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Síndroma de Pedro e o Lobo
O Presidente 44
A tomada de posse de Barack Obama está a suscitar um arrastão mediático que, como é típico destes fenómenos, não facilita a análise dos factos. Obama é visto como uma espécie de estrela rock que vai transformar a América em todo o tipo de delírios ou um revolucionário capaz de mudar o mundo.
As referências mais citadas são Abraham Lincoln ou Franklin Roosevelt, dois presidentes que agiram em contextos de grande complexidade.
Os comentadores esquecem que o primeiro teve de travar uma guerra civil e o segundo criou as condições para vencer uma guerra mundial. O primeiro conseguiu evitar a divisão da América em dois países; o segundo enfrentou os desafios do fascismo e do comunismo. A propósito, o capitalismo venceu. Com Lincoln, os EUA tornaram-se uma potência; com Roosevelt, uma superpotência.
Com Obama, os EUA vão perder poder relativo no mundo. Não será culpa dele, mas do contexto.
Barack Obama será provavelmente um presidente de estatura invulgar e enfrenta dificuldades anormais. Terá de conduzir o seu país na pior tempestade económica das últimas décadas. A actual crise não se compara à Grande Depressão, mas será difícil de vencer. Obama vai baixar impostos e aumentar a despesa, mas a receita terá de ser doseada, pois se o défice crescer demasiado, a moeda perderá estabilidade. O país está a perder empregos a ritmo de meio milhão por mês e a crise pode até durar dois anos, ninguém sabe ao certo. Qualquer erro tornará a crise ainda mais difícil.
Os Estados Unidos estão envolvidos em duas guerras e Obama prometeu sair de uma delas. Isso não altera o fundamental: os EUA continuarão a ser a grande superpotência militar, mesmo que estejam a perder terreno em outras áreas, sobretudo para a China.
No plano externo, o novo presidente terá de enfrentar conflitos muito complexos, sobretudo a relação com a Coreia do Norte, Irão e o Médio Oriente. Não lhe bastará possuir evidentes recursos oratórios. E o nome do meio (Hussein) não lhe dará qualquer vantagem, ao contrário do que ouvi a alguém dizer na rádio.
Desenham-se mudanças de política na questão das alterações climáticas, no fim da tortura e dos abusos como Guantánamo. A retirada do Iraque também parece uma boa medida. No fundo, trata-se de anular os óbvios erros estratégicos da anterior administração.
Obama parece ser um centrista, um político cauteloso que gosta de consensos e da negociação. Também mostra preocupação pela continuidade, tendo na sua administração vários elementos da era Clinton. O novo presidente consegue fazer a ponte para os sectores mais moderados dos republicanos. E a sua capacidade retórica e atitude tranquila fazem lembrar Ronald Reagan.
A América é um país muito dinâmico, que se consegue renovar em cada vinte anos. É esta a esperança de Obama, a de criar uma formulação que dure duas décadas.
Muitos autores da blogosfera portuguesa manifestam uma esperança (a meu ver deslocada) em relação aos eventuais efeitos revolucionários da vitória de Barack Obama nas presidenciais americanas de terça-feira. As sondagens apontam para uma grande vantagem do candidato democrata, mas a votação ainda não acabou, embora já possa estar decidida. A tendência favorece Obama, pelo que este texto parte do princípio de que será ele o próximo presidente dos EUA.
Vantagens em casa
A nova administração terá provavelmente duas vantagens: Congresso favorável e muitos aliados com imagem positiva, dispostos a aceitar as suas propostas. Mas estes factores serão temporários.
McCain não teria estas vantagens, mas o seu programa não seria muito diferente. O candidato republicano tem posição oposta ao do democrata em pouquíssimos temas, na questão do aborto, por exemplo. Mas nas restantes questões sociais, económicas ou de política externa, os dois candidatos concordam no essencial.
Uma administração Obama não acabará com a pena de morte ou com o porte de arma; nos casamentos homossexuais, Obama não é favorável, mas também não se opõe. Haverá maior esforço na educação das crianças pobres, mais impostos para os ricos e, na saúde, regras menos favoráveis para as seguradoras. Mas mesmo neste assunto, o candidato democrata é mais conservador do que a sua rival derrotada, Hillary Clinton.
