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«Conta-se que na perseguição [religiosa] desencadeada no fim do reinado de Diocleciano, […] nos primeiros anos do século IV, numa altura em que o cristianismo se encontra já profundamente difundido em diversas partes do mundo romano, incluindo na própria Roma, em Lisboa são executados três jovens nobres lisboetas, que se recusam a abjurar da sua fé. Depois do martírio, os corpos são lançados ao Tejo, junto da praia no local hoje chamado Santos, dando-se então o milagre de o rio relançar à terra, intactos, os corpos dos três jovens, numa acção envolta em peripécias lendárias. A fama do sucedido depressa se espalha pela cidade e, como poucos anos depois, em 313, Constantino declara a liberdade religiosa, logo se consagra o culto dos três mártires, erguendo-se no local uma igreja votiva». (José Sarmento de Matos, A Invenção de Lisboa).
O bairro, que há dois séculos era ainda pertença do rio até à muralha da calçada de Santos, e que hoje se sofisticou com a instalação de algumas casas comerciais ligadas ao sector elegante da decoração de interiores e, segundo consta, com uma boa acção de recuperação imobiliária, mantém ainda muitas das suas características de sítio velho, com fundas raízes populares. A Igreja, que data do século XIX, tem em «tradições» o que lhe falta em «documentos», e apresenta, com as suas duas torres brancas, o seu corpo rosado e o contraste da sua pose altaneira, no topo da escadaria, com a ingenuidade da sua arquitectura, traços de um inesperado exotismo mexicano. Tenebroso, nesta simpática zona alfacinha, só o Jardim de Santos, também conhecido por Jardim Nuno Álvares, que, aberto sobre a 24 de Julho, se perde nas sombras de um arvoredo confuso e anárquico, entregue, diria, às ervas daninhas. O Jardim reclama cuidados urgentes.
Ali, na Penha de França, no «sítio que foi do Palácio dos Condes de Soure, com a sua Ermida de invocação de N. Senhora do Monte Agudo», e logo no início da descida da Rua Heliodoro Salgado, abre-se um portão sobre uma discreta alameda que, desenhando uma curva para a direita, conduz ao miradouro daquele nome: Monte Agudo.
Neste miradouro, abriu recentemente uma esplanada, que recomendo vivamente a quem aprecie panoramas desafogados, paz e sossego, o canto das cigarras, o cheiro forte dos pinheiros, Lisboa e uma boa tarte de galinha.
Em 1845, é terminada a construção dos últimos prédios do Rossio concebidos pelos arquitectos pombalinos, ficando também limpo e sem entulhos o espaço envolvente. […]
A ideia de calcetar o Rossio começa a ganhar adeptos, tanto mais que as ruas da Baixa estão também calcetadas. Mas a extensão da área leva a municipalidade a hesitar. Entretanto, o governador do Castelo de S. Jorge, general Eusébio Cândido Pinheiro Furtado, que tem a seu cargo a custódia dos condenados a trabalhos forçados, presos na antiga Alcáçova, propõe uma solução: utilizar esses homens no calcetamento do Rossio, à semelhança do método seguido na entrada do Castelo, coberto com um mosaico de pequenas pedras bem talhadas, em calcário e basalto, brancas e negras. É assim que se inicia a obra na nova praça, onde os condenados avançam a um ritmo notável: 27 metros quadrados por dia.
[…] os trabalhos começam a 17 de Agosto de 1848 e terminam a 31 de Dezembro do ano seguinte (numa área de 8712 metros quadrados). O resultado é uma ondulante sucessão de vagas negras sobre um fundo branco, evocando a presença do Tejo e do mar ali bem perto. De tão conseguido, [… o] processo foi adoptado noutros bairros e estender-se-á, na sua versão de calcário branco, a todos os passeios da cidade. (Dejanirah Couto, História de Lisboa).
«De noite, com a brisa, e sobretudo quando há névoa, o cheiro da maresia é mais forte, e o menino fica na cama de grades, com os olhos muito abertos, a escutar aqueles mugidos e roncos graves, a indecifrável conversa dos paquetes, cidades flutuantes, ocas de luzes prodigiosas, que descem o caminho da Barra e do mundo.
