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Vem-nos da infância o irresistível fascínio por histórias. Uma história que nos resgate do vazio, dos medos e angustias, da fria solidão que se esconde na camada mais interior de nós mesmos. Talvez por isso, naquele sombrio lusco-fusco de alma que era a hora de adormecer, da criança largar as amarras ao dia agitado pelos espantos, afectos e sensações novas, antes do mergulho no escuro, na ausência, fosse tão precioso consolo ouvir uma boa história contada pelo pai ou pela mãe à beira da nossa cama.
Se na infância é uma boa história que nos salva a vida, não o é menos na maturidade; afinal passamos a vida à procura de histórias, somos caçadores de histórias, que nos restabeleçam as energias e o ânimo para abraçar a luta diária de deveres e maçadas. É assim que nos descobrimos ávidos por uma história oculta num retrato todo formal, numas ruínas duma casa, numa obscura gravação sonora antiga ou nas glórias passadas exibidas em símbolos, num emblema ou brasão de armas ou através de testemunhos confidenciados em documentos amarelecidos pelos séculos. A perdermo-nos num nunca acabar de pistas e enigmas, de parentescos por desvendar, contradições que reclamem pela nossa curiosidade e atenção, e a não menos necessária especulação, que no fim do dia nos permita ganhar uma história que nos resgate para longe das nossas misérias, da nossa precaridade, que nos expanda para outros horizontes temporais e existenciais. A descodificar, a investigar as pontas soltas duma história mal contada, numa relação íntima, o mais das vezes um mensageiro do passado, a que nos rendemos como a um velho amigo. Através de frases que nos chegaram por testemunhos vividos (quase sempre temos direito a uma tia ou parente com uma memória prodigiosa, repositório de mil e uma histórias), caracteres desvendados em vetustas fotografias que carecem de nomes; feições ou trajes, recados nas entrelinhas de diários ou cartas. As condecorações retratadas ao peito dum ufano antepassado do século XIX dizem muito das suas andanças políticas…
Se é esse o trabalho do historiador, sistematizado com as suas ferramentas, métodos científicos e ciências auxiliares, esta é também uma actividade eminentemente humana, responder à democrática inquietação que nos desafia a enfrentar o mistério, descobrir os dramas que se escondem à nossa volta, as peças escondidas de um puzzle sempre inacabado, que reclama pela nossa curiosidade e onde vamos à procura de mais humanidade, quem sabe o projecto de Deus lá escondido. Era isso que procurava o meu pai, que venho redescobrindo tardiamente pela sua obra historiográfica, estudos e publicações, em particular à volta da genealogia e da heráldica medieval. Agora percebo que o que ele pretendia não era apenas listar nomes e ligações genealógicas, ou enumerar as regras e as formas dos antigos “emblemas” de famílias ou comunidades geográficas. O que o meu pai procurava era conhecer as pessoas que daí emanavam e quem sabe descobrir alguma história. Porque a história é feita de histórias com pessoas lá dentro, de onde resgatamos a nossa humanidade.
As minhas preocupações mais profundas prendem-se com questões a que a política há muito deixou de acorrer. Duzentos anos passados sobre o início das revoluções liberais, a descristianização de Portugal tornou-se um processo acelerado – como no resto da Europa, o individualismo espalhou-se como um vírus que não olha a fronteiras. Aliás, a epidemia do “distanciamento social” só veio salientar a questão e agora entram-nos com violência pelos olhos adentro as igrejas encerradas e as missas cada vez menos participadas por esse país afora. A ligação à comunidade das paróquias é cada vez mais ténue, em muitos locais subsiste graças ao seu cariz assistencialista – é bom que os cristãos se distingam por cuidar dos mais frágeis. Os padres e cristãos consagrados são “a resistência” dos nossos tempos. Em abono da verdade nem a minha família (que é muito maior que a minha casa), de tradição profundamente católica romana, escapa a esta sanha pagã; o facto é que a maioria dos meus sobrinhos deixou de ir à missa e não se vislumbra que alguns dos meus sobrinhos netos venham a ser baptizados. Sim, há um problema geracional, a mensagem de Jesus Cristo, o drama humano, é pouco compaginável com o Instagram ou mensagens de WhatsApp, e não está a passar para os mais novos. Como não desejo a salvação só para mim, isso angustia-me, tanto mais que para lá do problema existencial a questão é também de identidade. De dia para dia, os portugueses, entretidos nos seus pequenos prazeres e idolatrias, vão-se desligando das suas raízes culturais (e territoriais). Ao final do dia suspeito que este não seja um problema exclusivo dos católicos. E que precisamos todos de um milagre que nos salve desta massificação hedonista e de que, um dia destes, a nossa Pátria não se dilua num mero algoritmo.
