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Pedro Boucherie Mendes apresenta no seu livro A Década Prodigiosa, publicado pela D. Quixote, um trabalho admirável para recordar o Portugal na década de oitenta. Apesar das cerca de 640 páginas, trata-se claramente de um livro Pop, interessante e divertido, dedicado à geração do autor, nascida no início dos anos 70, um manancial de potenciais leitores: “em 1981, um quarto da população tinha quinze anos ou menos, eram quarenta e quatro idosos por cada cem jovens. Não se desconfiava que em 2021 seriam cento e oitenta e dois velhos por cada cem.” Acontece ao chegar à meia-idade cedermos legitimamente à nostalgia e daqui se depreende o potencial sucesso comercial da obra. De resto, convém ressalvar que este texto não é uma recensão, antes um pretexto para eu contribuir com os meus cinquenta cêntimos sobre o período histórico em causa.
Originário duma família tradicional e conservadora, a cultura Pop é também a minha praia: nascido e criado rodeado de livros, banda desenhada e discos de vinil a rodos, jornais, revistas, televisão, cinema americano e cromos da bola, deliciei-me a recordar a década de oitenta, tempo dos meus destravados vinte anos. Mas a minha década prodigiosa terá sido outra, luminosa e colorida como a bonecada da Linha Clara da escola Franco-Belga. Talvez porque cada geração tende a idealizar a sua infância ou pré-adolescência, quando a realidade nos parece estar estacionada num ponto definitivo, cristalizada. O autor nasceu em 1971, e entende-se o fascínio com que observa e compila as memórias da década seguinte, que também me seduziu a mim, então dez anos mais velho. Mas não será atrevido isolar uma década do resto da cadeia temporal, tomá-la com um perfil e carácter próprio, influenciado por uns quantos acontecimentos e desenvolvimentos tecnológicos marcantes? Serão os anos 40 marcados pela II guerra Mundial, e qual a sua iconografia? Como se destacam os anos 50, quais os símbolos e eventos que marcaram a geração que nos antecede? Os anos sessenta em que nasci inevitavelmente remetem-nos para a cultua hippie, e a afirmação da adolescência como preponderante protagonista da vida pública, política e cultural? Não será a tendência “barroca” e a estética depressiva da música Pop dos anos setenta uma reacção aos excessos juvenis da década anterior? Como se integra a vida política e cultural portuguesa, sempre relativamente atrasada em relação às tendências do restante mundo ocidental, pelos clichés com que nos habituámos a interpretar o Mundo?
O que é facto é que em 1967, ao tempo de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, José Cid produzia com o Quarteto 1111 o EP A Lenda De El-Rei D. Sebastião, e onze anos mais tarde o “nosso Elton John” lançava 10.000 Anos Depois entre Vénus e Marte, um LP conceptual, que fugia à preponderância da canção revolucionária nos anos setenta. Deste lado do planeta o mundo já era cada vez mais pequeno, progressivamente convertido à hegemonia da cultura anglo-saxónica. Como bem refere Boucherie no seu A Década Prodigiosa, o caminho para a normalização da democracia em Portugal iniciara-se com a improvável maioria absoluta da AD em 1979, justamente um ano antes de No Jardim da Celeste da Banda do Casaco, outro marco importante da Pop nacional na sua libertação das grilhetas revolucionárias, então a perder gás.
Se por um lado sou levado a concordar com a peculiaridade dos anos oitenta em Portugal, o próprio autor por diversas vezes mergulha na década de 70 identificando em grande medida os mesmos traços da seguinte: a supremacia da televisão em casa, ainda que a preto e branco, ponto de confluência das famílias, especialmente das crianças, e a rua como extensão do seu espaço lúdico, onde elas, como “bandos de pardais à solta”, pontuavam a paisagem do bairro ou da cidade, aos molhos a ir ou a vir da escola com a mochila às costas, a jogar à bola com balizas improvisadas ou a recriar com tiros e correrias o episódio do Bonanza que todos tinham visto depois do almoço no único canal de televisão, ou a trocarem os cromos repetidos do Yazalde ou do Jordão.
Não terá dado por isso Boucherie Mendes, mas os anos 70 comportam na cultura Pop emergente em Portugal uma subtil revolução quase tão importante quanto a dos cravos: a popularização da rádio FM, propagadora, com uma diferenciada qualidade sonora, da música anglo-saxónica, mais ou menos alternativa, mais ou menos sofisticada, que vinha sendo importada do mundo “civilizado”. Consolidava-se então a hegemonização do inglês como segunda língua, nos media, nas ruas e nos currículos das escolas, que significava o progressivo desaparecimento da francofonia dos nossos pais (os meus pais falavam francês), e com grande tristeza minha, o apagamento da canção francesa da “banda sonora” das novas gerações.
