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Sei que a genialidade de David Mamet como argumentista não oferece muita discussão desde O Veredicto (1982) e Wag the Dog (1997), a brilhante sátira sobre os bastidores das campanhas presidenciais americanas com Robert de Niro e Dustin Hoffman.
Só agora me deparei porém com o Mamet realizador, na adaptação ao cinema de The Winslow Boy, a peça de teatro sobre um processo judicial que abalou Inglaterra nas vésperas da primeira grande guerra, amplamente mediatizado na época através dos meios então ao dispor.
Na origem do caso esteve a expulsão de Ronnie Winslow, um cadete da academia naval de Osborne, por alegado roubo de um vale postal no valor de cinco xelins. A peça conta a saga de um banqueiro reformado que decide empreender a defesa do filho nos tribunais, acreditando nos seus protestos de inocência. Mamet parte da peça de Terence Rattigan e transforma-a num filme com o seu trademark enredo complexo mas preciso como um relógio suíço, e só posso resumir este The Winslow Boy como magistral.
Nigel Hawthorne é Arthur Winslow, o pai que obsessiva e quase insensatamente empenha todos os seus recursos, materiais e físicos, para provar a inocência do filho.
Depois de conseguir interessar pelo caso Sir Robert Morton (Jeremy Northam), o mais famoso advogado do tempo, Arthur Winslow inicia uma penosa escalada processual com o apoio e o sacrifício de toda a família. O irmão mais velho de Ronnie é forçado a abandonar dos estudos em Oxford e a irmã, Catherine, gasta o dote no pagamento dos honorários do barrister e vê o noivado cancelado porque a publicidade à volta do caso Winslow não é compatível com um casamento adequado.
Driblando todos os clichés, este é um filme sobre um processo judicial que não é um "filme de tribunal" nem tem uma única cena passada na sala de audiências. Mamet pretende contar, mais do que a história de uma batalha na justiça, a da luta pelo bem. Quando finalmente vence o último recurso que lhe irá dar a vitória, num dos grandes diálogos do filme, o advogado explica que o importante não é que tenha sido feita justiça, mas que tenha sido feito o que estava certo: "Easy to do justice. Very hard to do right".
Em subplot, Mamet conta ainda a história da sedução entre Catherine, uma sufragista empenhada em causas sociais, e Sir Robert Morton, deputado do partido conservador, ostensivamente céptico em relação aos direitos das mulheres. Uma lovestory feita de olhares e subentendidos onde pontuam diálogos como este, que termina o filme:
Sir Robert Morton: Oh, you still pursue your feminist activities?
Catherine Winslow: Oh yes.
Sir Robert Morton: Pity. It's a lost cause.
Catherine Winslow: Oh, do you really think so, Sir Robert? How little you know about women. Good-bye. I doubt that we shall meet again.
Sir Robert Morton: Oh, do you really think so, Miss Winslow? How little you know about men.
Um final à altura de um filme superlativo.
UM CENTENÁRIO ESQUECIDO
O melhor filme português de sempre.
No dia em que Manoel de Oliveira festeja cem anos
Durante muito tempo, quando fazia a mim próprio a pergunta sobre qual seria o melhor filme português de sempre, hesitava na resposta.
Podia ser A Canção de Lisboa (1933), extraordinária comédia 'à portuguesa', como muito mais tarde se convencionou chamar -, prodígio de escrita cinematográfica, ímpar entre nós, com um trio de actores em estado de graça e uma agilíssima realização do arquitecto Cottinelli Telmo. Beatriz Costa, Vasco Santana e António Silva ainda hoje, tantas décadas depois, provocam gargalhadas no espectador com os seus diálogos saídos da inspiração de Chianca de Garcia e José Gomes Ferreira. É um filme cheio de momentos antológicos, como o da ida do falso veterinário Vasquinho ao jardim zoológico e a sua frase "Chapéus há muitos".