Não se pode ter nascido ali, viver a ver chegar e partir navios todos os dias, com um rasto de lágrimas e o esvoaçar de adeuses no azul, nem ouvir noite e dia estas vozes, sem ficar impregnado de irremediável nostalgia. Tudo isto, o rio imenso, os cais, o mar, os horizontes, se integra nele e ficará para sempre dentro dele como um apelo de longe e uma saudade, anseio de partir e de voltar; quando e para onde?» (José Rodrigues Miguéis, A escola do paraíso).
Nasci em Lisboa, nunca me afastei de Lisboa por períodos superiores a um mês e, no entanto, só muito recentemente comecei a descobrir Lisboa, primeiro, com o único objectivo de preencher, caminhando, uns tempos mortos, mas logo ganhando o gosto de «flanar», de vaguear sem sentido pela cidade, num curso feito ao jeito de Fradique Mendes, de «curvas vadias e delirantes».
No emaranhado novelo urbano encontrei, no entanto, um pequeno «segmento de recta» mágico, que, partindo de S. Vicente de Fora, termina no belíssimo jardim de Santa Clara, todo reclinado sobre o Tejo.
É um «segmento» estranhamente sereno, até nos dias de Feira da Ladra, quase como se ainda permanecesse, como no passado, «fora» do perímetro alfacinha - confirmando, na sua doce e imperturbável, tranquilidade, a tese de alguns de que as cidades tendem a crescer e, se calhar, a desassossegar-se para poente, seguindo o rasto diurno do Sol.
Não é, assim, difícil imaginá-lo – ao meu «segmento» - no despovoamento de há nove séculos, quando os cruzados «colonenses e flamengos» aí estabeleceram o seu posto de vigia à velha Lisboa moura e moçárabe, então recolhida de susto ao Castelo, e aí instalaram o cemitério dos seus mortos na reconquista (do mesmo modo que os cruzados bretões e normandos se posicionaram e enterraram os seus mártires na colina oposta de S. Francisco, em homenagem aos quais se construiu a primitiva igreja desse nome – Mártires -, transferida, depois do terramoto, para a Rua Garrett).
É no meu «segmento» e, sobretudo, no seu extremo nascente, no quiosque do jardim, que às vezes, por esta canícula estival, me entretenho, ao fim da tarde, a prolongar abstractamente o seu traço na direcção do rio e a mergulhar o olhar na planura espelhada, luminosa e refrescante do Mar da Palha.
«Diz-nos alguma coisa de saboroso esta Ermida de Nossa Senhora de Monserrate, nas Amoreiras. Encravada no vão do quinto arco do Aqueduto, logo a nascer na Casa da Água, com o seu corpo saliente do altar-mor caindo sobre a velha Rua "do Rato para Campolide", a Ermida evoca-nos um pedaço da vida setecentista lisboeta, e um quadrinho animado do século XIX.
Erigiram a Ermida neste sítio, em 1768, os fabricantes da seda, que tiveram o Rei D. José por seu lado.[...]
Ela viu o Marquês de Pombal, ele próprio, em 1771, plantar a primeira amoreira das trezentas que engrinaldaram a praça; viu subir, em 1767, o primeiro fumo dos fornos da Fábrica da Louça, de Tomás Brunetto e Salvador Inácio;...
... assistiu ao alvoroço popular quando correu água, pela primeira vez, no chafariz do Rato;...
... seguiu, dia a dia, o retalhar de quintas, o abrir de ruas, o crescimento do bairro nascido de um sítio por influência das "reais manufacturas"; e viu, numa manhã de Abril de 1851, chegar aqui, vinda dos Prazeres, a Feira das Amoreiras – a avó das feiras de Belém, de Alcântara, de Santos – com o seu arraial, os seus teatrinhos pitorescos, as suas figuras de cera, os "robertos" e os irmãos Dallot.
E viu acabarem a Real Fábrica das Sedas, a Fábrica da Louça, a Fábrica dos Pentes, irem-se embora as amoreiras todas, ir-se embora a Feira, e irem-se embora os frades oratorianos de S. Filipe Néri e as freirinhas endiabradas do convento do "Rato"»...
(Norberto de Araújo, Legendas de Lisboa).
(Na Praça das Flores...)