A década de oitenta foi de facto o tempo da consolidação da democracia liberal no nosso país, empurrado por um crescimento económico alavancado pela integração Europeia, pelo consequente dinamismo da iniciativa privada em todos os campos da economia, pela estabilidade governativa que se ensaiava, para a chegada dos governos reformistas de Cavaco Silva. Como resultado, deu-se uma insólita desmultiplicação da oferta cultural, onde a hegemonia da ruidosa esquerda ia abrindo brechas, perante a indomável vontade duma burguesia crescente, rendida aos encantos do consumo e da felicidade que prometia: “os anos 80 foram uma viagem, uma quase peregrinação, com peripécias e momentos, pintada a optimismo que se alimentava porque sabíamos que chegaríamos a um local feliz”. Dando de barato o exagero da generalização, numa visão panorâmica, a observação talvez não esteja muito longe da verdade.
Não sendo o livro uma história cronologicamente relatada, antes o entrelaçar de muitas histórias em diferentes tempos, memórias autonomamente contadas, com sistemática referência às manchetes, à iconografia e aos mediatizados protagonistas da época, a edição merecia um índice remissivo muito mais detalhado, para dessa forma permitir mais facilmente ao leitor saltar de tema ou personagem… Não sendo propriamente um defeito, o livro denota a preponderância talvez exagerada da televisão que, nos anos oitenta com a chegada da cor e novas propostas de programação, das novelas, concursos e programas de entretenimento, na narrativa da obra. A isso não será alheio, não só o facto de Pedro Boucherie Mendes ser um profissional da televisão, como a idade em que viveu essa época. Para quem como eu chegara à maioridade em 1980, a televisão foi durante essa década um plano B, com lugar secundário no quotidiano dum jovem irreverente q.b., assediado por outro tipo de passatempos, digamos, menos virtuais. Por outro lado, tenho ideia de que a minha geração, nessa década, mais que ligada à televisão, estava apegada às rádios FM onde se podia escutar e, com sorte, gravar para uma cassete, LPs inteiros difíceis de obter em Portugal, ou ouvir outros programas, como o Café Concerto da quase esquecida Maria José Mauperim…
A propósito de esquecimentos, A Década Prodigiosa é uma obra memorialista escrita na primeira pessoa, entrelaçando subjectividades sentimentais com dados objectivos, estatísticos e históricos, e principalmente uma profusão de referências a toda a sorte de iconografia da época, de Júlio Isidro ao Tulicreme, de Saramago aos Scorpions, de Ana Salazar a Miguel Esteves Cardoso, de Fernando Pessa à Pepsodent, dos Porfírios ao incêndio no Chiado, da Olá Semanário às anedotas de pretos, da Maria Armanda “Eu Vi um Sapo”, ao “Stor” e “Stora”, do Rock Rendez-vous à banda Roquivários, Vila Faia ou o Casal Ventoso, as lojas Cenoura ou o golo de Carlos Manuel e Saltilho, Carlos Cruz e o 1,2,3, às Doce, enfim; que curiosidade provocará toda esta informação nas gerações vindouras? O que, destas tantas pequenas histórias que ilustraram as nossas vidas, sobreviverá às brumas do esquecimento? Não explicarão elas os contextos que proporcionaram as grandes histórias que construíram o que nos espera no futuro? Ou será A Década Prodigiosa apenas Rock n’ Roll para usufruir com gozo?
Publicado no Observador
Sendo a nossa vida terrena, mais do que limitada pelo tempo, limitada pelas memórias que guardamos depois de adquirirmos consciência, estou convencido de que a existência de cada um ganha um alcance temporal superior se adicionarmos à razão outros sentidos como o da intuição. Onde eu quero chegar com este raciocínio extravagante? Quero dizer-vos que, se formos dotados com curiosidade suficiente e tivermos convivido com intimidade com pessoas mais velhas que nós, conhecido de perto os seus ambientes e realidade circundante, hábitos, costumes e acontecimentos marcantes – históricos e familiares, conseguimos ter intuitivamente uma perna na sua época. Explico-me: o meu pai nasceu em 1937, cresceu numa casa que conheci bem, desvendou-me os seus livros, filmes, e músicas preferidas, além dos acontecimentos políticos nacionais e mundiais que o afligiram. Por outro lado, conheci o liceu que frequentou, muita da iconografia que o rodeava chegou ao meu conhecimento, desde automóveis e autocarros em que ainda andei, revistas juvenis como o Cavaleiro Andante ou a Fagulha, e muitos dos filmes que viu na infância ou juventude. Como eu mais tarde, viu as primeiras grandes metragens da Disney que o encantaram, o “Feiticeiro de Oz”, ou “E Tudo o Vento Levou”, e muito Charlot, Looney Tunes e canções francesa. Sei como admirava a beleza de Rita Hayworth ou Lauren Bacall que aos meus olhos é muito compreensível. Ainda hoje me comovo a ver “Breakfast at Tiffany's” uma fita que ele adorava, com a Audrey Hepburn no sue auge. Esse filme foi estreado no ano em que nasci, acontecimento de que não tive qualquer consciência – não basta estar vivo para ter a noção de algo que acontece. Aliás, dos primeiros anos da minha vida a maior parte das memórias são emprestadas – tenho uma vaga ideia de assistir a um jogo do Mundial de 1966, julgo que na casa duns amigos dos meus pais – nem toda a gente tem a memória prodigiosa de José Sócrates.
