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Crónicas de Adolfo Ernesto (vida social-1)

por Luís Naves, em 23.07.09

 

Desabafo

Bem lá no fundo, o meu amigo Naves é um homem do povo. Um elitista intermitente, algo distraído, porventura. No outro dia convidou-me para ir ao jantar do nosso blogue, o cut-fights (em inglês tem mais gravitas), mas trocou o nome do restaurante, o que aliás faz sempre, porque é muito distraído:

“Farto-me de trocar nomes, desculpa lá, ò Adolfo Ernesto”, disse o Naves, no dia seguinte.

Por isso não fui ao jantar, nem compareci. O senhor Naves disse-me depois que até teve graça, que aproveitou para tomar o poder e assumir-se como ditador do blogue:

“Havias de ter visto a cara deles, ò Adolfo Ernesto. Assustaram-se e tudo”.

Foi no decurso do já lendário jantar que este blogue se tornou benfiquista. É verdade.

O senhor Naves é um homem de letras, que se leva bastante a sério, um bocadinho pomposo e solene, com rastilho curto e temperamento bilioso, escusado e exorbitante. Muito palavroso, está sempre a fazer planos:

“Adolfo Ernesto, tenho já planeado um grande romance, um fresco da nossa época, com 250 capítulos e 1900 páginas, e até já escrevi a lista de capítulos”, dizia-me ele no outro dia. “O mais difícil já está feito”.

Jornalista high profile (ele diz que há mais de vinte anos que não precisa de escrever uma notícia), esta figura da nossa inteligentsia costuma perorar sobre toda a espécie de assuntos irrelevantes, à maneira dos tudólogos.

Mas, como dizia no início, atrás do verniz da civilização contemporânea, esconde-se um coração camponês. Recentemente, dizia ele que desejava regressar ao bucolismo de um prado verdejante, de um pinhal cantante, de uma serra indolente. Que sonhava com a calmaria dos campos frondosos e com o silêncio de uma aldeia vazia.

"Ah, como desejo regressar ao passado", afirmou o estupendo analista, num desabafo tão sincero que até me comoveu.

Adolfo Ernesto, um vosso criado

 

Crónicas de Adolfo Ernesto (vida íntima-1)

por Luís Naves, em 22.07.09

 

O desmentido

“Achas que sou pindérica, Adolfo Ernesto?”

Quando a Clotilde me atirou com esta pergunta, soube de imediato que o caso era sério e que vinha aí uma... como diz o doutor Pulido... uma valente trapalhada.

“Então, tu achas que eu ia para a praia da Caparica? Para uma tenda? Com um homem de cinquenta anos? E quem é a tal Floribela?”

“Acho que isso seria impossível, querida...E juro que não sei quem é a Floribela, certamente um rumor sem fundamento que ouviste algures, não tenho nada a ver com isso, jamais te trocaria por uma Floribela qualquer...”

“Mas vinha no teu blogue a dizer que eu estava na praia da Caparica”.

“Vinha no Cut-Fights? Deves estar a fazer confusão”.

“Mas responde à minha pergunta. Sou pindérica?”

Esta é a situação lose-lose que nenhum amador gosta de enfrentar: se amamos, não podemos dizer a verdade; mas se não dizemos a verdade, é porque não amamos.

Optei por uma estratégia de losango, como a que inventou aquele mister Bento, que aliás está a fazer profundas mudanças na equipa e até tenciona mudar o Risco do meio para a esquerda. Eu desde já digo que não percebo nada de futebol e ouvi esta na barbearia, portanto deve ser boa ideia.

“O Cut-Fights é um blogue sério”, disse eu. “O senhor Naves explicou-me que só não publicou as minhas 30 últimas crónicas que lhe mandei porque não havia espaço”.

“Diz a esse pseudo-intelectual que se não publicar o meu desmentido, vou ter com o senhor Pacheco, que o publicará naqueles posts azuis que nem sempre é ele a escrever, ouviste? Ou pior, vai ler em voz alta o meu desmentido no programa de TV onde critica os abusos da comunicação social”.