Podia ser O Pai Tirano (1941), outro filme único na nossa cinematografia - prova evidente de que o seu realizador, António Lopes Ribeiro, era não só um produtor de rasgo e um divulgador de mérito mas também um cineasta capaz de assinar um trabalho que transcendeu a sua época. Como Jean Renoir faria muito mais tarde em A Comédia e a Vida, aqui também o cinema e o teatro se enlaçam na banal existência quotidiana, gerando de caminho um singular retrato de um certo Portugal desses anos em que a guerra assolava o mundo. É um filme cheio de segundas intenções, começando pelo próprio título, e também percorrido por momentos antológicos protagonizados por excelentes actores, como Ribeirinho, Teresa Gomes, de novo Vasco Santana e uma fugaz diva do cinema português chamada Leonor Maia que passaria a ser conhecida por Tatão, o nome da sua personagem em O Pai Tirano. Haverá maior enlace entre a comédia e a vida?
Mas além destes dois houve sempre outro. Um filme que vi na altura apropriada, ainda criança. Porque é de crianças que trata. E não me lembro de mais nenhum produzido antes dele, em Portugal ou qualquer outra paragem, que soubesse tratar o mundo infantil de forma tão sensível e tão credível. Desde os instantes iniciais, com aquele inesquecivel pré-genérico que culminava no súbito aparecimento de um comboio em grande velocidade e um grito de horror. Falo de Aniki-Bóbó (1942): nada sabia do nome do realizador nem daquelas informações adicionais que fui acumulando sobre esta primeira longa-metragem de Manoel de Oliveira, produzida por Lopes Ribeiro. Mas impressionou-me como nenhuma outra, naquela época, esta história de uns meninos humildes na Ribeira do Porto que poderia servir de metáfora à condição humana. Adorei a personagem da menina Teresinha, aqueles cenários naturais que prenunciavam o fabuloso neo-realismo italiano e aquela pronúncia genuína e autêntica dos actores, nenhum deles profissional excepto Nascimento Fernandes.
(Sublinho o papel do sotaque porque é um pormenor técnico totalmente descurado nos filmes portugueses contemporâneos: hoje todos falam da mesma maneira nas longas-metragens, independentemente do lugar onde nasceram ou onde residem as personagens. Infelizmente a pronúncia do Norte quase desapareceu do cinema nacional.)
Pormenor interessante: Oliveira, que seria depois considerado o mais artificial dos nossos cineastas, assinou aqui aquele que seria durante muito tempo um dos filmes portugueses rodados em atmosfera mais real. Um pouco à semelhança de um Picasso, que subverteu as formas depois de mostrar ao mundo que sabia reproduzi-las com mestria clássica.
São poucos os filmes pelos quais nos apaixonamos e que conseguimos admirar em simultâneo. Aniki-Bóbó é um deles. Cada vez que o revejo vou consolidando a mnha convicção de que se trata do melhor filme português de todos os tempos.
Não sou o único a pensar assim: a Sight & Sound, uma das mais prestigiadas publicações sobre cinema à escala mundial, elaborou há uns anos a lista das 500 melhores películas de sempre. Só há uma portuguesa. Qual? Aniki-Bóbó.
Hollywood e a Casa Branca
Cada mandato de um Presidente norte-americano, nos últimos 70 anos, está bem retratado num conjunto de filmes produzidos em Hollywood e galardoados com Óscares na mesma época – a confirmar a teoria de que a vida imita a ficção, e vice-versa.
Do amor profundo
Nunca conheci nenhuma mulher que não amasse profundamente Paul Newman e nenhum homem que não amasse superficialmente Marilyn Monroe.
Meditei nesta frase que me sopraram no dia em que soube que Paul Newman estava a morrer. Faria algum sentido? Quanto a Marilyn, não havia a menor dúvida. De resto, foi disso que ela morreu. Mas o caso de Paul é mais complexo. Paul nunca se ofereceu como Marilyn. Entre o que ele me dava e eu havia uma distância higiénica que ele cultivava, não por falta de entrega ao seu ofício de actor - ele era da escola do "Método", portanto se havia coisa que ele tinha aprendido era a entregar-se aos seus papéis - mas obviamente por razões pessoais.