No ambiente, Obama defende a liderança americana na redução de emissões com efeito de estufa, mas também é um entusiasta dos subsídios de etanol. Na regulação financeira, as diferenças em relação a McCain são mínimas; e, no comércio livre, Obama é menos entusiasta do NAFTA do que o adversário, mas apoia a globalização tal como ela existe. Imigração ou energia são outros exemplos de áreas onde há diferenças mínimas entre os dois.
No mundo
Na política externa, estão em causa pormenores, por muito que isso custe aos entusiastas. Obama pretende negociar com o Irão e McCain quer mais sanções; no Iraque, o candidato democrata defende que as forças americanas serão retiradas num prazo de ano e meio (até meados de 2011). McCain defende o mesmo, embora para 2013. Nenhum dos dois parece saber muito bem o que irá fazer no Afeganistão. E, ao contrário do que afirmam muitos observadores, a Rússia não é um problema para os Estados Unidos.
O estilo e a personalidade têm importância em política, mas também a experiência. Obama será provavelmente um presidente menos centralizador do que McCain seria, e talvez mais prudente.
No entanto, quem espera grandes mudanças está a antecipar um Barack Obama que não existe.
A decisão
O debate
A pior maneira de analisar um debate político é ter o desejo irreprimível de que um dos lados vença. É por isso que discordo desta análise e me espanto com esta outra estranha maneira de ver a realidade. No que me diz respeito, não voto e não tenho preferência.
O debate McCain-Obama de ontem pode ter dado pequena vantagem a Obama, pois o democrata partia com avanço em relação ao adversário e terá talvez consolidado essa margem. Sem inversão da tendência nos Estados divididos, Obama venceu, mas ainda não sabemos, pois a opinião que conta é a do indeciso no Ohio e no Colorado, não é a de Ana Gomes, a de Daniel Oliveira ou a minha.
O que se viu foi um Obama defensivo e um McCain a sublinhar a sua experiência e, em contraste, referindo a inexperiência do rival. Obama concordou várias vezes com McCain e este tentou fazer com que o senador mais jovem parecesse um júnior. No plano de salvamento financeiro, nenhum foi claro; na economia, havia diferenças: o republicano quer cortar despesas e reduzir impostos; o democrata pensa em aumentar impostos para os ricos e cortar para os pobres, tendo reconhecido que poderia não ter dinheiro para manter programas prometidos.
Nos assuntos internacionais, a única diferença foi o Iraque. A ideia forte da campanha de Obama é “mudança”, mas sinceramente não se percebe em quê. Caso seja eleito, os entusiastas vão levar com um Presidente que continuará a política externa americana. A promessa de uma data para sair do Iraque não poderá ser cumprida, o reforço no Afeganistão será também à custa dos europeus e eu não gostava de ser paquistanês ou inquilino do Kremlin. Só uma pessoa poderá dormir mais descansada: José Luis Zapatero. O discurso de Obama foi sempre moderado, mesmo do ponto de vista de um republicano: ele falou várias vezes em Ossama Bin Laden e foi McCain quem mencionou Guantánamo, numa de várias tentativas de se demarcar de George Bush.
Os candidatos estavam nervosos e com pouco sentido de humor. Nenhum teve uma tirada memorável.
Empate? Talvez. O debate foi um morno zero a zero. A mim é que ninguém me apanha em outra noitada às duas da manhã; e se me apanharam nesta foi por causa do arraial no técnico, que uma luminária da câmara municipal decidiu permitir, para inferno dos moradores de um bairro inteiro de Lisboa.
As opiniões portuguesas sobre as eleições americanas dizem mais sobre política portuguesa do que sobre política americana. É interessante e divertido ler os nossos opinadores sobre as peripécias de democratas e republicanos, como se da sua opinião dependessem votos.
Mas há algo ainda mais interessante: muitos dos seus textos revelam os preconceitos nacionais, os quais ninguém se atreveria a confessar de outra forma.