“E como é o teu desmentido, Clotilde?”

“Vou ditar”, disse ela, com um sorriso frio que me gelou por dentro: “Ao abrigo da lei de imprensa, Clotilde Adolfo Ernesto vem por este meio afirmar que nunca esteve na praia da Caparica numa tenda com um homem de 50 anos e nem sequer sabe quem é a Floribela. Sou uma rapariga moderna e sofisticada, nada pindérica, e tal. Gosto de piscinas e de homens mais novos”.

A mulher que eu amo disse esta última frase com uma leve hesitação na voz. Talvez duvidasse intimamente da sua pós-modernidade. Sentia-se que, no interior da alma profunda, nesses abismos que desafio todos os dias, havia um ser ilimitado e frágil, que tremia de se ver ao espelho. Alguém que procurava na imagem exposta uma pequena flacidez incerta, um fugidio cabelo branco, um inesperado sinal da decadência que nenhuma crónica pode impedir.

Adolfo Ernesto, um vosso criado

 
 

O País irreal

por Luís Naves, em 30.05.09

Uma estradinha

O meu plano é simples: vou percorrer o país para convencer os eleitores a votarem em mim.

Ao contrário dos outros candidatos, não me limito a ser cabeça-de-lista. Sou o único-da-lista do meu partido, cujo nome, francamente, já esqueci. Sei que a sigla é qualquer coisa entre MVPAE ou AEAPEEJ, o que daria, respectivamente Movimento Votem Por Adolfo Ernesto ou, em alternativa Adolfo Ernesto Ao Parlamento Europeu E Já.

Eu conheço o país irreal, que tenho palmilhado em feiras, ruas, sessões públicas e até comícios.

Falava eu desse belo país: palmilhei uma freguesia, acho que era em Vila Nova de Gaia e dei uma boleia a um sujeito simpático que subia a ladeira a pé, por uma má estrada.

"A estrada está muito má", disse eu, para início de conversa. E o bom cidadão explicou que o presidente da junta de freguesia local era socialista e tinha feito umas macacadas contra o estupendo presidente da câmara social-democrata e, por isso, não havia obras na estrada. "Paga a população pelas macacadas", disse ele. Ah, e acrescentou que seria candidato nas autárquicas, contra o tal socialista. Está ganho e a estrada talvez se arranje.

Adolfo Ernesto

 

A extinção

Um leitor atento descobriu uma frase mal escrita num texto meu. Tem toda a razão, mas a culpa é do senhor Naves, que transcreveu mal as notas que eu lhe enviei (ele posta por mim, porque não sei postar). O Naves é que é o analfabeto. No entanto, o incidente revela um aspecto interessante: foi um dos poucos comentários que tive; é o mesmo que escrever para uma parede ou escrever na parede de um beco onde ninguém passa.

As pessoa não sabem distinguir a realidade da ficção: personagens bipolares com a quarta classe podiam escrever desta forma, porque também falam desta forma. Aceita-se o maneirismo de linguagem em literatura e há toneladas de teorias sobre o assunto, mas aqui não pode ser, porque supostamente é blogosfera, ou seja merda. Ficção em blogues? Crónicas mais sofisticadas? Isso é utopia. Eu tenho de escrever à doutor, por pouco conteúdo que esteja disponível. Falar de flores, passarinhos e passarinhas, primavera e tal. A culpa é minha, certamente, que não apanhei bem o registo da minha própria escrita, ou seja, sou uma personagem mal concebida por mim próprio. Bobeou, dançou.

Uma coisa é certa: no que me diz respeito, a fasquia está mais alta; afinal, perco o meu tempo, apesar de ter tempo a dar com um pau; o país anda de tal maneira tontinho que perdeu a graça, já não percebe a ironia (coisa que nunca percebeu), gosta do sarcasmo alarve, porque não distingue o que é brincadeira ou que é a sério, só percebe o gozo que arrasa adversários. Só percebe o insulto. De resto, o país leva tudo a mal ou mergulha num silêncio desconfiado e ofendido.