A pessoa mais “antiga” que conheci foi a minha bisavó Valentina da Silva Leitão, que nasceu em 1888 e morreu em 1973 quando eu tinha 12 anos. Convivemos muito, na sua casa, na Avenida da Liberdade 232, no andar que estreou em 1892 – aquelas paredes testemunharam a angústia do regicídio, a revolução dos republicanos, muita correria e tiros na rotunda. A Avó Tina, como lhe chamavam os netos, gostava muito de contar histórias que eu ouvia com atenção, enfeitiçado com as suas mãos deformadas pelo reumático. Muitas outras histórias me eram transmitidas nos salões daquela casa onde a sã conversa era cultivada. A curiosidade, os livros, fotografias e muitos testemunhos que me chegam fazem com que consiga meter um pé bem no início do século XX. Tenho um recorte de jornal que noticiava que ela partira um pé num passeio a cavalo ali para os lados da Ajuda, com o avô José com quem namorava. Como era regra de uma menina bem-educada daquela época, depois de ficar precocemente viúva levou uma vida austera, cuidando da sogra e da grande casa, não mais tendo vestido roupa colorida. Católica devota, assistiu ao milagre do Sol a treze de Outubro de 1917 em Fátima, acontecimento que gostava de relatar, e o seu mundo misturou-se desse modo com o meu. Nele penetro em peças ultra-românticas do final do século XIX, através de imagens pias de Nossa Senhora ou do Sagrado Coração de Jesus a preto e branco, ou através dum disco de goma laca de 78 rpm que nunca ouviu na juventude porque não era dada a extravagâncias.
Para trás dessa geração tenho dificuldades intransponíveis de imiscuir a minha imaginação, a minha vida não chegou lá. Não recebi directamente relatos ou memórias, não experienciei nada daquelas realidades. Só lhes acedo através das pedras puídas da cidade, dos livros ou em imagens estáticas, solenes, sem afectos. Sem deixar de ser fascinante, a informação passa ao âmbito da História, longínqua e obscura para os meus sentidos.
Esta é uma teoria em que venho reflectindo e que achei interessante partilhar com os meus leitores: sem prejuízo do fascínio do desafiante presente, até onde no tempo cruzámos afectos e experiências a nossa alma alcança, como se tivéssemos lá estado. Apesar de ter nascido apenas em 1961, a minha consciência – intuição? – chega bem mais lá atrás. Uma vida que se alonga longa, portanto. Já para o futuro a viagem é impossível, com a certeza de que nos enganaremos sempre nas previsões, pois não privámos com ninguém vindo de lá.
Na imagem: Os meus bisavós Valentina e José (Condes de Castro) com o meu avô e padrinho homónimo pela mão, com o seu basset em 1911 passeando na Avenida das árvores na Granja
Poucos climas há tão encantadores como o de Portugal. O Inverno é neste país menos áspero que nos países do norte, mesmo menos áspero que a região central de França. A neve só cai nos cumes dos montes. Gozam-se dias admiráveis que rivalizam com os nossos mais amenos dias de Primavera. No Verão, a temperatura é muito mais elevada do que em Espanha. E passam-se aí às vezes calores de abrasar, mal moderados pelos ventos quentes do Oceano Atlântico; mas encontram-se ali tantos sítios maravilhosos, onde reina uma Primavera eterna.
Maria Rattazzi,
Portugal de Relance,
1880
À hora que escrevo esta crónica deve estar o estimado leitor em casa, de cócoras debaixo da mesa de jantar para se proteger dos raios UV, com uma garrafa de água gelada numa mão uma peça de fruta fresca na outra, com ar condicionado no máximo e a avó fechada no WC dentro de uma banheira de água fria, enquanto a televisão sintonizada num canal de notícias, emite alertas vermelhos e o repórter questiona os incautos transeuntes sobre que acham do onda de calor - todos temos direito à nossa importante opinião. A Comunicação Social há uma semana antecipa em parangonas que com a chegada do mês de agosto chegarão dias de inclemente canícula.
Triste sina esta de ser da geração em que "o tempo" se tornou conversa séria. Tempos houve em que esse era tema de quem não tinha nada para dizer. Aqui chegados, até eu sou bem ensinado e concedo que o assunto é importantíssimo, numa sociedade em que ao Estado deixou de competir a boa governança da coisa pública e em troca de votos se advogou responsável pela felicidade das suas mal-agradecidas gentes - uma causa obviamente perdida. Em boa verdade fomos todos transformados em Princesas da Ervilha, que merecemos ser educados para o nosso bem-estar, com o aconselhamento da periodicidade conveniente para um retemperador copo-d’água e dos benefícios de nos recolhermos numa revigorante sombrinha quando confrontados com temperaturas altas. Bom é saber que entidades oficiais cuidam de nós, venerandos e obrigados. De resto nesta altura do campeonato, ao sol só trabalham os vendedores de bolas de Berlim, alguns operários da construção civil, os agricultores e uns quantos maduros voluntários a montar festivais de Verão e bailaricos de província – a luta de classes é um assunto quase encerrado.
