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Novos tempos

por João Távora, em 18.10.21

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"Os nossos rituais estão para o tempo como a nossa casa está para o espaço, o ritual é um porto de abrigo que nos ajuda a unir o passado ao presente, o presente ao futuro, a unir as gerações passadas às gerações futuras, a criar um sentido de pertença comum".

Carlos Moedas há pouco no brilhante discurso de posse como presidente da Câmara de Lisboa. Cheira a novos tempos.

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Dêem uma chance a Lisboa

por João Távora, em 24.09.21

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Confesso que acho uma completa falta de noção a auto-satisfação evidenciada pela administração autárquica socialista de Lisboa que já dura há catorze anos. Para lá duma recente e insuficiente reanimação do mercado imobiliário - e consequente reabilitação duma quantidade considerável de edifícios da cidade - que tem como origem a chamada "Lei Cristas" e da recuperação de alguma actividade económica que advém do boom verificado no turismo (um fenómeno iniciado no consulado de Passos Coelho), a minha cidade continua num processo de decadência que tarda ser invertido.

De facto, a requalificação de certos espaços públicos, as ciclovias e a redução dos lugares de estacionamento, se servem para atrair atléticos ciclistas, visitantes dos conselhos vizinhos e cativar os turistas, pouco ou nada beneficiam os poucos habitantes da cidade que resistem à tentação de ir viver para os subúrbios com uma vista desafogada, boas acessibilidades, e sem maus cheiros. Uma volta pelo centro de Lisboa à noite, revela-nos uma cidade com centenas de edifícios devolutos ou emparedados, prédios e monumentos espichados de obscenidades, lixo abandonado em sacos ou fora deles ao sabor do vento. Lisboa tarda a recuperar uma oferta imobiliária suficientemente dinâmica para reanimar o mercado de arrendamento e atrair novas gerações para o seu seio. A maior parte das ruas quase desabitadas parecem superfícies vulcânicas que desafiam a resistência estrutural de qualquer automóvel ou autocarro. A vantagem por estes dias é que haverá freguesias em que é possível a um autarca mais zeloso conhecer pessoalmente cada munícipe.

Lisboa é uma cidade mal-amada. Destino de chegadas e partidas, ela foi perdendo a alma e na verdade hoje poucos lhe vestem a camisola. Poucos são os que choram com sinceridade o seu abandono e decadência. Não chegariam esses para por fim à desastrosa gestão da cidade de António Costa e de Medina? Penso que Lisboa merece um grito de alma que clame por uma mudança radical que só pode ser operada por quem se preocupe verdadeiramente com os lisboetas. Que os deixe prosperar e viver em paz, a movimentar-se na cidade com orgulho na sua terra e na sua história. Atraindo novas gerações e novos habitantes. Porque enquanto não voltarmos a vislumbrar crianças na cidade ela estará a morrer.

Temos de ter ambição pelo menos a desejar, a sonhar. Por isso gostava que Lisboa se enchesse de brios e corresse com os socialistas, dando a oportunidade a diferentes aspirações, mentalidade e energia. E isso só será possível com a vitória de Carlos Moedas no Domingo. Percebe-se pela sua equipa e pelo brilho que emana dos seus olhos.

Dêem uma chance a Lisboa, a minha cidade querida.

Amanhã, Lisboa em debate

por João Távora, em 08.09.21

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A Real Associação de Lisboa, seguindo com interesse e proximidade o debate autárquico na capital do país que é da sua jurisdição, organiza no próximo dia 9 de Setembro (quinta-feira), pelas 18:30h no Auditório da Universidade Europeia (Quinta do Bom Nome, Estr. da Correia 53, 1500-210 Lisboa) um debate subordinado ao tema "A gentrificacão e a sustentabilidade das cidades antigas", para o qual convidámos representantes de todas as candidaturas à Presidência da Câmara de Lisboa.

Até ao momento obtivemos a confirmação das seguintes participantes:

Ana Jara - CDU
Bruno Horta Soares – Iniciativa Liberal
Filipa Roseta - Novos Tempos Lisboa Arquiteta
Maria João Rodrigues – Mais Lisboa
Pedro Cassiano Neves - Chega

Se é lisboeta, não falte!