Eu diria que os leitores querem a bloga desinfectada e politicamente correcta. No que me diz respeito, é melhor que a tenham desinfectada e politicamente correcta, bem dividida em preto e branco, esquerda e direita, tribos partidárias optimamente definidas, tudo separadinho para não contaminar, uns inteligentes a escreverem de cátedra, os estúpidos como eu a papaguearem o que os inteligentes escrevem. Nada de criticar disparates, isso é que está mal. Nada de criatividade na bloga, isso é de evitar. Enfim, prometo portar-me bem a partir de agora. O que escrevi foi lido à lupa, mas parece que ninguém entendeu, nem quis. Mais vale estar calado ou emigrar para o twitter. Fica o cinzento do Naves a tratar da casota.

Adolfo Ernesto  

 

Blogofilias de Adolfo Ernesto

por Luís Naves, em 20.05.09

 

Luis Rainha responde a Nuno Lobo, que por sua vez interpela João Galamba e vice-versa sobre os importantes argumentos de Rainha, com os quais diz discordar, lembrando no entanto que Lobo não tem razão ao citar Galamba fora de contexto. Ou será que esta polémica envolve uma tréplica de Nuno Lobo a Luís Rainha através da mediação de João Galamba? Enfim, perdi-me ligeiramente a meio. Acho que o tema era a educação sexual nas escolas, mas não tenho a certeza.
Vasco Campilho ainda precisa de comer alguma Papa Mayzena, mas ficou satisfeito com a reacção da blogosfera situacionista ao seu novo blogue. Espere até receber a conta pela transferência do João Villalobos, que tem contrato com o Corta-Fitas. Gastámos muito com a formação desse goleador e de acordo com as regras da UEFA ou pagam à cabeça ou discutimos isto em tribunal.
João Miranda elenca, e muito bem, as coisas que a UE ainda não tem, mas esqueceu-se de um pormenor importante: a UE ainda não tem João Miranda na liderança.
Adofo Ernesto

 

A pensar no primeiro emprego

Alguém deve ter cometido um tremendo erro e não fui convidado para a Blogotúlia, a reunião magna de bloggers convocada pelo PSD para discutir os ponderosos assuntos da nação. Foi o quem é quem, o creme do creme da blogolândia, mas eu não estive.

Fiquei mesmo chateado, pelo menos até me terem dito que o Pedro Sales também não foi convidado (não sei se é verdade, mas deve estar inconsolável e mando daqui um abraço solidário) nem sequer a misteriosa f. que ninguém sabe quem é, mas que ficou muito triste (tenho-me perguntado bastas vezes de quem será esta prosa magnífica e até aposto que se trata de uma Fernanda, Filomena ou até Francisca…); fiquei tão chateado, dizia eu, que inclusivamente avisei a minha Clotilde que estava com os azeites e disse-lhe que ia passear e ela respondeu que voltasse a horas do jantar, que esta noite havia rancho melhorado e sobremesa…

Fui para a baixa gastar a neura; hoje em dia não há muitas oportunidades para gastar mais do que isso…

Cheguei à baixa e passei por um café onde estava um grupo sorumbático, de pessoas sem sentido de humor, a olharem para o umbigo, enquanto comiam pastéis de nata e olhavam distraidamente para os livros que tinham trazido.

Entrei. Acho que era uma daquelas manifestações espontâneas convocadas por telemóvel e havia muita gente com ar extremamente sério e importante. Ao fundo, um senhor dizia que estava farto dos socialistas e que era preciso mudar, mas falava bem, por isso depreendi que talvez fosse um doutor a candidatar-se à academia das ciências, que é ali ao pé…

“O que é que se passa?”, perguntei a um ouvinte que estava muito entretido a escrever num computador portátil, enquanto tirava fotos digitais da sessão de esclarecimento.