Em tempos que já lá vão era da sabedoria popular que para o bem-estar da família nestes dias tórridos em casa corriam-se as cortinas e fechavam-se gelosias. Bem sei que corriam tempos em que o sol era um parceiro de duvidoso estatuto: todos os homens usavam chapéu e donzela reputada tinha a tez clara, andava de sombrinha, e só ia á praia mediante receita médica. A pele tisnada não era um bom indicador social, mas sim indício da actividade laboral na pesca, construção civil ou na lavoura. De resto eu sou do tempo em que só os estrangeiros e uma certa elite se entretinha a passar o estio nas nossas paradisíacas praias, besuntados de bronzeador (uma mistela gordurosa à base de tintura de iodo) e pomada Caladril em cima das feridas do nariz e das bochechas. Nos anos sessenta, enquanto Sir Paul McCartney e Sir Miguel Sousa Tavares se deleitavam no paraíso virgem Algarvio, em Milfontes no Baixo Alentejo, onde eu assisti à chegada do homem à lua, a praia no Verão era uma extravagância de dúzia-e-meia de famílias veraneantes que os autóctones exploravam legitimamente e que só acediam ao Domingo para piqueniques tribais, todos vestidos de cima a baixo, homens de chapéu e as senhoras de lenço na cabeça e as viúvas de preto, a distribuírem caldeirada de um grande tacho para a prole de pele alva até aos braços. A democracia demorou a chegar aos banhos.
Voltando ao tema quente da actualidade, quer-me parecer que os portugueses da metrópole (uns mais que outros, bem se vê…) sempre tiveram de enfrentar períodos tórridos durante o Verão, como dizia Maria Rattazzi nos anos 80 do Século XIX. Há que colocar a questão sob perspectiva e sem alarmismo. A minha memória não chega tão longe, mas lembro-me na infância de umas tardes tórridas no 3º andar de Campo d’ Ourique que perturbavam particularmente o génio do volumoso Senhor Marquês, meu saudoso Pai. Recordo-me como arfava nesses dias abrigando-se a escrever fanaticamente atrás de uma ventoinha que, de caminho desaustinava e sublevava também as folhas de papel manuscritas, por entre golos de água fresca que sofregamente consumia de uma garrafa de vidro para seu uso exclusivo. E lembro-me de um célebre dia 13 de Junho, julgo que em 1980, num "Passeio de Domingo" do Centro Nacional de Cultura, em que perto de 100 associados navegaram pelo Tejo acima numa barcaça dos fuzileiros, sob temperaturas perto dos 50º sem uma sombra digna desse nome até Escaroupim, perto de Salvaterra de Magos, onde pernoitámos em tendas cedidas pela marinha – íamos morrendo todos. E do saboroso que pode se tornar uma cerveja morna, já que a excursão tinha o patrocínio da Cerveja Sagres "Europa", novidade na altura em que a CEE era um mito exótico e mobilizador.
Como se verifica pelo atrás descrito, o Tempo pode ser afinal um bom motivo de conversa. E se não tivermos assuntos sérios com que nos preocuparmos, uns dias com dois graus em Lisboa, um nevão em Vila Real de Trás os Montes, ou acima dos trinta na Capital abrem noticiários e convidam-se meteorologistas e sociólogos a dissertar sobre as alterações climáticas e o fim eminente do Mundo como o conhecemos. Nada que por estes dias umas Ameijoas à Bulhão Pato e uma garrafa de Vinho Verde gelado não resolvam. E depois, como nos está prometido um dérbi para a 3ª jornada do campeonato no final de Agosto, descansem os meus amigos animação não nos vai faltar. Como dizem os ingleses, “Stick to the weather”!
Nota: agradeço ao Eurico de Barros a inspiração para a ilustração desta crónica.
Em Setembro vinha o tempo de férias que sobrava e se arrastava, desenganado e indolente com o sol a baixar e as sombras a crescer, dia após dia, até chegarem as primeiras nuvens e a brisa fresca, como um prenúncio do Outono, o início das aulas, o fim da festa. Eram dias em que fazíamos da rua extensão da casa asfixiante de enfado, a jogar à bola com os outros miúdos desocupados e impacientes, perante a inquietação das mães que espreitavam à janela ansiando pelo novo ano escolar. Aquele tempo era um tempo de gloriosa imprudência em que criançada, sem medos, em pequenos bandos corria pelas ruas de Campo d’Ourique, que lhes conhecia todos os segredos, do recanto que faz de baliza para jogar à bola, aos quintais escondidos entre os prédios, os figos doces que sobejavam nos ramos mais altos da figueira – que valiam tanto ou mais que o gelado que os nossos filhos, numa pausa dum jogo de consola, vão buscar comodamente ao congelador. Aquelas tardes do mês de Setembro lembram-me a minha magnífica bicicleta verde-garrafa, altaneira em cima dos seus pneus 26’ que me obrigavam a esticar todo para chegar aos pedais. Era tempo passeatas pachorrentas ou de corridas contra-relógio entre a malta do bairro a bater recordes ali na Praça Afonso do Paço, onde o rectângulo inclinado convidava a uma pedalada desafiante na subida e estonteante na descida.
