora acontece que é na Igreja, não isenta de erros e limitações na sua actuação capilar e profundamente orgânica, que diariamente se apela à evangelização e à consequente partilha da mensagem de Jesus Cristo de Misericórdia, de Amor e de Perdão aos homens e mulheres de boa vontade. Pusessem em prática as comunidades cristãs os ensinamentos de Cristo e não se encontraria aí exemplos de violência doméstica. Como disse o papa Francisco certo dia, “a Igreja não é um hotel de santos, é antes um hospital de pecadores”. Mas acontece que, se há algum local na sociedade civil em que se empreende um trabalho profundo de prevenção à violência doméstica é entre os cristãos. É na Igreja que se realizam os CPM (Clubes de Preparação para o Matrimónio) cada vez mais exigentes, e é também na Igreja onde os casais encontram à sua disposição movimentos de leigos que têm em especial atenção a vida do casal na coerência com a mensagem de Cristo, nomeadamente as Equipas de Nossa Senhora de que faço parte, movimento mundial fundado pelo Padre Henri Caffarel nos anos 40 para uma catequese e caminhada na fé em casal. Por todas estas razões, por causa da intervenção eminentemente orgânica que a igreja promove na vida dos seus fiéis e nas suas comunidades, o comentário do Filipe me parece profundamente injusto. De resto, tenho algumas reservas quanto à exacerbação do conceito de “violência doméstica” em contraste com a “simples” violência física ou psicológica que uma mente perturbada é capaz de praticar contra o seu próximo, seja por motivos passionais ou crendices intelectualizadas. A crueldade humana mascara-se de várias formas - tem de ser veementemente punida e denunciada. Curioso como um crime como o perpetrado em Barcelos produz quase as mesmas consequências práticas que o acto de terrorismo de Londres. Em comum, para além da utilização da faca como arma, têm o facto de ambos provirem de mentes profundamente perturbadas e nos atirarem à cara o potencial malévolo que reside coração do Homem, de qualquer raça ou credo. Isto sim é para mim profundamente inquietante.
"Porque não bato numa menina? Porque sou um homem."
Sobre a injusta preocupação do Filipe Nunes Vicente a respeito do papel da Igreja Católica na praga da violência doméstica, ressalta-me um grave equivoco: é o de pensar que “estar no terreno” significa fazer “simpósios, reuniões, sessões de esclarecimento”. Para lá da intervenção social da Igreja com lares, comunidades e outras obras, tenho para mim que o problema, mais do que civilizacional ou legal, é existencial, um plano privilegiado para a actuação da fé. Não descurando a importância do debate sobre estas e outras chagas sociais, neste caso, tenho muitas reservas sobre a eficácia da “propaganda” (contra mim falo, é a minha profissão). Por exemplo, tirando os debates motivados pelos referendos, não tenho notícia que o tema do aborto tenha alguma vez sido assunto privilegiado nas homilias, ou especialmente referenciado pela hierarquia. Acontece que religião interfere a montante, coisa que a Igreja faz há dois mil anos: o apelo a um caminho de santidade, de conversão a Cristo, e que é a última razão de existirmos. Em todas as paróquias, de todos os púlpitos, confessionários; em todas as orações, o apelo é sempre o mesmo e só ganha materialidade com uma prática e consciência profunda: a conversão. Trata-se de um difícil caminho, diferente de pessoa para pessoa, para a liberdade; o milagre do camelo trespassar o buraco da agulha: não pode ser discurso, mas vivência. Tivesse o Filipe vontade e eu ilustrava estas palavras com algumas pistas: comunidades, paróquias, e verdadeiros Santos anónimos, cujo trabalho é verdadeiramente orgânico, ultrapassando em muito a esfera do “terreno”. A bondade é algo bem mais difícil de realizar do que recomendar aos outros, por isso a luta contra a violência doméstica só resulta eficaz se for travada dentro do coração das pessoas. E isso pode significar um longo e duro processo de descoberta do Amor.
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