“CHHHHH!”, respondeu ele.

Insisti, referindo-me ao orador, mas a tentar meter conversa com o tipo que me mandara calar: “Aquele senhor tem toda a razão. Eu também não concordo com aqueles académicos do adversário”.

“O adversário dele não é académico, é constitucionalista”, respondeu o meu novo amigo.

Fiquei a nadar, sem saber o que dizer. Depreendi que havia ali um caso qualquer e nem sequer sabia que a academia das ciências tinha constitucionalistas ou debates entre estes últimos, ou de doutores contra os ditos. Mas, apesar do embaraço, não gosto de me ficar pela frase menos inteligente (acho que nisso sigo a grande tradição do blogofenómeno). Pensei numa coisa inteligente para dizer, pensei mesmo com força, e só me lembrei de perguntar:

“Porque é que estão todos a olhar para o umbigo?”

O meu novo amigo olhou para mim:

“De onde é que és?”

“Rua da liberdade, número 39, e sou parceiro da Clotilde”.

“Não conheço essa rua da liberdade, deve ter pouca audiência. E a Clotilde também nunca li”.

“Não conheces? A minha zona tem muita gente…”

“Ah, é um colectivo?”

“Colectivo, não, que a Clotilde é exclusiva. Nada de ofensas…”

“Só estava a pensar fazer um link, desculpa lá”

“Não há cá links para ninguém…”

Devo ter feito uma cara assustadora, mas toda a gente estava concentrada no que dizia o orador, que naquele momento defendia o erasmus para o primeiro emprego e eu pensei, ora ali está uma ganda ideia, pois até o meu primo Zenóbio fez um erasmus e veio de lá todo consolado porque, como sabem (malandrice) aquilo é famosamente conhecido pelo orgasmus e já estava a deixar-me arrastar pela imaginação, podia candidatar-me a um primeiro emprego desses, numa indústria do sector, formar um cluster, colegas bonitas e tal, nem é preciso experiência porque se trata de um primeiro emprego e o benchmark é que pode ser um bocadinho puxado, mas como nunca trabalhei sou elegível…

De repente, lembrei-me da Clotilde e que ela dissera para não chegar atrasado ao jantar e fui a correr para casa porque a Clotilde é uma fúria quando lhe sobe a mostarda ao nariz e só tenho pena de não ter ficado mais um bocadinho, mas pensei que podia começar a treinar para o meu primeiro emprego sobre a mesa e passou-me logo a chatice de não ter sido convidado lá para aquela coisa, a blogotuna.

Adolfo Ernesto

Teorias políticas de Adolfo Ernesto

por Luís Naves, em 17.05.09

 

O debate

Organizei no café do Manel, lá no meu bairro, um debate sobre as europeias com os últimos candidatos suplentes, mas só apareceram os suplentes de dois partidos obscuros.

Enquanto arrumava as mesas e chamava o pessoal para assistir, ficaram ambos sentados em frente ao televisor, a beber melancolicamente umas imperiais e a engolir tremoços. De súbito, de faces enrubescidas, denunciando extrema comoção, um deles (a voz fugia-lhe para os agudos) pôs-se de pé e gritou, apontando ferozmente para o televisor pendurado na parede do café do Manel:

“Esta não é a minha Europa! Quero discutir a crise, quero defender a semana das 30 horas, proibir despedimentos e contratações! Mas isto não pode passar em claro!”

O outro suplente deu razão ao primeiro:

“Sendo assim, esta também não é a minha Europa”, disse, a apontar para o televisor.

Tentei argumentar, que o telecomando tinha uma avaria, que faltava o som, ou algo assim, mas o primeiro cortou-me a palavra:

“Cala-te, Adolfo Ernesto, meu eurocéptico primário: a deputada romena nunca devia ter sido expulsa, pelo menos não desta maneira”.