O mês de Setembro também valia umas últimas fugidas à praia, com o areal meio abandonado, de águas tépidas e melancólicas num prenúncio da insurreição das marés vivas que nos iriam devolver de volta a casa, aos longos dias de espera pelo início das aulas que tardava. O tédio é um privilégio que as novas gerações não conhecem, entre o estímulo constante dos videojogos e os canais temáticos com aventuras e animação sem cessar – obrigava-nos a inventar, a ousar e às vezes a desatinar.
O fim de Setembro era o tempo das primeiras incursões à escola ou ao liceu, em busca dos horários e das turmas, cuja publicação tardava – tempos houve depois do 25 de Abril em que as férias se arrastaram até ao final de Outubro. Vinham as primeiras chuvas, as listas do material escolar e a ansiada visita à papelaria: lembro-me do gozo que me davam o cheiro do estojo novo, os cadernos imaculados, quem sabe uma mochila para estrear. Eram dias de um estranho júbilo que disfarçavam a melancolia do fim do Verão, a noite que cavalgava pela tarde dentro, as árvores que se despiam das folhas secas a estalar debaixo dos meus pés no caminho para a escola, nos primeiros dias de um novo recomeço, de rever outros amigos. Verdadeiramente o ano terminava gasto e envelhecido, em Setembro.
Dedicado ao meu filhote José Maria que por estes dias começa o segundo ciclo numa escola e vida nova.
O golo de que vos venho falar foi marcado em Março de 1974 por Hector Yazalde (Buenos Aires, 29 de Maio de 1946 - Buenos Aires, 18 de Junho de 1997), o primeiro de um desafio que o Sporting viria a perder em Alvalade por 5 – 3 naquele que foi o derby mais antigo de que tenho memória de presenciar ao vivo, para mais acontecido numa gloriosa época em que o Sporting se sagraria campeão nacional. Escolho este porque é da autoria de uma das maiores glórias leoninas de sempre que convém relevar mais e mais vezes contra o esquecimento, mas também pela forma acrobática como foi marcado - ainda hoje o tenho gravado na minha retina. Acontece que o presenciei de uma perspectiva privilegiada sobre a grande área Benfica na primeira parte. Nesse Domingo eu acompanhava o meu Tio Manel excepcionalmente em “Dia de Clube” – ocasião em que todo o público, sócios ou simples adeptos, tinham que adquirir ingresso pago, numa época louca em que no Estádio José de Alvalade cabia sempre mais um espectador. O ambiente resultava electrizante, como que explosivo.
Dizem que golos acrobáticos como este só podem acontecer quando facilitados pela defesa adversária, mas o que é facto é que, sem a facilidade dos dias de hoje de rever uma jogada de vários ângulos repetidamente durante a semana seguinte, eu nunca mais me esqueci daquele cabeceamento em voo planante para projectar a bola para o fundo da baliza de José Henriques - sem dúvida um golo de rara beleza que levantou todo o Estádio em imensa alegria (no vídeo ao minuto 1,24). O jogo, esse, que o Sporting viria a perder, foi para mim uma lição cabal da mística que possui um embate entre os dois vizinhos da 2ª Circular.
Quanto ao saudoso Yazalde que foi meu herói de menino, nessa época viria a conquistar a Bota de Ouro com 46 golos marcados, facto que ainda hoje constitui uma das maiores marcas desse prestigiado troféu europeu.
Nota 1: publica-se este artigo no dia do aniversário natalicio do meu saudoso pai, o primeiro responsável pelo meu sportinguismo. Em sua memória deixo esta nota de homenagem.
Nota 2: Texto elaborado para a série "Os melhores golos do Sporting" publicados aqui
Com uma pose bem-humorada pouco comum numa fotografia
de família do início do século XX (algures em 1908/9) aqui se apresentam,
de cima para baixo, a minha tia avó Carlota,
o meu avô José Maria de Lancastre e Távora
e os meus tios avós, Pedro, Rita e Luísa.
Num recanto paradisíaco de Lisboa entre Campo de Ourique e a Lapa, em frente a um prazenteiro chafariz ficava a casa para onde se mudaram no início dos anos quarenta os meus avós paternos, que hoje faço o mote das memórias que aqui partilho.
Não conheci o meu avô José, que morreu três meses depois de eu nascer: muito culto e severo, segundo rezam as crónicas do meu Pai, teve uma vida aventurosa entre a universidade onde a revolução da república o apanhou - e que não abandonou apesar de tudo - as incursões monárquicas que incorporou mais tarde com Paiva Couceiro, depois o exílio político, e finalmente a Iª Grande Guerra nas fileiras da Legião Estrangeira em que se alistou na Bélgica. Com temperamento pragmático, terá sido o primeiro membro da sua família tradicionalista, da antiga nobreza de Portugal, a completar um curso superior, opção que lhe veio a proporcionar uma profissão como engenheiro civil e a independência necessária para fazer face às mudanças de estilo de vida que no início do século XX pela Europa fora se radicalizavam. A fortuna da família que resistira às reformas e perseguições dos liberais, ao fim dos morgadios e a décadas de oneroso apoio ao Rei Dom Miguel, não resistiria às despesas do exílio da família em St Jean de Luz nos durante a 1ª república, à crise económica decorrente da Guerra e a uma manifesta falta de bom senso que a realidade exigia. A venda do Palácio de Santos ao Estado Francês foi consumada pelo meu bisavô João em 1917.