Fotografia: Igreja de S. Leonardo Atouguia da Baleia (Séc. XIII)
Existem danos colaterais da pandemia que, na hierarquia das prioridades vistas da enfermaria, acabam menosprezados e não deviam. Nem me vou centrar no problema causado pelo distanciamento social que, para muita gente que com esforço fomentava a sua rede de relações, a dinâmica será difícil de inverter. Constato com alguma tristeza como, apesar do desconfinamento, muitos ainda resistem a uma presença física numa reunião, mesmo que dentro das regras sanitárias, na possibilidade de poderem fazê-lo através de uma plataforma virtual. E nem estou a falar daqueles mais frágeis, prudentes ou temerosos, mas daqueles que por comodismo ou timidez evitam deslocações ou confronto pessoal. Acontece que as relações humanas são por natureza uma construção complexa que, para a maioria das pessoas civilizadas mas sem especiais dotes, exige algum esforço. Talvez por causa dessa falta de “ginástica” venho notando aqui e ali algumas sensibilidades exacerbadas e espíritos melindrosos. A manutenção de uma rede de afectos compensadora requer exercício contínuo e músculos oxigenados em sociabilidade. O problema não são os outros, está sempre em nós. Também não me vou centrar na questão do teletrabalho. Há muitos anos que o pratico, mais por necessidade que por opção. Evidentemente aqui, uma vez mais, a dinâmica relacional faz muita falta seja na tomada de decisões ou no processo criativo, já para não falar da competitividade que o convívio presencial promove com consequentes resultados na produtividade. A convivência com uma equipa ou hierarquia permite uma aprendizagem que nenhuma ferramenta virtual substitui. Além do mais o teletrabalho impede uma saudável separação de dois mundos distintos mas complementares, o familiar (e de lazer) com o laboral.
Mas se queremos mesmo encarar a regressão civilizacional que nos ameaça, devemos ter cuidado com a degeneração do cumprimento e das boas maneiras em geral. Digo-vos que aquela cotovelada adoptada pelos políticos em Bruxelas que vemos na televisão é uma coisa esteticamente deplorável. Mais vale usar a vénia chinesa. Suspeito que vai ser difícil voltar a por toda a gente a cumprimentar-se com urbanidade.
Mas isso dá muito trabalho tanto a ensinar quanto a praticar. Desde pequeno que na minha família todos fomos insistentemente educados a ser corteses e cumprimentar todas as pessoas, de qualquer condição, na obediência de um protocolo exigente. Evidentemente que não me esqueço como era desagradável quando em ocasiões festivas ou à porta da missa tinha de cumprimentar alguma senhora de cerimónia, com perfume demasiado intenso e muito pó de arroz na cara. Havia o risco de ficar com a marca do batom impresso numa bochecha que me enojava. Em casa dos meus avós o protocolo era uma longa tarefa de distribuição de beijinhos e pequenos inquéritos pretensamente simpáticos, a começar nos donos da casa e a continuar nas tias, terminando a empreitada nuns desafiantes passou-bens apertados, que me deixavam as mãos em brasa, ministrados pelos meus tios mais caturras. Só depois de consumado todo este ritual, estava livre para brincar com os meus primos. Imaginem vocês que os meus pais até nos ensinaram a beijar a mão a senhoras de um certo estatuto socio-etário, e nos deram aulas práticas de como se cumprimentam os príncipes. Esses ”sacrifícios” apesar das voltas que a nossa vida deu para longe desses universos, vieram a revelar-se-me muito úteis. Acontece que as boas maneiras são o chão com que se constroem relações harmoniosas e sãs. As boas maneiras são uma boa máscara para os nossos estados de alma, o mais das vezes instáveis, por razões tantas vezes obscuras.