“Concordo com o meu adversário”, opinou o segundo, “mas acho mais escandalosa ainda a expulsão da Albânia, que já foi um paraíso estalinista e, enfim, sendo eu agora de outro partido não deixo de me recordar que, enfim…”. O suplente mudou rapidamente de assunto: “Que é isto de porem as pessoas a votar? O que entende o público de Europa? Os tratados não devem ser referendados, qualquer constitucionalista sabe disso. E, depois, dá nestes despautérios: nem sequer deixam entrar os azeris e os letões, também antigos comunistas e que foram paraísos estalinistas e agora já não são mas não é por isso que nos vamos chatear com eles porque as pessoas mudam e tal...”.

“O pior de tudo é o directório”, interrompeu o primeiro. “Os grandes nem vão a votos. É uma vergonha. Eles dominam tudo. A Alemanha e a França nem sequer se submeteram ao escrutínio do veredicto popular. É inadmissível. E depois os pequenos, como a Bósnia, são expulsos. Esta não é a minha Europa e temos de mudar as regras a favor dos pequenos, proibir os lucros e criar um sistema anti-liberal com salário mínimo europeu”.

Tentei apaziguar a situação: “Mas a canção da Bósnia era francamente má. Mereceu ser expulsa”, disse eu.

“Disseste canção?”, perguntou o primeiro.

“Sim, o que estão a ver na TV é o Festival da Eurovisão. O júri popular expulsa os participantes que cantem pior. Os espanhóis votam nos portugueses e vice-versa, mas se a canção for mesmo horrorosa não vai à final”.

“Dizes então que este não é o método comunitário? Não estavam a referendar o Tratado de Lisboa?”

“Não estavam a referendar nenhum tratado. As pessoas votam nas canções por telefone. É a democracia do eurofestival, uma coisa bonita”.

“Temos que impedir isto”, alvitrou o segundo. “Eu cá, estranhei que a Rússia estivesse na Europa…”.

“Eu também estranhei que a Turquia estivesse na Europa, mas enfim, agora aquilo tem tantos países…”, esclareceu o outro.

Ficaram ambos pensativos:

“E tu gostas da integração europeia, ò Adolfo Ernesto?” perguntou o primeiro suplente.

Encolhi os ombros. Enfim, queria avançar com o debate, preferi dizer que gosto, que sou europeísta.

“Europeísta é bom”, confirmou o segundo suplente. E o primeiro concordava, com um grande movimento da cabeça.

“E que achas da nacionalização dos bancos e de pormos as taxas de juro iguais para todos os países? Boa ideia, não é?”

Adolfo Ernesto

 

Mais difícil do que parece

Pacheco estava bastante atrapalhado. Eu não esperava encontrá-lo ali, no curso de formação para jornalistas júniores, e não resisti a interromper aquela concentração toda. Ele reagiu mal:

“O que queres, Adolfo Ernesto? Não vês que estou ocupado?”

“Desculpa, Pacheco. Mas o que estás a fazer?”

“Estou a aprender a fazer um lead”.

“Queres dizer, a entrada das pequenas notícias?”

“Isso mesmo, um lead. É que eu só sei escrever editoriais e opinar. Agora, tenho de aprender como se faz uma notícia, pois estarei num programa na TV onde fiscalizo o jornalismo nacional. Tenho de estar preparado”.

“Para desancares na incompetência geral?”

“Isso mesmo. Serei implacável”.

“E aproveitarás para criticar a maneira como os estagiários escrevem os seus leads”.

“Isso mesmo”.

Estava convencido. O Pacheco é a pessoa ideal para estas coisas. Ele não deixa escapar o mau jornalismo que contamina as redacções. Pedi para ver o exemplo de notícia que ele tinha escrito, mas o meu amigo resistiu:

“Acho que ainda posso fazer melhor do que isso, mas já me parece forte”, disse ele, ao passar-me a folha.