O exílio do meu Avô terminaria 1935 quendo regressou do Luxemburgo sete anos após o seu casamento com Maria Emília Casal Ribeiro Ulrich, senhora quase vinte anos mais nova: foi a minha madrinha, uma pessoa austera mas conversadora espirituosa, que recordo com saudade, de volta dos seus tricots, livros, ou até a assistir à transmissão dum relato de futebol ou ao Grande Prémio de Fórmula I, modalidades de que era entusiasta.
Outra personalidade inesquecível desta casa que a adoptou e de que era alma também, era a Tia Lalita, sobrinha direita do meu avô, solteira sem filhos e extremamente amiga da minha Avó, que acompanhou até aos seus últimos dias. Lembro-me bem da sua companhia em tardes soalheiras a costurar, numa pequena salinha aproveitada duma marquise, enquanto eu me entretinha com construções de Lego, a desfolhar livros da Becassine ou revistas do Cavaleiro Andante, todos sob o olhar atento do papagaio Jacó. Lembro-me também dos passeios que dávamos para os lados de Belém no Volkswagen carocha que a minha avó conduzia com desenvoltura. Consta que terá sido das primeiras senhoras em Portugal a tirar a carta de condução.
A casa dos meus avós Abrantes tinha algumas particularidades engraçadas: contrastando com os móveis antigos e os pesados quadros a óleo dos nossos antepassados, era equipada com tecnologias na época pouco usuais aos meus olhos, como uma grande televisão com comando à distância – por fio se bem me recordo - torneiras com misturadoras na casa de banho, centrifugadora para sumos e outros prodigiosos electrodomésticos. Para gáudio dos netos dispunha dum encantador jardim rectangular com limoeiros, onde podíamos correr e sujar de forma controlada. Era uma casa com uma área não muito grande, mas em três andares e com uma organização logística muito moderna para a altura. No rés-do-chão onde vivia a Lurdes, a exímia cozinheira da casa e o seu marido Manuel Brito com os filhos José e Maria Emília. Era no mesmo andar onde se situava a garagem e uma lavandaria com espantosa maquinaria, que estava na origem dos fascinantes ribeiros, às vezes com espuma e outras não, que corriam em direcção ao muro das escadas para uma misterioso “túnel” escuro, que servia para inúmeras brincadeiras com carrinhos, bonecos e pauzinhos. Foi nesse espaço mágico onde a determinada altura vivia escondida entre o carvoeiro e as capoeiras uma corsa assustadiça e focinho húmido - Seiça de seu nome. Tinha muito medo de mim e dos meus irmãos. Numa das janelas
rebaixadas sobre o jardim encontrava-se por vezes a Aninhas atrás da sua máquina de costura, muito velhinha, de que me lembro ouvir queixar-se dos olhos consumidos pelo trabalho...
Uma particularidade inédita desta casa - presumo que por influência do declive da rua - era uma zona, particularmente no segundo andar onde ficava a sala de televisão, em que o sobrado inclinava ligeiramente, favorecendo as corridas com os automóveis miniatura. Da janela dessa sala, nos dias de calor era comum eu ficar a ver num misto de inveja e repugnância, a miudagem a banhar-se com espalhafato no chafariz da rua, perante a condescendência do polícia de guarda à embaixada da Suíça, elegante edifício que com a fachada cor-de-rosa fazia do todo um quadro pitoresco.
De resto, a memória feliz que guardo das vezes que fiquei a dormir na Travessa do Patrocínio, é a sensação de viver no campo que se tinha ao levantar pela manhã; sem ruído de automóveis e com a perfusão de chilrear dos pássaros. Apenas interrompida pelo ecoar do altifalante do centro de saúde da Caixa de Previdência ali mesmo à esquina. Exóticas sensações e panoramas que ainda hoje se podem vivenciar em muitos microcosmos de intimidade quase bucólica, afinal bem no centro da cidade de Lisboa.
Fotografias:
1 - Arquivo de família
2 - A casa no final do século XIX - Arquivo da C.M.L.