Parece-me incontroverso que, em todo o lado, nas empresas, nos serviços, na administração pública, há os que fazem, há os que não fazem, há os que fazem que fazem mas não fazem, e há os que não fazem, nem deixam fazer. Não sei em que grupo inseriria o António Costa que preside à municipalidade lisboeta, mas sei que, contrariamente ao Miguel, o excluiria, sem hesitações, do primeiro. O mesmo não diria do «Zé que faz falta»: goste-se ou não da criatura, das suas ideologias ou dos seus métodos, o «Zé que faz falta» tem feito coisas no seu específico pelouro. As praças e os jardins de Lisboa, especialmente os do centro turístico, têm sofrido obras de melhoramento que, no quadro de inacção que parece caracterizar a chefia camarária, merecem referência, mesmo que apenas por constituírem a excepção. É certo que nem todos esses espaços verdes estão ainda convenientemente «reverdecidos». E aproveitaria o ensejo para chamar aqui a atenção para aquele, cujo banco vem, desde há uns anos e diariamente, lançando apelos tristonhos do blogue Abrupto.
«A praça, dita do Príncipe Real em 1859, deixando o nome de D. Pedro V à rua que a ela vem, de S. Pedro de Alcântara, fica na história do urbanismo e da arquitectura lisbonenses como um ponto de particular significação, espécie de desafio às avenidas novas que a geração seguinte ia oferecer-se, desde os fins do século e inícios do próximo. Em 1873, em suas impressões de viajante pela “Fair Lusitânia”, a britânica Lady Catharina Jackson diria “lindíssimo o local”, com “soberbas casarias”, “florescente jardim” – “o mais elegante e distinto” da cidade, opinião que o Arquivo Pitoresco ecoava ao mesmo tempo nas suas páginas ilustradas. Um “panorama”, vista semicircular pintada, que em 1880 lá se desejou instalar, não obteve autorização camarária». (José-Augusto França, Lisboa, História Física e Moral).
Notável evolução, a desta área antes chamada Alto da Cotovia, local solitário e ventoso, que o terramoto de 1755 fez um bairro clandestino e poiso, até 1835, de uma expressiva representação da marginalidade lisboeta, desde mendigos e ladrões, até senhoras de má reputação (também conhecidas por «morcegos», porque vestiam grandes capotes escuros, com que «dissimulavam muitas coisas»), a par de enormes matilhas de cães vadios.
O «florescente jardim» do Príncipe Real reabriu, há dias, ao público, depois de uns meses de obras de renovação. Lá estive. Pareceu-me, devo dizê-lo, um tanto pindérico, cheio ainda de paliçadas em torno dos espaços a relvar, exigindo ainda várias intervenções de acabamento e limpeza, pobre (ainda?) numa vegetação que recordo exuberante antes do arranque dos trabalhos. Mas é possível que em pouco tempo recupere o aspecto que Lady Jackson qualificou de elegante e distinto. Registo, em todo o caso, a imediata afluência de gente, velhos «habitués», decerto. Os grupos de reformados em torno das mesas de jogo bordejavam o conceito de multidão; e no espaço coberto pela copa larga do cedro, não havia um banco livre. Mas nem se compreenderia que os habitantes de um «jardim à beira-mar plantado» não estimassem, nem procurassem, ansiosamente, os seus jardins…
(No Jardim Lisboa Antiga...)