Por estes dias de COVID19, nos encontros sociais que graças a Deus já vou retomando, tenho notado por entre a miudagem nova um certo alívio por estarem formalmente dispensados de cumprimentar os mais velhos, preceito que, suponho, sentem como uma espécie de incómoda vassalagem ou simplesmente uma limitação da sua liberdade. Ainda não descobriram que somos todos vassalos uns dos outros, e que estas cortesias todas nos enquadram e libertam para relações francas, construtivas e mais duradouras. Sem equívocos desnecessários.
De resto, como bem sabemos, é mais fácil destruir que construir. Por isso suspeito que não será fácil a retoma das boas maneiras, principalmente entre os mais novos, sabendo nós que é graças a esses complexos protocolos que construímos a nossa civilização. Que espero ninguém queira trocar por outra coisa.
Foi já no século passado, quando em tempos trabelhei num conhecido hotel de Lisboa, que tive o privilégio de conhecer o Sr. Mendes*, beirão com um espírito imenso que exercia as funções de porteiro da noite. O Sr. Mendes tinha imigrado para Lisboa nos anos sessenta oriundo de uma terriola perto de Castelo Branco, e antes de ingressar nesse hotel como mandarete – o início da carreira de quase todos os hoteleiros na época - tivera uma curta passagem na mercearia dum tio, experiência que serviu para se ambientar às ameaças da buliçosa Lisboa, cidade que ao mesmo tempo fascinava e assustava o cândido rapaz de 16 anos. Entre outras histórias – o turno da noite num Hotel, entre o fecho de contas das secções e os primeiros checkouts da madrugada muitas vezes permitia alguma distensão – o Sr. Mendes contou-me a grande aventura que fora o primeiro dia de folga depois de chegar a Lisboa. Para tanto, em vez de ir ao cinema como lhe tinham aconselhado os colegas, planeou e cumpriu um programa para ele absolutamente inédito: passar o dia na praia. Assim fez. Comprou ao tio um cacho de bananas (uma fruta à época pouco acessível e por cujo sabor exótico se deixara seduzir), apanhou a camionete na Praça de Espanha e foi passar o dia à Costa da Caparica. Foi nessa jornada memorável que, contava ele, aprendeu o que era a dor dum escaldão épico e o dissabor duma brutal indigestão de bananas. Foi assim a modos que trágico o seu debute na capital madrasta, que segundo ele, terá originado no dia seguinte, uma das poucas faltas que deu ao trabalho ao longo da vida.
Recordo-me também de uma observação que o Sr. Mendes fazia quando, guloso e com água na boca, ao descobrir que o cozinheiro deixara preparados uns suculentos bifes para a ceia da equipa da noite: “Destes, Sr. Távora, antes de chegar a Lisboa, só os via a passar à porta da casa da minha mãe, a puxar uma carroça - passávamos muitas privações”.
Lembrei-me destas histórias hoje ao saber que a Cantina da Universidade de Coimbra irá deixar de incluir carne de vaca na ementa. Estamos entregues a imbecis.