Li: “Manuela Ferreira Leite, excelente líder do maior partido português afirmou ontem com extrema firmeza que não aceita mais desastrosas despesas públicas por parte do lamentável governo que nos calhou em sorte devido à estupidez dos portugueses e às intrigas dos meus adversários dentro do maior partido português...”

Suspendi a leitura, olhei para o Pacheco.

Ele parecia ansioso:

“O que achas?”, perguntou. “Isto parecia mais fácil do que é”.

“Acho que devias cortar nos adjectivos. Um ou dois bastava...”

O Pacheco ficou ofendido:

“Tu és um bocadinho situacionista, não és, Adolfo Ernesto?”

Adolfo Ernesto

 

Uma frase batida

Ia a passar junto ao ministério da Economia quando do monumental edifício saiu o meu amigo Pinho. Viu-me, fez uma grande festa e depois começou a lamentar-se:
“Ninguém gosta de mim, Adolfo Ernesto, ninguém. Olha só o que andam a escrever, os vis ataques da oposição”.
Não leio jornais e não sabia o tema da conversa, mas acenei, a concordar levemente.
“Achas que devia ter falado em papas cerelac?”, insistiu Pinho.
“São fortes em glúcidos...”, comentei, ainda sem perceber.
“Lá está, fortes em glúcidos. Numa frase batida, toda a gente bate. A metáfora alimentar deixa de ser eficaz. Diriam que tinha chamado magro a Rangel e que ele precisava de engordar”.
Eu não estava a perceber patavina da conversa e temi pela sanidade mental daquela sábia figura. Talvez excesso de trabalho.
“As metáforas alimentares são perigosas”, voltou Pinho. “Já da outra vez tentei a do bife, que tínhamos de oferecer bife do melhor aos nossos convidados, mas não fui compreendido. Logo vieram dizer que o bife de vaca é caro e pouco saudável e que devemos alimentar os nossos convidados com comida mais ecológica. Achas que desta vez devia ter falado em leite ucal? Que o Rangel devia beber muito leite ucal?
“Mas isso não é uma marca?”
“Lá estás tu, Adolfo Ernesto, com objecções parvas. Claro que é uma marca e Maizena também é uma marca, ainda por cima nacional. Devemos defender o que é nosso, até nas metáforas”.
Pareceu-me uma lógica irrepreensível e Pinho continuou a enumerar alimentos:
“Se eu tivesse dito, por exemplo, que Rangel precisava de comer mais carne de frango, alguém se lembrava que aumenta os níveis de ácido úrico; se falasse em mariscos, alguém se lembrava que causa alergias violentas e tem muito colesterol; acusavam-me logo de querer entupir as artérias ao candidato da oposição. Era preso por ter cão e por não ter. No fundo, a política é muito difícil”.
“É complexa”, concordei.
“E eu estou para a política como tu estás para a blogosfera, ninguém gosta de nós”.
Ora, ali estava uma observação muito correcta, a primeira que compreendi inteiramente, antes de me despedir com um forte abraço.
 
Adolfo Ernesto (mais uma vez, o senhor Naves esqueceu-se de me convidar para o jantar corta-fitas)

A inveja

O que gosto mais, quando jogo badmington com a Clotilde, é lançar a pena a voar num arco que a obrigue a esticar a raqueta e a inclinar ligeiramente o seu corpo delicado. Para interceptar o meu vólei, ela dá um gracioso salto e a saia curta ergue-se com esplendor, presa no ar por um curioso efeito de anti-gravidade, que me encanta.

E aquela visão dá-me para desatar as minhas angústias:

“O pessoal do corta-fitas nem sequer me convida para os jantares ou para convidado de honra. Mas o pior é que secaram os comentários. Cada vez que escrevo, zero comentários”.

E bati com raiva na pena, que se ergueu, elegante, tombando num ângulo difícil para a minha Clotilde, que dessa vez deixou escapar.

“Os teus posts são demasiado longos”, disse ela.

“Pois é. Já não existe o gosto pela leitura”.