Nota: Irá honrar-nos com a sua presença o Senhor Dom Duarte, Duque de Bragança.

O verdete autárquico

por Corta-fitas, em 25.12.19

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A recente classsificação de Arroios como «bairro mais cool do mundo», ou lá que é, deve ter deixado a Câmara Municipal de Lisboa em tão enlouquecido narcisismo, que se esqueceu em definitivo das suas obrigações quotidianas com a higiene e a boa compostura dos seus bairros. Quem passe de autocarro na Estrada de Benfica pode constatar o abandono a que foi votado o Real Chafariz de Santo António da Convalescença, num vértice do jardim zoológico (o mesmo sucede àquele no largo do Rato e a tantos outros), mas a lista dos pequenos mas flagrantes descasos multiplica-se à medida que se avance cidade afora. Manutenção patrimonial consistente e vigiada simplesmente não existe na autarquia, nem é zelo que se implantasse nas freguesias por si mesmas. E o resultado está à vista, sem que incomode verdadeiramente «as autoridades», a quem é impossível reconhecer um plano de melhoramentos, ao menos nos lugares ditos simbólicos da história antiga de Lisboa (para turista ver).

Quem desça do cemitério do Alto de São João em direcção a Xabregas, ao fim da avenida D. Afonso III encontra um L de muralha que é tudo que resta do forte de Santa Apolónia, hoje entalado entre edifícios residenciais altos que dominam um maravilhoso panorama sobre o rio e a serra da Arrábida lá muito ao fundo. E ao fim da rua que o percorre encontra esta placa toponímica — que há-de parecer bastante pitoresca, very typical indeed, a turista que se aventure por ali, confundida com uma forma absolutamente original de sinalização urbana, quiçá candidata instantânea a qualquer prémio internacional de aparato. Mas só a ele, eventualmente. Um lugar onde por certo há muito tempo não vai ninguém que simplesmente possa ver e mandar fazer o que é tão evidente que tem de ser feito...

Vasco Rosa

A pastelaria Suíça e o futuro da cidade

por João Távora, em 28.06.18

Pastelaria Suiça, esplanada.jpg

Confesso que me faz um pouco de confusão o coro de lamentos e indignação a propósito do anúncio do fecho da pastelaria Suíça no Rossio, oriundo provavelmente da parte de quem nunca lá pôs os pés. Eu não tenho pena nenhuma: acontece que há muitos anos que aquele espaço perdera o charme de outrora, o seu serviço e oferta eram absolutamente indiferenciados, bastante medíocres. É assim a vida de muitos negócios: com o passar dos anos entram em decadência e fecham. Curioso foi ouvir esta manhã o testemunho de um velho engraxador da Rua da Palma a uma reportagem da Rádio Renascença que se queixava disto agora ser só "estrangeirada". O populismo nacionalista tem muita freguesia na nossa praça. 
Mas quem se lembra da ruína que a baixa pombalina atingiu há 10 ou 15 anos, não só desertificada de habitantes mas com os serviços em debandada? Ser um conservador não é o mesmo de ser resistente à novidade, muito menos gostar de decadência e do cheiro a ranço das “mercearias tradicionais” onde a proximidade era pretexto para explorar os fregueses incautos e reformados carentes. Ou exigir chapelarias, cutelarias e tabernas abertas a cada esquina ao som de pregões de aguadeiros e varinas. São incontáveis os negócios e as lojas que fecharam nas nossas cidades fruto da mudança dos tempos. Assim como são incontáveis os negócios que os novos contextos proporcionaram aos mais atentos empreendedores. Um conservador gosta desta dinâmica pois são essas mudanças que vão evitar a ruína e viabilizar a continuidade da sua cidade. E a propósito, já repararam nas dezenas ou centenas de novas lojas elegantes e nos sofisticados cafés, bares, restaurantes de conceituados chefes nacionais e estrangeiros que animam por estes dias as ruas de Lisboa? 

Sem dúvida que a grande revolução que está a reabilitar os centros das nossas velhas cidades traz efeitos colaterais perniciosos que é necessário precaver politicamente. Mas trazer o sentimentalismo e o saudosismo para alimentar a discussão é a melhor forma de meter a cabeça na areia e não enfrentar os desafios que o problema comporta. E de servir obscuras agendas políticas.