* Nome fictício
Queria escrever um texto sobre a importância da paternidade, advogar em causa própria (tornei-me um pai a tempo inteiro), algo que nestes tempos de feminismos exacerbados e decadência da chamada “cultura patriarcal”, talvez seja um atrevimento. Não quero de todo contrariar o cânone contemporâneo de que Pai e Mãe devem partilhar funções em casa: de facto não está escrito nos cromossomas quem deve lavar a loiça, mudar a fralda ao bebé a meio da noite ou pendurar a roupa no estendal. Mas parece-me importante homenagear as virtudes masculinas inscritas na paternidade, mais ainda quando tenho a convicção de que os tempos modernos consolidaram a matriz maternal do Ocidente, em cima da marca feminina da cultura católica, e se chega ao democrático século XX da revolução Pop, pelas utopias do Maio de 68 “Imagine all the people”, que cimentou o império do amor romântico e outros sentimentalismos muito femininos, já para não falar do predomínio da psicologia, da introspecção, do autoconhecimento, do diálogo e da compreensão, de afectos e negociações, tudo atributos de forte pendor maternal – que me perdoe o Eduardo Sá que é um modelo de mãe. Toda a cultura moderna exorta o pai a ser mais como a mãe, a seguir estes valores pacifistas, a saber interpretar sinais subtis, nuances emocionais, desejos não explícitos, sentimentos implícitos, negociações infindáveis; e há que conceder que perante este caldo, o macho arrisca-se a perde-se em pieguices melosas, terrenos pantanosos que não são inteiramente seus; e pior que isso, os filhos arriscam à grande perda de terem de crescer com duas “mães” ternurentas e protectoras, e muita confusão nas suas cabeças. Sim, é importante que o Pai procure entender e tire vantagem da sensibilidade e da astúcia feminina da sua companheira, e saiba optar por diferentes estratégias para a aproximação com os filhos – em matéria de educação, levar a carta a Garcia exige equilíbrios sensíveis, muito afecto, diplomacia, algum contorcionismo e, principalmente, razão. Aqui chegados e entendidos parece-me que hoje em dia é preciso reclamar a libertação do papel masculino da repressão igualitária que arrisca fazer do casal uma cataplasma incipiente e incapaz de cumprir os seus desígnios. Tanto mais que acho injusto exigir à mulher outras disposições que não as suas mais naturais, que significariam uma sobrecarga ao instinto maternal que lhe confere demasiadas obrigações e, quem sabe, complexos de culpa. O facto é que a “veia masculina” do Pai faz falta às crianças, com tudo o que o excesso de endorfinas lhe confere, para cortar a direito quando é preciso, de empurrar as crias para a arena do risco e do desafio, ou de assumir a tirania de clarificar as meias tintas, de desmontar a manipulação, assumir a voz grossa para impor limites ao que não se pode mais tolerar, disfarçar a angústia numa resolução salomónica, sacrificar a acomodação e a paz que se tornou podre, impedir uma injustiça, pôr um adolescente na ordem... enfim.
Fui educado por um pai que, talvez por ser muito brincalhão e afectuoso avant la lettre, do alto do seu 1,90 de tirania e potente voz de tenor, muitas vezes me desconcertou com as suas fúrias bravias – boa parte delas com alguma razão. Passadas mais de duas décadas de saudade, tenho a certeza que muita falta faz para a formação do bom carácter dum infante a complementaridade harmónica mas distinta das marcas paternal e maternal. Que a febre da igualdade não acabe com isso é o meu desejo. De resto, a vida descobre sempre caminho e um pai faz muita falta.
A Praça de Campo de Ourique
Somos feitos também com memórias de acontecimentos e experiências banais, que é do que trata esta crónica. Foi quando eu era pequeno que começaram a aparecer em Lisboa os primeiros supermercados, uma revolução enorme na forma de comercialização dos mais variados produtos de uso doméstico, principalmente alimentares, que assim eram disponibilizados em grandes espaços fechados, num sistema de self-service, num ambiente limpo e de arrumação racional onde qualquer pessoa de qualquer condição social se sentia convidada a entrar. Ainda bastante pequeno, lembro-me de algumas incursões com o meu pai, que gostava de cozinhar e era um bom garfo (nos dias de hoje seria chamado “gourmet”).
Mais comum nesse tempo eram as mercearias, pequenas e obscuras lojas o mais das vezes contiguas à residência do proprietário, que tinham um pouco de tudo, desde tabaco, detergente ou feijão seco, que dada a proximidade e familiaridade com o freguês, atendiam fora de horas por especial favor, concediam crédito e carregavam nos preços.