“Tenta escrever mais curto”.

“Jamais o farei. Afinal, tenho a minha dignidade. Em arte, não há concessões”.

“Mas isto não é arte, querido. É só um blogue”.

Disparei a pena com intensidade, num golpe que forçou o plástico a voar sobre a rede e a cair no campo dela numa rota imprevista, que a forçou a inclinar o corpo ainda mais um pouco, a perna direita inclinada, num equilíbrio precário.

“E agora veio o Carlos Leone, o nosso convidado de honra, dizer que só o Villalobos o surpreende no corta-fitas. O resto não passa de comentarismo. Achas-me com cara de comentador?”

“O Carlos Leone só estava a dizer aquilo que pensa. É um crítico”.

“A Ritinha recebe sempre imensos comentários. Dois ou três, pelo menos”.

“Estás com inveja, Adolfo Ernesto”.

Disparei a pena num golpe certeiro, criando uma trajectória balística absolutamente imprevisível.

“Espera aí, Clotilde. Se estou com inveja, é porque já me transformei num verdadeiro artista”.

“Estás a exagerar, meu crocodilozinho, chuchu. A inveja faz parte da condição humana e é mais banal do que imaginas”, disse a Clotilde, para acrescentar logo um modesto exemplo: “Todas as raparigas lá da nossa rua têm inveja de mim, é natural”.

“E tu não tens inveja delas?”

De súbito, a Clotilde parecia um pássaro: esticou a raqueta in extremis e apanhou a pena em pleno voo e a saia ergueu-se com serenidade e o braço desenhava um arco perfeito e a perna esquerda, inclinada para trás, completava a imagem de uma onda e a pele iluminada lembrava um campo de margaridas dourado pelo brilho do sol e sob a carícia de uma brisa de seda.

Mas a pena bateu na rede e caiu. A Clotilde ficou direita, a rir-se muito. Recuperou o fôlego e respondeu à minha pergunta:

“Não tenho nenhuma inveja delas! Mas essa Ritinha, que não precisa de depilação, já me está a irritar!”

Adolfo Ernesto

 

 

Meditação sobre o euro

Recente viagem de táxi proporcionou-me interessante conversa com um motorista bem informado (os nossos taxistas são famosos em todo o mundo pela qualidade das informações em primeira mão a que têm acesso e pela acutilância das suas análises). Conversámos sobre a questão europeia.

“Então, isto dos irlandeses…” disse eu, lançando o isco.

“Pois foi, não querem lá ver?”, perguntou ele, retórico.

“Uma complicação…”, insisti, puxando a linha.

“Nada será como antes, estamos em crise”, afirmou ele, com autoridade.

“Pois, uma crise”, afirmei, dando alguma folga à conversa.

“O referendo até desestabilizou a nossa equipa”, prosseguiu ele. “Preocupados com o futuro da Europa, os nossos rapazes claudicaram. E quem podia imaginar que os turcos da selecção suíça eram melhores do que os turcos da própria Turquia”.

“O árbitro austríaco também não ajudou”, disse eu, apalpando a sorte.

“O malandro do árbitro era eurocéptico. Via-se que não acreditava na construção europeia. Afinal, a Suíça nem pertence à UE. Havia ali alguma obrigação de nos ajudar”, puxou ele, quase quebrando o fio.

“E que acha que vai acontecer aos irlandeses, a partir de agora?”, arrisquei.

“Se continuam por este caminho, ainda lhes mandam lá a equipa dos holandeses para resolver o problema. Levam sete ou oito para aprenderem a não brincar com o futuro do euro”. E riu-se, com alegria malévola de quem imaginava o massacre.

“Mas esses holandeses também já se recusaram a jogar uma vez”, experimentei.