 

Fotografia Arquivo Municipal de Lisboa

Avenida acima, Avenida abaixo...

por Corta-fitas, em 13.11.17

2017-11-09 17.42.50.jpg

É um dia claro do princípio do Outono, talvez de 1905, ao fim da tarde: nalgumas árvores já há folhas castanhas, uma senhora tem ao pescoço as suas raposas e as sombras estão deitadas para Leste enquanto o Sol se começa a pôr por detrás das colinas sobranceiras ao Rato.  O céu mostra nuvens altas,  talvez tenha chovido de manhã e depois o tempo abriu para uma tarde clara e ensoleirada. É com certeza domingo: as pessoas passeiam, as senhoras vestem com elegância, algumas estão sentadas nos bancos da Avenida, os homens conversam gravemente. Lá muito ao fundo, o Tejo corre devagar entra navios ancorados, com os outeiros da Outra Banda, sem um vestígio de casario, a fechar o horizonte. Estamos no cruzamento  com a Alexandre Herculano. Rapazes pedalam nas suas bicicletas, Avenida acima; oficiais do Exército montam a cavalo, acompanhados de um casal, certamente rico e elegante, em que a senhora monta num baio, à amazona. Do lado direito, quase fora da página, um eléctrico aberto, de bancos corridos, sobe pelo passeio lateral da Avenida, do lado onde agora está o S. Jorge. Do lado esquerdo outro eléctrico desce,  pelo lado do Tivoli. Hoje seria ao contrário. Carruagens, fiacres, automóveis (a palavra acaba de ser aceite, depois de alguma polémica) convivem de forma anárquica sobre a terra batida do pavimento, num trânsito que ainda não tem sentidos obrigatórios. A maioria encosta ao lado esquerdo, mas há dissidentes. No primeiro plano uma carruagem puxada por duas parelhas, com cocheiro, sota e trintanário fardados, desce a Avenida, precedida por dois batedores a cavalo, com a mesma farda. Lá dentro, duas  senhoras ocupam os lugares de honra com um grave cavalheiro, de chapéu alto, correctamente sentado à sua frente, ás ordens. Dois oficiais pararam o seu Panhard e saúdam militarmente, de pé. Mais atrás um polícia imita, todo perfilado. Cavalheiros tiram respeitosamente o chapéu e num trem que sobe e se cruza com a carruagem duas senhoras levantaram-se e debruçam-se, curiosas. É fácil de perceber que as Raínhas Dona Amélia e Maria Pia vieram burguêsmente dar uma volta antes da ceia. Bem a meio da Avenida, altos espigões de ferro forjado sustentam duas lanternas a uns três metros do solo e mais um globo, lá no alto dos seus 10 metros: resultado do contrato que a Câmara celebrou com as Companhias Reunidas, em 1904, para a iluminação eléctrica da Baixa. Lisboa tem 400.000 habitantes e vive repousadamente os últimos anos antes da grande convulsão da Republica: daqui a cinco anos será neste mesmo lugar que se vão ouvir os tiroteios do 5 de Outubro, as rainhas partirão para o exílio e os oficiais do Panhard serão republicanos... Cento e doze anos e três revoluções depois, ( 5 de Dezembro de 17, 28 de Maio de 26, 25 de Abril de 74, todas elas para libertar o Povo e salvar a Pátria...) as figurinhas que animam a litografia, e os seus filhos e quase todos os seus netos, juntaram-se já ao grande rio da vida. A Avenida deixou de ser de terra batida, alguns dos prédios morreram, os eléctricos já não passam por ali, o Metro alojou-se debaixo das raízes das árvores, os automóveis ocuparam tudo. Mas incansavelmente, Avenida acima, Avenida abaixo, enquanto os crepúsculos de Outono se repetem, as gerações que passam constroem, dia a dia, a alma de Lisboa. 


Do nosso leitor Manuel Pessanha, num texto gentilmente remetido ao Corta-fitas por email a propósito da gravura acima que hoje voltamos a reproduzir.