Mas do que guardo melhores recordações de então é das idas ao Mercado com a empregada da casa dos meus Avós. A “Praça” como lhe chamávamos, algo que os meus filhos simplesmente não conhecem, era um género de feira num gigantesco recinto semifechado que abria todos os dias menos à segunda, onde se vendiam além de toda a sorte de produtos domésticos, alimentos frescos como carne, peixe e legumes, frutas e flores, comercializados em longas alamedas de bancas pelas vendedeiras que chamavam os clientes, quase sempre donas de casa ou empregadas de servir, tratando-as por “minha querida” e “meu amor”. Então, eu acompanhava a Celeste, empregada dos meus avós, fascinado com os coelhos pendurados a pingar sangue, os pombos, patos e galinhas vivos em grandes caixotes, pelas pescadas de olhos esgazeados e bocarra aberta, molhos de carapaus rebrilhantes, o assustador tamboril, a fruta e os legumes da época, sempre na esperança de ganhar um chupa, um gelado ou chocolate de recompensa por bom comportamento. Um dia regressei a casa radiante premiado com uma jovem rola viva que por uns dias cuidei extremosamente na varanda que dava para a Rodrigues Sampaio… até o fabuloso e ingrato bicho ensaiar um voo e desaparecer nos telhados vizinhos para meu enorme desgosto. A dureza da vida também se aprende com os abandonos, e esse terá sido um dos primeiros de que me lembro.
Tenho ideia que havia um mercado destes em cada bairro da cidade e lembro-me de conhecer pelo menos os de Picoas, da Alexandre Herculano e o de Campo de Ourique onde era a casa dos meus pais. O mais curioso é como o sistema exigia à dona de casa possuir não só uma intuição especial para reconhecer a qualidade e frescura dos alimentos e não se deixar enganar nas medidas e nos pesos – na altura poucos produtos eram embalados e alguns, como os frangos ou os patos era usual serem mortos e depenados ao momento – como ainda ter a arte de regatear os preços com firmeza e compará-los entre as diferentes bancadas vizinhas. Tratava-se de uma importante contenda em que as mais experientes donas de casa disputavam autênticos troféus para no final exibirem com vaidade às vizinhas e com eles premiarem a família na mesa do jantar… como um caçador ufano da sua presa.
Vistas bem as coisas, o facto é que me parece que a realidade muda sempre mais na forma do que no conteúdo e hoje os supermercados, maiores ou mais pequenos, recriam o jogo das compras através de intrincadas promoções e cartões de descontos em que os fregueses mais sabedores podem alcançar uma semelhante sensação de glória na poupança de muitos euros. Irónico é constatarmos como, para o melhor aproveitamento dos descontos e conseguirmos uma dispensa preenchida com produtos mais baratos, temos não só que ser inteligentes como ter uma carteira bem recheada. Quem disse que a vida era justa?
Vasco Santana no papel de merceeiro
Nunca ninguém garantiu que a liberdade, a escolaridade e a prosperidade democratizassem o sentido de responsabilidade ou o bom senso. Vem isto a propósito de um fenómeno que o "inverno demográfico" esconde: se é previsível que daqui a dez ou quinze anos tenhamos metade das escolas ao abandono, mais graves serão as consequências duma crise que se adivinha na "família" como célula mãe da sociedade, capaz de corroer de forma dramática os alicerces da nossa civilização.
Sou daqueles que teve a sorte de crescer numa família tradicional - sem dúvida um espaço alicerçado no equilíbrio entre a tolerância e repressão - daquelas com abrangência alargada, com casa dos avós, tios, primos e tudo; como que um mosaico de pequenas comunidades, mais ou menos interligadas numa rede de solidariedade, afectos e partilha de história comum - e que de forma decisiva em tempos me socorreu. É certo que para que este antigo e eficaz modelo se generalizasse na sociedade contemporânea, concorreu uma equívoca mistificação do casamento romântico na geração dos nossos pais: O casamento tradicional foi-lhes "vendido" por Hollywood como um conto happily ever after e resultou num estrondoso baby boom. Completamente fora de moda por estes dias, denúnciada a família como “instituição burguesa,decadente e repressora” pela geração do Maio de 68, não se prevê que eu tenha grande sucesso explicando-o aos meus filhos como instituição ligada à responsabilidade, ao altruísmo, à perseverança e ao prazer diferido. A verdade não vende, como não ganha eleições.