Lisboa não é, como realização urbanística, um obra merecedora de menção honrosa. Está, por isso, demasiado dependente dos «estados de alma» da natureza que a sustenta: o céu e a luz, as colinas, as árvores, o rio. Por isso, também, é volúvel como o tempo, produzindo tantos ou mais «extreme makeovers», quantas as estações do ano. No Verão, a sua face desidrata-se. Paira sobre ela uma poeira fina, que o calor arranca das calçadas, dos estaleiros das obras e das terras baldias para esbater as cores da vegetação, das casas e do panorama. É um Verão que sugere savanas e capins. Lisboa faz-se África - onde, aliás, lhe convém ir mantendo um pé. Mas no Outono, as brisas sacodem essa névoa de areias finas e de ondulações caniculares, e a atmosfera recupera a sua limpidez. Lisboa, contudo, entristece com o cair da folha: os verdes rarefazem-se e trazem para primeiro plano um casario envelhecido, sujo e sulcado de fendas, ou simplesmente desconexo. E nem a animação natalícia faz esquecer os riscos de que um dia a capital venha abaixo. Nalguns sítios, Alfama e Graça, já começou a vir. O Inverno é o Inverno: a minha estação favorita quando o sol brilha no ar lavado e frio. Mas o Inverno não favorece Lisboa, porque Lisboa não foi concebida para o Inverno. As imagens de desleixo e as incomodidades redobram, os dias, mesmo curtos, arrastam-se numa humidade pegajosa, que arrepia cabelos e nervos, e a própria tradição de temperança parece comprometida depois de um recente convívio com tornados. Felizmente, o Inverno traz consigo o anúncio da Primavera. E quando chega a Primavera, Lisboa renasce com tudo o que renasce nela. Os jardins, as flores nas sacadas das janelas e as áleas dos jacarandás, das tílias, dos plátanos, dos pinheiros, dos eucaliptos e dos lodãos escondem, num jogo de luzes e sombras, as fachadas carcomidas e as ruas esburacadas, emprestando-lhe um tom de saúde rija, uma frescura de alface realmente apetecível. Na Primavera, Lisboa apaixona-me. Razão por que em todas as Primaveras tenho a certeza – com uma força que me esquece de muitos desgostos… – de que Lisboa é a melhor cidade do mundo.
«Liga o Cais de Santarém – a linha normal de trânsito exterior da Alfama – e S. João da Praça. Ele, o Beco da Mosca, crismado há cinquenta anos, chama-se mesmo Travessa de S. João da Praça. Entrada discreta da Alfama, pelo sul, foi talvez um postigo da muralha de Lisboa, e é certo que se adornou de um decorativo arco, à ilharga do Chafariz de El-rei. Respira Lisboa velha por todos os lados; criou-se entre palácios senhoris, que ainda se deixam adivinhar nos restos enobrecidos, os dos Anjejas e de Vila Flor. […]
Passeia por aqui o tempo quinhentista. […]»
«Este Beco da Mosca pertence à arqueologia do pitoresco. Em Sevilha fariam dele uma jóia para turistas, engrinaldada de cravos e gerânios». (Norberto de Araújo, Legendas de Lisboa)
(Do Carmo...)
«A rua do Carmo, com a longa fachada maciça dos muros de sustentáculo do convento, era tão feia que Lisboa se envergonha dela, em 1913, quando foi preciso passar por lá a caleche de Eduardo VII. Cobriram-na de colchas e bandeiras e mais tarde abriram-lhe janelas e montras. Agora alternam-se ali os dois estabelecimentos a que os lisboetas dos dois sexos dispensam mais simpatias: as sapatarias e as pastelarias».
Suzanne Chantal esqueceu-se de abrir uma excepção, aquela que, muito provavelmente, confirma a regra: a da minha anónima pessoa. Nunca tive especial simpatia por pastelarias, nem por pastéis, e se transponho as suas portas é pelo cheiro do café. Também nunca fui – tenho de reconhecê-lo, mesmo se perco com isso alguma feminilidade - aficionada de sapatos, nem frequentadora assídua de sapatarias. Sempre preferi um pé saudável e firmeza de calcanhar a sandálias afiambradas e tacões finos. Mas sendo de um tempo posterior ao da publicação de «A caravela e os corvos», conheci a tal Rua do Carmo afamada pelas suas sapatarias. E lembro-me do que refere a autora nas linhas seguintes: «Há alguns anos encontrava-se em Lisboa calçado admirável, sempre feito por medida e cosido à mão. O artífice em Portugal ainda não cedera o lugar às fábricas. Agora, assediados por demasiados clientes estrangeiros, gastadores e indiferentes, os sapateiros lisboetas aumentaram os preços e perderam o gosto da perfeição». Os nossos sapatos tinham, realmente, uma reputação que os colocava num patamar de qualidade superior ao da própria produção italiana, uma referência perene no mundo da moda. E julgo que a conservaram, pelo menos, até meados dos anos oitenta, altura em que comprei o meu último par de silhueta compatível com casamentos e baptizados, que ainda mantém a pureza das linhas originais e o brilho novo da pele. Depois deste ousado investimento, desviei atenções para o modelo «ténis-chic» - porque silhueta compatível, prefiro manter a minha… - e perdi contacto com as tendências do século XXI no que respeita à cobertura de pés. Não sei, tão pouco, o que sucedeu às boas sapatarias da rua do Carmo. Quando por ali passo, não me fixo no seu comércio, porque não me tenta, nem quero que comece a tentar-me. Mas o que vejo, nas montras «generalistas» dos estabelecimentos em que reponho «stocks», são marcas internacionais, dessas cujos saltos de agulha acrescentam à utilizadora dez centímetros vitais, mas a que só poderia, em consciência, aderir se incluíssem asinhas de levitação por sobre a calçada portuguesa.