Lisboa a arder

por João Távora, em 15.01.17

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Ironia do destino, a assunção de que o PSD concorrerá sozinho à CML surgiu pela boca de Pedro Passos Coelho no dia em que uma sondagem apontava para a preferência dos eleitores á direita por uma coligação. Uma péssima notícia para aqueles que viam nas próximas autárquicas uma oportunidade de castigar a esquerda pela trágica gestão que vem praticando no maior município do país. Digo isto com a autoridade de quem nunca foi um sectário do CDS, antes um pragmático que acredita ser a união dos dois partidos fundamental para os portugueses poderem ambicionar uma alternativa ao triste fado do socialismo. Espero enganar-me, mas receio bem que as hesitações e a demora na definição duma estratégia e de um seu candidato para Lisboa não deixarão de ser cobradas a Pedro Passos Coelho na devida altura. Definitivamente os lisboetas mereciam um entendimento entre os dois partidos à direita: cansados que estão de verem a sua cidade transformada numa lixeira e num infernal campo de experiências de mobilidade e trânsito, uma Lisboa que perdeu a vergonha de expulsar os seus filhos para as periferias, a capital que o tripeiro Medina pretende reduzir a um cenário hollywoodesco para turista ver, com o lixo escondido debaixo do tapete. Assim, com Lisboa “a arder”, um dia ele será recebido em ombros pelos portuenses mais ressabiados.  

 

Fotografia: Rua dos Anjos "Lixeiras de Lisboa" daqui

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Lisboa lisboeta (10)

por João Távora, em 03.11.16

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Rua de Santo António dos Capuchos

 

Medina fora de Lisboa já!

por João Távora, em 03.09.16

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É evidente que Fernando Medina percebeu a tempo o risco que seria para as suas ambições avançar com as polémicas obras de requalificação da 2ª Circular e agora arranjou um subterfugio para recuar no seu desvario. Valeu-lhe o cálculo político, ao pressentir que trágicas consequências daquelas obras na já precária mobilidade da cidade poderiam comprometer a sua eleição para a câmara. Valeu-lhe certamente a experiencia dos trabalhos no eixo central que por estes dias tornam a circulação na capital uma tortura para os lisboetas e visitantes, sem escapatória. O que é para mim evidente é que Fernando Medina não conhece, não sente, não gosta de Lisboa. Só se preocupa com os lisboetas na medida em que estes se tornem um trampolim para a sua carreira profissional. Acontece que fazer política exige uma mistura assisada de razão e paixão – a Fernando Medina faltam-lhe as duas coisas. Ele fazia um enorme favor à minha cidade e aos meus conterrâneos se retornasse ao Porto, e na sua terra desse largas às suas ambições profissionais, numa qualquer construtora ou empreiteiro.  

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Lisboa lisboeta (9)

por João Távora, em 30.06.16

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Esquina

(Ruas do Patrocínio e Saraiva de Caevalho)

Lisboa lisboeta (8)

por João Távora, em 28.06.16

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Igreja de Santo Condestável

Lisboa lisboeta (7)

por João Távora, em 26.06.16

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Campo de Ourique

Lisboa lisboeta (6)

por João Távora, em 20.06.16

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 Xabregas. Lisboa tem muito estilo. 

Lisboa lisboeta (5)

por João Távora, em 14.06.16

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 Rua de S. Julião

Lisboa lisboeta (4)

por João Távora, em 05.06.16

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Estátua do Rei D. José

Lisboa lisboeta (3)

por João Távora, em 25.05.16

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 Na minha aldeia (Campo d' Ourique

Lisboa lisboeta (2)

por João Távora, em 21.05.16

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Largo de S. Julião

Lisboa lisboeta (1)

por João Távora, em 20.05.16

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Lisboetas e não

por João Távora, em 12.04.16

 

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Foi na tropa que entendi a importância da origem geográfica de cada um:

no quartel, todos os meus companheiros me perguntavam de onde eu provinha

e identificavam-se pela sua terra de nascimento,

cujo nome muitas vezes era adoptado como alcunha.