Como bem sabemos, cada vez há menos casamentos, no sentido da formação de novas “casas”, modelo de sucesso comprovado inspirado na aristocracia liberal europeia. Consta que no ano passado, das poucas crianças nascidas, mais de metade terão sido fora do casamento. Por exemplo, durante o ano de 2014 na paróquia do Monte da Caparica na margem sul do Tejo – sei bem que é um microcosmos algo especial - realizaram-se apenas quatro casamentos católicos. Curioso como no meio conservador que frequento também são cada vez mais raros os sinais de cedência dos jovens a esse modelo, sendo frequentes as relações amorosas "liberais" prolongadas, assumidas com um pé dentro e com outro fora da casa dos pais – julgam que obtêm assim o melhor dos dois mundos. Por ironia trata-se do reconhecimento de como a casa de família que alguém edificou e mantém para eles, é afinal útil e virtuosa instituição como seu último reduto de refúgio e reconhecimento, apesar de votada à extinção.
Temo que estejamos a criar uma sociedade de indivíduos isolados e frágeis com pertenças difusas, precárias ou inexistentes até. A família como eu conheci, como um organismo intermédio, projecto perene, crivo cultural com história própria, território protector do grande monstro igualitário da cultura dominante para a formação de seres críticos e livres, atravessa uma grave crise. Essa família que ainda hoje acolhe os deambulantes jovens adultos, quais eternos filhos pródigos que adiam assumir as suas opções e uma realização plena, por troca dum prato de lentilhas ou um smartphone de última geração, símbolo da sua “liberdade individual”. Se calhar ao definir este fenómeno como se de uma crise se tratasse, estarei a ser optimista. Porque esse termo por definição designa algo passageiro – e eu estou longe de pressentir alguma mudança no rumo da história.
Fotografia daqui
É irónico como nesta sociedade que venera o corpo e as aparências não haja parábola mais eficaz sobre as virtudes do mérito e do prazer diferido do que a da forma física. Tal como na escola só se aprende com estudo e empenho, tal como a riqueza só é criada com esforço e trabalho, a partir duma certa idade, a forma física depende fatalmente da austeridade alimentar e de muito, muito, exercício físico.
Vítor Damas, um dos melhores guarda-redes portugueses de sempre, nasceu a 8 de Outubro de 1947 em Lisboa e morreu prematuramente aos 55 anos, em Setembro de 2003. Este mítico jogador, senhor de inaudita elegância dentro e fora dos relvados, fez nada mais nada menos do que 444 jogos oficiais em dezanove épocas ao serviço do seu clube do coração. A sua ascensão à titularidade no primeiro escalão do futebol leonino coincide com a minha tomada de consciência “sportinguista”. Acresce que um guarda-redes destaca-se no campo não só porque se equipa de cor diferente, mas porque assume o solitário papel idiossincrático dum homérico contrapoder – cabe-lhe a missão de se transcender de corpo inteiro, incluindo as mãos, na obstrução do maior objectivo dum jogo que se joga com os pés: o golo. Assim se entende como ele é por natureza um cromo tão difícil, definição que encaixa como luvas no mítico guardião leonino.