Para que o soubesse não foi preciso ler na Imprensa qualquer declaração de princípios. Bastou vê-lo uma vez para reter para sempre não só a sua rara beleza como a força do seu carácter.
Não é nada de transcendente. Essas coisas percebem-se logo na intimidade de uma sala de cinema. E posso dar exemplos: alguém poderia alguma vez ter dúvidas quanto ao temperamento de mulheres como Katharine Hepburn, Lauren Bacall ou Bette Davis? Claro, nem sempre é assim tão fácil identificar quem temos à nossa frente, sobretudo em se tratando de homens, seres mais contidos nos seus jogos fisionómicos e verbais. Mas Paul Newman tem essa transparência. Aqueles deslumbrantes olhos azuis dizem-nos tudo o que precisamos de saber, assim como o queixo, cujas linhas indicam personalidade forte e determinação.
Feita esta introdução, volto ao ponto de partida: tê-lo-ei amado profundamente? Apesar da distância que ele me impôs, dificultando fantasias que na adolescência tive com outros? Detesto generalizações, mas em nome da honestidade a que pessoas como Paul induzem o comum dos mortais, admito que sim.
Paradoxalmente, essa distância que eu percebia permitia-me vê-lo melhor como homem e por detrás do sex symbol o que eu vislumbrava era muito mais interessante do que qualquer mexerico hollywoodesco.
Descobri através dele que não há nada mais sexy do que o amor inabalável de um homem que pode ter todas as mulheres do mundo. A solidez da sua relação com Joanne Woodward fascinou-me sempre. Revelava carácter e uma fantástica capacidade de amar. Mas o seu casamento de 50 anos foi apenas uma das circunstâncias que fizeram dele uma estrela diferente.
No braço de ferro que inevitavelmente teve de fazer com o star system, Paul levou sempre a melhor. Nunca o tiveram mais do que ele consentiu e isso é, ladies and gentlemen, de homem.
Apaixonei-me por ele quando o vi em "Corações na Penumbra", um filme de 1962, de Richard Brooks, baseado numa peça de Tennessee Williams. Depois foi só continuar a procurá-lo. "Gata em Telhado de Zinco Quente", de 1958, também de Brooks, também baseado numa peça de Tennessee Williams, "A Cortina Rasgada", de Hitchcock, "A Golpada", de George Roy Hill, são alguns dos filmes em que o recordo no esplendor da sua beleza.
Sete vezes nomeado para o Óscar, desde 1959, só em 1986 ganhou finalmente a estatueta de ouro. Mas não foi à gala recebê-la. Relativizou o gesto de simpatia, comentando, cortante, que a sensação de receber esse Óscar era idêntica à de alcançar uma mulher que se perseguiu durante 80 anos.
Ah, com que consistência eu amei este Apolo que agora me está a morrer!
Dançando nas nuvens com Cyd Charisse
Querida Cyd Charisse,
A inveja que eu tive do Gene Kelly, queando te tomou nos braços, e do Fred Astaire, quando rodopiou contigo no Central Park. Mais ainda do que a Rita Hayworth, que seduzia Glenn Ford e tutti quanti em Gilda, ou a aquática Esther Williams, que achava piada ao parvo do Red Skelton naqueles filmes com gigantescas piscinas em technicolor, tu eras capaz de seduzir o espectador. Pela tua espantosa beleza física, pelo teu ar exótico, por esse fabuloso par de pernas que valia cinco milhões de dólares, pelos teus dotes de bailarina capaz de deixar tonto qualquer par. Mas sobretudo pela aura de mistério que havia em ti e acentuava a fulgurante carga erótica das tuas aparições na tela.
Falo em erotismo? Só podia, já que falo em Cyd Charisse. Reveja-se aquele antológico plano horizontal da sua longa perna, que deixa estupefacto Gene Kelly, na cena em que somos apresentados à actriz em Singin' in the Rain (Kelly-Donen, 1952) - poderia haver melhor cartão de visita? Ou a súbita transformação da fria funcionária soviética numa ardente e fogosa dançarina nessa deliciosa comédia musical que é Meias de Seda (Rouben Mamoulian, 1957).