 

Não, a maioria dos habitantes de Lisboa não são lisboetas. Até podem gostar da cidade um bocadinho como sua, mas não são de cá: têm as raízes noutras paragens, sempre idílicas, que cultivam em visitas periódicas donde chegam como se viessem do paraíso. Na recente apresentação do seu livro Alentejo Prometido — uma pungente declaração de amor às suas origens —, Henrique Raposo lamentou o facto das suas filhas «se estarem a transformar em lisboetas». Foi essa ingratidão que inspirou esta crónica. De facto, como é sobejamente conhecido, a maioria da gente de Lisboa não é lisboeta. Em Lisboa, uma cidade de passagem e acolhimento, a maioria daqueles que nela actuam diariamente não nasceram aí, e boa parte deles recolhe ao fim do dia ou ao fim-de-semana aos seus lugares originários.

Um lisboeta não é, tão-pouco, aquela figura criada pelo imaginário tripeiro de Pinto da Costa ou Rui Moreira, que vive entrincheirado no Terreiro do Paço a conspirar contra a «província», de que se afasta como filho ingrato. O lisboeta que se preze enquanto tal, não tendo de ser necessariamente um «puro-sangue», como eu, terá no mínimo que ter nascido na cidade e já não possuir uma «terra» dos seus ascendentes onde ir baptizar os infantes num fim-de-semana prolongado, ou regressar periodicamente nas férias para reencontrar os seus familiares. Quando era pequeno assisti não poucas vezes a diálogos entre guarda-freios da Carris sobre idas à «terra» tratar das vinhas ou trazer sacas de batatas, mas para um lisboeta de gema, a nostalgia do regresso não o desloca ao Minho ou ao Alentejo, mas lança-o directamente para o vasto mundo imenso que da Torre de Belém se vislumbra oceano adentro. Enquanto isso não se realiza, vai a Sintra com a família visitar a tia velha, e de caminho traz umas queijadas.

Também importa delimitar geograficamente Lisboa até à circunvalação da cidade. Um lisboeta não é de Massamá, Odivelas ou do Estoril aprazível para onde vim morar, mas que sentirei sempre como um certo exílio, ainda que dourado, com a praia quase à porta.

Como é bom de ver, não sobra muita gente a quem chamar lisboeta. Mas esse reduzido número de pessoas tem um traço tão marcado quanto inédito: ama a sua cidade, o seu bairro e as suas ruas com a profundidade intensa dos fadistas e poetas – também eles, não obrigatoriamente lisboetas...

Foi na tropa que entendi a importância da origem geográfica de cada um: no quartel, todos os meus companheiros me perguntavam de onde eu provinha e identificavam-se pela sua terra de nascimento, cujo nome muitas vezes era adoptado como alcunha. Filho, neto e bisneto de lisboetas, também eu fui aí nascido e criado em Campo de Ourique, «a minha aldeia». O meu avô paterno, engenheiro civil, ajudou a construir a igreja de Santo Condestável. Tem um jardim com coreto, um mercado agora muito em voga (a que chamávamos praça), uma escola primária e outra do ciclo (que frequentei), e um odor inconfundível, que respiro com deleite, sempre que lá vou. Irónica, digamos assim, foi a «ascensão» da família do meu pai que me trouxe aquele planalto da cidade: do Palácio de Santos, hoje Embaixada da França (onde os meus bisavôs ainda moraram), à Calçada da Estrela, e depois à Travessa do Patrocínio, onde o meu avô, acabado de casar, se fixou depois de mais de duas décadas exilado pela república, até ao generoso 3.º andar em Campo de Ourique onde cresci, passaram menos de 100 anos – é o que se chama subir na vida!

Em Campo de Ourique, e seu redor, viviam muitos dos meus primos, tios e amigos da escola, e era daí que o autocarro n.º 9 saía para a Avenida da Liberdade, onde viviam os meus outros avós. Ainda conheci e ouvi histórias da minha bisavó Valentina que, na primeira década do século, precocemente viúva, foi ocupar o 1.º Esq.º do prédio 232, a um quarteirão da Rotunda. Da varanda, assistiu ela às escaramuças que nos impuseram a revolução republicana.
Lisboa corre-me nas veias, portanto.