Nota: Mas aí está uma promessa comercial aliciante da Rua do Carmo, no topo, ao «Bonheur des Dames»...
(Na Rua do Cais de Santarém...)
«O Chafariz de El-Rei (e este El-Rei teria sido talvez D. Dinis, na suposição de Júlio de Castilho) é citado como existindo no tempo de D. Afonso II (1211-1223), sendo então o chafariz de S. João. Fernão Lopes refere-se a ele na Crónica de D. Fernando, a propósito do assédio de Lisboa por D. Henrique de Castela. Duas cartas régias datadas de Alenquer em Setembro de 1487 já chegavam para confirmar a sua antiguidade veneranda.
Era um manancial riquíssimo; dele se abasteciam navios, julgando-se que aqui houvesse sido a Aguada, a que se referem velhos documentos, ou uma das Aguadas da Alfama, fértil de águas.
No século de quinhentos, o Chafariz de El-Rei matava a sede a toda a gente do sítio nas suas seis bicas, às quais se acrescentaram depois mais três. Em cada bica, para evitar brigas e contactos, enchia uma espécie de gente; aqui mulheres e moças brancas, ali homens mulatos, cativos, índios, pretos-fôrros, ali moiros das galés, ali mulheres pretas, mulatas e escravas.
Curioso devia ser esse quadro de Lisboa, pelo pitoresco e pela exuberância dos costumes…» (Norberto de Araújo, Peregrinações em Lisboa).
Programava, há muito, uma incursão pela Ajuda, que conheço mal. E foi por isso que, logo que a Primavera abriu, arranquei do Alto de Santo Amaro pela Rua da Aliança Operária abaixo e acima, naquele enquadramento pardacento, que só o azul luminoso do céu animava. Passei pelo Largo da Boa-Hora e intervalei a caminhada com um descafeinado no estaminé sobranceiro à encosta, contemplando o panorama do casario que desce até ao Tejo na mesma moldura do azul quente do céu. Segui pelos Bairros da Boa-Hora e da Polícia, e apreciei com gosto a compostura das habitações simples, de arquitectura popular, que a reabilitação urbana já ali privilegiou. Pelas esquinas, espreitavam, contra o azul agora incandescente do céu, trechos do Palácio, a Norte, e do rio, a Sul. Trepei a Calçada da Ajuda, com os «bofes a sair pela boca», bati com lentidão a Alameda dos Pinheiros e explorei o largo do Palácio no rasto das sombras dos ciprestes. Ataquei por fim a descida pela Rua do Meio, que conduz ao Largo da Paz, com a sua Bica do Povo seca e invadida de pombos, e as suas reuniões de vizinhança entre soleiras de portas. Virei à esquerda, apanhei o Largo da Memória, e, do adro da Igreja, fotografei os planos sobrepostos dos telhados alfacinhas contra o azul profundo do céu. E concluí a passeata com a descida da Travessa do Galvão até ao Largo dos Jerónimos. Dez minutos depois, espapaçada à beira-rio diante de um batido de chocolate, meditava nesta cidade e neste povo, que o azul caloroso do céu enche de boa-vontade, e no que ambos mereceriam do destino. Foi quando, a uns metros do cais, vi emergir da poalha dourada que, a Ocidente, anuncia o crepúsculo, uma canoa galgando energicamente a corrente do Tejo na perfeita sintonia de movimentos que a voz do timoneiro, equilibrado na borda da embarcação, imprimia aos remadores. E soube logo que, naquela canoa, a voz não ia calar-se, nem falhar um compasso, nem mudar de ritmo, nem trautear um tango, porque, se o fizesse, o seu dono seria o primeiro a dar com os burrinhos na água.
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