3 - Perspectiva do Chafariz, por Ozias Filho
4 - Aspecto actual, por Ozias Filho
João António Gomes de Castro, meu avô e padrinho, nasceu faz hoje cem anos. Filho único de famílias com tradição burguesa e liberal, cedo ficou órfão do pai, tendo crescido no Portugal conturbado do princípio do século. Bancário de profissão e monárquico militante, foi um cidadão do seu tempo: fundou a editora Gama para publicação dos grandes doutrinários da monarquia, foi um dos primeiros portugueses com brevet de aviação civil, e acompanhou S.A.R. no exílio D. Duarte Nuno de Bragança na viagem ao Brasil em que se celebraria o noivado com D. Maria Francisca de Orleães e Bragança. Casou com Maria da Assunção Daun e Lorena, uma mulher fascinate de quem teve sete filhos. Na Avenida da Liberdade em que crescera, no coração do império como alguém chamara, constituiu uma das casas mais luminosas de Lisboa dessa época: muito ouvi eu falar os amigos dos meus tios e avós dos saudosos serões bem-humorados de conversa fácil e erudita, um mundo encantado que eu ainda vislumbrei em pequeno. O 25 de Abril apanhou o meu avô João numa acelerada decadência física causada por uma doença incurável. A revolução ainda teve o condão de lhe avivar a ingénua esperança no restabelecimento da monarquia, por via do sufrágio universal.
Hoje lembro com saudade o Avô João de fato elegante, lenço branco no bolso do casaco, cabelo com gel e cheiro a lavanda.
CAMPO D' OURIQUE
Não tenho o costume de viajar ou ir “à terra” no Natal ou na Páscoa, pois possuo ancestrais raízes alfacinhas, maternas e paternas, também reforçadas no cruzamento com “a tribo” da minha mulher, que nestas ocasiões festivas me prendem a Lisboa.
Vem isto a propósito duma tradição sui generis que eu e os meus irmãos ainda hoje cultivamos, independentemente do forte significado religioso que possui para nós a Páscoa cristã. Digamos que é uma “janela mundana” no culminar de uma Semana algo austera e introspectiva: todos os anos, no Sábado de Aleluia juntamos os miúdos e vamos ao Jardim Zoológico passar a primaveril tarde que precede a vigília Pascal daí a umas horas. Este ritual foi fundado pela minha avó materna, uma senhora de carácter aberto e divertido que, sob alguma reserva do meu pai, mais austero, juntava neste preciso dia os netos todos para este mesmo programa que se enraizou no nosso calendário familiar. Aproveito para dizer que foi desse lado materno, e dos meus tios da Avenida da Liberdade, que herdei uma arejada influência liberal e burguesa.
As memórias dessas tardes são felizes e difusas, pois misturam-se de uns anos para os outros. A primeira de todas é a da inusitada experiência de subir as escadas rolantes da estação de Sete-Rios, que ligava a casa dos meus avós à Quinta das Laranjeiras. O passeio começava sempre com a alimentação das carpas do lago, onde de seguida se alugavam várias gaivotas. Lembro-me de passear de gaivota, como me lembro de andar de patins ou pedalar de carro numa pista que simulava uma escola de condução infantil com instrutor e sinais de trânsito. A folia atingia o seu auge com a oferta duma moeda para o elefante tocar a sineta, com a Aldeia dos Macacos, um cartucho de amendoins, um gelado Olá ou um fofo de Belas e uma Larangina C na esplanada do bar. Lembro-me duma vez em que, a colher azedas tenrinhas, o grupo se aventurou numa zona mais recuada do jardim, com a surpreendente descoberta de uma quintarola, com coelhos, patos e galinhas. A tarde terminava amiúde no antigo parque dos baloiços, já perto da saída, onde se encontrava um carrossel e uma fascinante máquina, na qual uma banda de animaizinhos mecânicos (ou seriam só macacos?) tocavam uma ritmada marcha de coreto a troco duma moeda. Claro que o fascínio principal do jardim era exercido pelos inúmeros animais exóticos, que o meu irmão José conhecia de cor e me guiava nas respectivas singularidades, os quais eu revia todos os anos com o espanto de uma primeira vez.
O nosso grupo era sempre grande e animado, possivelmente variava quase todos os anos, com mais uns primos ou tia, participantes menos assíduos. Eram tardes intensas e divertidas, que recordo com saudade. Hoje, é em homenagem à avó que reunimos anualmente os sobrinhos e
irmãos que se queiram juntar para uma tarde divertida no Jardim Zoológico. Da minha parte, faço-o porque sei bem quão importantes vão ser, pelas suas vidas fora, muitas memórias felizes. Quantas mais melhor, para que os seus corações consigam sempre renascer fortes na Páscoa.
Fotos daqui
Tive uma adolescência atribulada: idealista e rebelde, naqueles loucos finais de setenta, princípios de oitenta, protestei e prevariquei quanto me foi (ou não) permitido. Durante esses tempos “de crescimento”, estragos fiz que mais tarde consertei, mas suspeito que até ao fim dos meus dias verei nas ingratidões do mundo e nas insolências das minhas criancinhas todas as cobranças que se me ficaram por saldar.
Entrevistei Dinis Machado duas vezes, no início da minha carreira profissional. Da primeira vez entrei-lhe em casa sem pré-aviso: morava na Rua Sacadura Cabral, ao Campo Pequeno, abriu-me de imediato a porta e ficámos a conversar até às tantas, como se fôssemos velhos amigos. Guardo dele a imagem de um homem de extrema bonomia, capaz de falar com prazer dos mais variados temas - do cinema aos policiais, da literatura clássica à banda desenhada, sem esquecer a política. Foi precisamente pela banda desenhada que ouvi falar, ainda em miúdo, do autor de Molero: ele era na altura chefe de Redacção da revista Tintim, que iniciou toda uma geração de portugueses na leitura - uma geração de que fiz parte.