Podemos distinguir um lisboeta na rua pelo seu olhar blasé de quem já viu o outro lado da Lua: normalmente veste com sobriedade, tanto mais que não vai em modas antes delas estarem já bem experimentadas e quase em declínio. No fundo, o lisboeta de Lisboa é filosoficamente um monárquico, descendente de fidalgos arruinados, republicanos desenganados ou anarquistas desiludidos, acalentando sempre orgulho na sua ascendência, seja de fadistas, professores primários, jornalistas ou de modestos lojistas. Desconfiado de grandes aparatos, e principalmente da alegria dos vizinhos que vão e vêm das festas «na terra», dos seus filhos com demasiados piercings e tatuagens e filhas de cabelo azul-eléctrico, têm nos seus genes a secreta certeza de que as revoluções, as suas ou as dos adversários, nunca serviram para nada; que a vida é o que é. Mas o bom lisboeta toma sempre partido e não recusa uma boa discussão de política no café do bairro, e se for necessário cita o seu antepassado de que mais se orgulha.

O lisboeta não esconde o ensejo de um emprego estável, na função pública de preferência, à moda das rendas novecentistas enviadas da província, que lhe permitiam pagar o alfaiate e umas compras num Chiado afrancesado. Gosta de jardins, cafés e esplanadas para ler jornais ou namorar, e conhece os vizinhos com equidistância; é católico, agnóstico ou ateu com a determinação de quem optou em pleno discernimento, que na capital as disputas existenciais têm séculos de discussão, nas cortes, no partido, no clube recreativo, no parlamento e na taberna.

Os lisboetas pronunciam um português mortiço e tendem a omitir as vogais abertas, talvez para poupar energia, talvez por timidez. Distinguem-se dos vizinhos por um entusiasmo reservado, pelo andar mais lento e por um sorriso triste de quem imaginou ter herdado fortunas indivisas dos tetravôs das índias. O lisboeta, para lá das «questões futebolísticas» (às quais já não dá grande valor), não entende o rancor nutrido pelas gentes do Porto, afinal uma cidade bonita e acolhedora — e onde nasceram tantos progenitores de futuros lisboetas.

Depois, há que reconhecer que um lisboeta não se distingue pela sua cor dos olhos ou da pele: há-os com as mais variadas origens e culturas. No entanto, reconheço que há uma ameaça na «consanguinidade» lisboeta. Para não perderem o brilho nos olhos, os alfacinhas deverão abrir-se ao casamento com forasteiros — foi o que fiz. Já os meus filhos cresceram em São João do Estoril e não entendem a mística da grande cidade, que sentem como hostil e suja, e desconfio que a acham tão velha e fora de moda como o Pai, que é um monárquico militante, se atafulha em jornais, livros e discos de vinil e lhes conta histórias de outros mundos. Talvez um dia, por um qualquer acaso, retornem para lá viver e entendam a alma da minha cidade e os tiques deste inveterado lisboeta que também lhes está no sangue.

Acontece que os lisboetas nasceram e cresceram impregnados de história, calcorreiam-na todos os dias através das ruas antigas, passeios puídos, prédios velhos e monumentos históricos com os quais se foram familiarizando diariamente, por osmose. Da rua do Arsenal ao Bairro Alto, das calçadas íngremes da Lapa aos escritórios centenários da baixa pombalina, da igreja de São Domingos à rua de Santa Marta, ao Hospital de S. José, do Largo do Chafariz de Dentro às ruelas de Alfama até à velha Sé de Lisboa, do fatídico Terreiro do Paço (onde mataram o Rei), da inevitável Avenida Almirante Reis que já foi Rainha D. Amélia, do Jardim da Estrela aos do Castelo, o lisboeta corporizou, sem dar por isso, o relativismo do momento, a estreiteza da modernidade e das suas disputas tantas vezes risíveis.

Mesmo habitada por tantos fantasmas, Lisboa tem uma alma extraordinária, um jogo de luz e sombras que é mágico. Com as suas colinas e ventos, renova-se de ar novo e empolgante todos os dias, ampliado pela animação daqueles muitos que chegam e nela se instalam, ou a visitam ocasionalmente.

É com este sangue novo, entusiasmo e muita ilusão que a cidade se reconstrói diariamente das cinzas. Lisboa só é o fim da linha para quem vem do Estoril. 

 

Publicado originalmente no jornal i

Lisboetas

por João Távora, em 11.04.16

Lisboetas.jpg

 A minha sentida homenagem a Lisboa e aos lisboetas, sempre tão injustiçados e tão mal reconhecidos, já está acessível no Jornal i online


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