Avaliando o que tem sido escrito na imprensa e blogosfera, penso que a legião de opinadores nacionais detesta a ideia de mulheres ou de velhos (homens experientes) no poder. Por outro lado, deseja a mudança, embora não a consiga definir. A nossa elite adora Hollywood, mas detesta a restante América. E concorda com impostos altos para ricos, sistema de saúde universal, economia regulada, leis ambientais duras. Por último, sente um frenesi de horror ao ver políticos a mostrarem as suas criancinhas no palco do comício (embora Obama possa) e (anátema) políticos a falarem de religião.
Um analista afirmava que é “profundamente idiota” dizer que Obama não tem substância, esquecendo que o candidato teve escassa experiência no senado, com apenas duas posições memoráveis, sobre o Iraque, onde estava certo numa e errado na outra. As suas reformas serão menos ousadas do que as de Hillary Clinton e a ideia de mudança está a ser mal interpretada, pois diz respeito sobretudo à mudança de protagonistas e de geração, não à mudança de políticas. É a parte anti-aristocrática e romana do código genético da América. Mas, entre nós, é visto como desejo messiânico.
A reacção à escolha de Sarah Palin foi ainda mais extraordinária. Dou um exemplo: uma destacada dirigente política não conseguia ver na candidata à vice-presidência as suas próprias qualidades. Apesar de ter feito a sua carreira com base no desafio ao aparelho partidário, tal como aconteceu com a senhora Palin, o seu texto reduzia a governadora do Alasca à caricatura da morena bimba.
McCain, por seu turno, visto à lupa da opinião nacional, é um velhinho a cair da tripeça, a quem vai dar o badagaio.
Estas análises, naturalmente, vão colidindo com a realidade. Mas um dos aspectos mais curiosos do mundo da opinião é que ele jamais se confronta com o seu erro de perspectiva.
O senador por Hollywood
O New York Times rejeitou um artigo do candidato republicano John McCain, uma semana depois de ter publicado um texto de Barack Obama. A escolha tem a ver com a liberdade editorial e deve ser respeitada. O artigo de McCain será até mais lido, devido à polémica. Mas o caso diz muito sobre a democracia americana. A eleição já está decidida e seria importante tentar perceber que interesses estão a empurrar Obama para a Casa Branca.
Depois de ter cilindrado uma candidata experiente e que, de facto, representaria mudança de política, sobretudo para os mais pobres da América, Barack Obama está a ser levado ao colo, até pelo insuspeito NYT. E, no entanto, o seu discurso continua vazio, as propostas relativamente banais. É quase tudo retórica, embora de excelente qualidade.
Também não percebo o deslumbramento dos europeus e da esquerda. À Europa interessam presidentes americanos que ofereçam uma parceria genuína. Bush foi desastroso, pois dividiu a Europa ao meio e alienou no processo os seus melhores aliados. Mas qual é a estratégia de Obama? Não me atrevo a dizer. Concorda o futuro presidente americano com a Europa da defesa ou vai debitar mais umas generalidades? E a esquerda? Essa devia ter apoiado Hillary Clinton, que perdeu por ser mulher, sem que se ouvisse um murmúrio das feministas.
Ao lermos os seus admiradores, Obama foi o grande inventor das palavras esperança e mudança. Mas, claro, a América não vai mudar: será o mesmo império, a mesma hiperpotência, que continuará a defender os seus interesses. E quanto à esperança, essa é uma ideia que deve ser coberta de mimos, mas jamais saciada. Vem em todos os manuais do poder.
Portanto, o senador por Hollywood vai ganhar as eleições. Num texto no Expresso, Daniel Oliveira afirmava existir uma “ditadura do politicamente incorrecto”. Ele falava de Portugal, mas penso que a realidade é exactamente a inversa. A América só anda mais à frente e mostra melhor o nosso futuro: Barack Obama será o primeiro Presidente americano eleito pela forma de pensamento a que se convencionou chamar “politicamente correcto”. A América impoluta, sem defeitos, deslumbrante, cheia de oratória, de lições de moral, infinitamente superior.
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