Nessa conversa num acanhado aposento da Sacadura Cabral, repleto de livros e cheirando a cigarrilha, tive ocasião de agradecer a Dinis Machado aquela década de fascinantes histórias em banda desenhada. Saí de lá com uma extensa entrevista, um autógrafo no meu exemplar de O Que Diz Molero - uma edição do Círculo de Leitores com uma belíssima capa - e um livrinho que ele me ofereceu: Mão Direita do Diabo, de um tal Dennis McShade, então autor de culto em certas tertúlias lisboetas.
Machado-Molero-McShade era um adulto que nunca deixou de ser criança. O seu Molero - cujo êxito de vendas, impressionante para a década de 70, à escala portuguesa, nunca deixou de o surpreender - pode ser lido desta forma: como uma crónica em tamanho grande de um autor sem idade. E também como uma apaixonada declaração de amor a Lisboa, a sua cidade de sempre. Uma obra irrepetível.
As primitivas memórias que guardo dos Verões em Milfontes fazem sentir-me velho. Nos anos sessenta, exceptuando o café da Barbacã, que tinha televisão e gelados, e talvez nalguma casa que eu ignoro, a iluminação utilizada era gerada por lamparinas de petróleo. Nessa época recordo-me de comprar rebuçados a meio tostão, e de na feira de Agosto cobiçar um reluzente bimotor Douglas em folha de flandres. É desses tempos que me lembro das infindáveis horas de sesta a que nós, crianças, éramos cruelmente condenadas todas as tardes. Eu invariavelmente suportava o castigo impaciente, de olhos esbugalhados no escuro, mas com os ouvidos nos sons da tarde mole, que se arrastava lá fora na rua a estalar de calor.
(Continua em baixo)
Uma certa manhã de Agosto, no dia dos meus anos, acordei estremunhado e espremido pelas eufóricas meiguices do meu pai. Chegara de Lisboa e trazia embrulhado de presente um minúsculo insuflável encarnado que (mal ele sonharia) me proporcionou uma das melhores férias de sempre. Eu encaixava que nem uma luva no barquito, que com as palmas das mãos remava com destreza. Na minha imaginação, possuía um autêntico veleiro com o qual alcancei a Índia, cheguei a África e ao topo do mundo. Tirarem-me da água é que era uma carga de trabalhos.
Foto d' aqui.
Bem lançado, o Taunus verde eléctrico percorre veloz as tábuas polidas e enceradas do longo e escuro corredor. Na sua peugada chego eu em corrida e aterro de rabo à sua frente para um imaginário grande plano do bólide furtivo. Com o predilecto Lótus Europa em punho, reproduzo um peão bem calculado para, imitando o som duma travagem “à americana”, bloquear o seu caminho. De cara junto ao chão penetro com o olhar dentro da reluzente miniatura Matchbox, qual zoom que aponta ao seu volante, tablier e assentos monocromáticos. Com a imaginação fértil, visualizo o transtornado vilão ali sentado que prepara uma reacção à audaz artimanha de que foi alvo. Então, saco do pequeno carro da polícia que trago no bolso dos calções, encenando a sua chegada ao local da acção. Precipita-se assim o final da contenda e a vitória do “bom e valente herói”, que afinal sou eu próprio congeminado ali ao volante do potente Lótus. É tempo de interromper a brincadeira pois está na hora de ir à cozinha comer uma carcaça com manteiga, ou quem sabe, uma gemada a transbordar de açúcar.
Ontem, com as gargantas arranhadas, caras bronzeadas e ligeiramente molhados dos aguaceiros, regressámos felizes do Jamor. Com o coração acelerado, ainda parámos para umas farturas quentinhas, oleadas em açúcar e canela. O maralhal dispersava devagar, mais uma bifana e mais uma cerveja pró caminho, entre um cântico rouco e uma provocação aos rivais; o comboio ainda podia esperar por mais uns minutos de festa.
Voltando ao parque do Alvito... essa aventura acontecia ocasionalmente nas férias grandes de antigamente, intermináveis e insanas num terceiro andar de Lisboa. Então a minha mãe, do alto do seu metro e meio de mulher, corajosa e benevolente, fazia-se à aventura com as cinco endiabradas criancinhas e uma cesta de piquenique com sanduíches para todos. Nós, os mais velhos, tínhamos autorização para chapinharmos nas piscinas imundas e apinhadas de garotagem em histeria colectiva. Enquanto isso, a minha mãe tricotava e vigiava à distância, perto dos baloiços, com as minhas irmãs mais pequenas. Exaustos, ainda acabávamos a tarde a conduzir um eléctrico, um carro de bombeiros ou voando pela imaginação no esplêndido bimotor cravado ao solo - pendurados nas asas, que o odor emanado da cabine abafada era repelente. Como alternativa, por meio da mata verdejante, ainda nos entretínhamos na perseguição de algum insecto ou bicharoco, quais Dr. Livingstones à descoberta da natureza inexplorada.
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