Talvez seja por isso que, na perspectiva de uma criança, não só o ponta-de-lança mas também o guarda-redes, adquiram tanta importância num jogo ainda difícil de interpretar: tratam-se afinal do primeiro e último reduto do exército no campo de batalha. Nesse sentido, tomar consciência do futebol com protagonistas como Yazalde e Vítor Damas foi um privilégio que sustentou o meu sportinguismo. Nas brincadeiras, “ser o Damas” era o privilégio de ser a antítese de Eusébio, o incontestável ídolo da época, que quando um dia lhe perguntaram qual a sua melhor memória do velhinho estádio de Alvalade, em vez de se referir aos seus golos ou vitórias, aludiu-se a uma extraordinária defesa do Damas ocorrida em 9 de Novembro de 1969 que então ocasionou a vitória ao Sporting por 1-0. Por estas e por outras é que Carlos Pinhão, histórico jornalista de A Bola, descreveu em manchete o mítico guarda-redes leonino como “o Eusébio do Sporting”. Foi sem dúvida um dos melhores guarda redes portugueses de sempre.
De facto, Vítor Damas distinguia-se entre os postes pela garra, intuição, agilidade e elegância. Mas fora dos relvados diferenciava-se por uma erudição na época invulgar no meio: sabia exprimir-se como poucos colegas, e a determinada altura manteve até uma crónica regular no jornal do Sporting - um traço que para mim fazia toda diferença.
Dizem que Damas era irreverente e que tinha "mau perder", que entre os postes era capaz do melhor e do pior de um jogo para o outro. Mas acontece que era um líder da equipa e que do coração sangrava verde e branco até a última gota. Uma qualidade rara nestes tempos: foi desde menino que orgulhosamente envergou e dignificou a camisola verde e branca, pela qual toda a vida se bateu e com a qual morreu tornando-se um verdadeiro ídolo para várias gerações. Assim, decidiu viver para sempre. Quantos contratos milionários isso não vale, Rui Patrício?
Publicado originalmente aqui
Demorou algum tempo mais para que eu próprio, pelo meu pé, descesse da minha árvore.
Maria Clementina cresceu em sabedoria e graça, já que de tamanho nunca foi grande coisa. Fazia grandes e repentinas corridas pelacasa fora, trepava paredes e cortinados, apanhava moscas com a patinha e rebolava, enrolada na minha mão, mordiscando-a com pequenos coices.
Foi com "Os Marretas" que consegui detectar o pezinho maroto do meu pai, no alto do seu sofá, a bater o ritmo do rock mais pesado. E a rir-se à gargalhada com os chavões dum tempo que definitivamente já não era o dele.
Era a gloriosa alvorada da FM num país que, arquivada a revolução e a aventura marxista, despertava para o mundo. Virou-se então a vida da rádio para o Rock em Stock, com um Pão com Manteiga ao Fim-de-Semana, e o rock em português.
Hoje, por lealdade e caturrice ainda reservo todos os anos uma parte das férias com a família em Milfontes, num sítio onde nos podemos abstrair da feira que fervilha lá atrás, e de noite se ouve o chapar dos barcos na água e as cigarras a trinar.
Desde há alguns anos, com as universidades e escolas superiores a debitarem dezenas de milhar de “dôtores” por ano, e porque não podemos ser todos “dôtores” sem estragar o arranjinho, o título passou a ser atribuído consoante o lugar de cada um na hierarquia.
Mais do que a bola e a bicicleta que me conquistariam mais tarde, elejo os meus carritos Matchbox como o brinquedo preferido da minha infância.
O tempo parou como se vivêssemos um eterno retorno, escravo das estações do ano, das horas do dia, como se não houvera sentido, se não a rotação outra vez e outra vez.
Foi em Campo d’ Ourique que eu cresci. Que me fiz rapaz, a bem e a mal. Que atravessei e palmilhei tantas vezes, tantos quilómetros. Para ir à escola, ao liceu, à praça e à farmácia, aos meus avós, à igreja. Para todo o lado e para o inferno também.
A propósito de "carreiras" e outros deslumbramentos, recupero esta crónica memorialista há muito publicada aqui no Corta-fitas. Amanhã é sobre o "meu" Bairro.
A guerra dos sexos não é a luta de classes, é garantia e perpetuação da incontornável e fascinante atracção dos opostos.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.
Caro SenhorPercebe-se (?) que a distribuição cultu...
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Muito bem! É sempre um gosto lê-lo/ouvi-lo.Cumprim...
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