Querida Cyd Charisse, dizem-me que já não estás entre nós. Não voltaremos a ver-te cá por Lisboa na inauguração de um qualquer ciclo da Cinemateca. Partiste, aos 86 anos (como era possível teres 86 anos, logo tu, uma mulher sem idade?), bailas agoras nas nuvens, diáfana como nunca, tu que eras carne mas também espírito, sempre em estado de graça, tu que parecias tocada pelo sopro dos deuses, terrena como poucas, irreal como mais nenhuma.
Sem ti, não voltaremos a cantar à chuva. Nem a dançar no escuro procurando imitar aquela cena lapidar de A Roda da Fortuna (Vincente Minnelli, 1953) em que arrebatas Astaire e cada um de nós, incautos espectadores.
Não houve dança mais bela na história do cinema.
Quem a viu, nunca a esquecerá. Nunca te esquecerá.
Quem a viu, jamais a verá da mesma maneira agora que trocaste o solo pelas nuvens e bailas para a eternidade que te acolheu.
Sydney Pollack (1934-2008):
regresso aos clássicos
A morte de Richard Widmark - um dos últimos actores da época áurea de Hollywood - mereceu hoje grande foto a duas colunas ao alto na capa do Le Monde. Widmark, que desapareceu com 93 anos, foi talvez o melhor dos piores: nunca vi ninguém desempenhar tão bem o papel de mau. Rodou com Ford, Kazan, Mankiewicz, Fuller, Sturges, Preminger. Terá o seu nome associado para sempre a filmes como Pânico nas Ruas, No Way Out e Terra Bruta - neste último, um excelente western, trava com James Stewart um dos mais inesquecíveis diálogos da história do cinema.
Começou nos filmes em 1947 com Kiss of Death, de Henry Hathaway, mas esteve a um passo de ser rejeitado: parecia demasiado "culto" e demasiado certinho. Quem diria que estava ali um dos maiores psicopatas da ficção negra, capaz de encarnar no grande ecrã o mais brutal dos criminosos? Mesmo quando surgia do lado do Bem, havia sempre algo de inquietante na forma como compunha as personagens. Foi assim, por exemplo, em Mãos Perigosas (1953), de Fuller - um thriller que se tornou emblema da guerra fria e da paranóia anticomunista nos Estados Unidos.
Guardo dele as melhores memórias, mesmo nos piores papéis: Widmark tinha instinto de representação, tinha fibra, tinha garra, tinha classe - nenhum dos seus desempenhos foi alguma vez manchado pela banalidade. Por isso os cinéfilos o lembram com saudade crescente em interpretações tão diferentes como a de Jim Bowie no subvalorizado Álamo (John Wayne, 1960), a do procurador americano em Julgamento em Nuremberga (Stanley Kramer, 1961) ou a do oficial que protege os cheyennes nesse fabuloso western crepuscular de Ford intitulado O Último Combate (1964). No Way Out (Joseph L. Mankiewicz, 1950) mereceu um belíssimo poema de Ruy Belo, que várias vezes trouxe o cinema para a sua obra: "Sei hoje que sou pequeno / e não é esse o meu menor mal / mas faço meus os problemas / da gente de beaver canal."
Quando em 1995 a Cinemateca Francesa lhe prestou uma merecida homenagem, com uma retrospectiva dos seus filmes, Widmark era já uma lenda viva da Sétima Arte. Mas numa entrevista concedida ao Le Monde não escondia a sua profunda decepção pela rota dominante nos filmes surgidos desde que se retirara dos ecrãs, quatro anos antes. "A imbecilidade tornou-se um valor positivo. Por isso Forrest Gump, um elogio da estupidez, é um triunfo", observou então, com o desencanto característico de quem já vira tudo e já não se deixava comover com quase nada.
Tinha todo o direito de falar assim: ele integrou a galeria dos melhores, em dias irrepetíveis, numa colecção de películas que a passagem do tempo só consagra e valoriza.
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