“Pois é”, disse o taxista, pensativo. “A Europa está em crise. Se os irlandeses ficam fora do campeonato, colocam  em risco futuras organizações. Pode ser a última vez que vemos o belo jogo interpretado pelas selecções nacionais, com as características bem simpáticas de cada uma. Descontentes com o facto de nunca terem ganho, os irlandeses querem estragar a festa dos outros. E se o euro acaba, a malta não tem liquidez para pagar a bandeirada”, riu-se de novo, desta vez às gargalhadas.

Por um momento, o bom motorista concentrou-se no caminho, segurando o volante, com um ar despreocupado. Depois de meditar, voltou ao tema:

“A Europa é um belo sonho: Toda a gente tem pelo menos um ou dois turcos na sua equipa. Há quem tenha um ou dois croatas. Nós optámos por manter dois sul-americanos, no caso brasileiros, que há várias equipas que também têm, nomeadamente os polacos e os turcos. Os italianos têm um argentino e os franceses até têm três franceses. Mas uma coisa é certa. Nenhuma equipa do Euro tem irlandeses. É um futebol ultrapassado. É como o austro-húngaro: viu como esses foram cilindrados pelos turco-polacos da selecção da Alemanha? Acho que Portugal também devia ter pelo menos um ou dois otomanos, para dar consistência ao meio-campo. Aquilo é que eram tempos, a equipa de janízaros de 1878. Até tenho aqui uma fotografia”, que mostrou (e que reproduzo nesta página).

“Já ouvi falar dessa equipa”, arrisquei.

“Deram cinco secos à Prússia”.

“Ah, não sabia”.

“Convém conhecer a História. E agora, estes irlandeses estragam tudo, querem fazer tabula rasa do passado. Já pensou? E se Portugal não pode disputar os próximos europeus por causa de um referendo que foi tão mal explicado? Eles que nacionalizem três brasileiros e dois turcos, para ver se têm hipóteses de vitória no futuro. Usem os regulamentos. Façam como os suíços. Arranjem um polaco, sei lá, comprem um árbitro austríaco, ou dois. Mas não estraguem as chances do futebol europeu”.

“E o que acha das chances de Portugal, contra a Alemanha?”

“Vai correr bem: eles não têm nenhum português na equipa e nós não temos nenhum alemão, portanto, os dois futebóis vão encaixar plenamente. Agora, estou preocupado com a  secção de sul-americanos deles, o que lhes vai permitir fazer muitas transições e melhorar a qualidade técnica, com  recuperações e combinações…”

Quase desejei que estivesse ali o Pedro Correia, para descodificar aquela importante declaração, mas a frase final do taxista já compreendi: “o que ninguém quer é ficar fora-de-jogo…”

“Pois é”, filosofei.

“Até aparecerem estes irlandeses que se recusam a jogar na equipa”, rematou o taxista. “Devia ser cartão vermelho directo. Nada de paninhos quentes”, vociferou.

“Também não será caso para tanto”, defendi, tentando acalmá-lo. “Os irlandeses têm direito a não querer jogar futebol. E seria um erro político excluí-los, pois isso iria criar um sistema com duas divisões, o euro a várias velocidades, que não convém a Portugal, pois um dia também vamos lá parar”.

“Vão mas é jogar basquete, esse jogo para meninas!”, concluiu o taxista, com um grito, no preciso momento em chegávamos ao meu destino: “Pois aqui está o Irish Pub. São três euros”.

Adolfo Ernesto

Ilustração: equipa de janízaros otomanos que bateu a Prússia por cinco a zero, em 1878. Esta equipa é famosa porque tinha dois servo-croatas, um magiar e um brasileiro. perdeu na final com a Grã-Bretanha, que na altura ganhava tudo.

No âmbito da série dos convites VIP, Adolfo Ernesto convida para cronicar o primo da Clotilde, o Zé Manel, que estava a preparar as festas lá do bairro quando se deu a ruptura de stock:

 

Os primeiros sinais de ruptura do stoque surgiram lá no bairro numa altura em que na mercearia do senhor Aduzoindo (com a pronúncia dele fica assim, ouindo) começaram a faltar os produtos frescos, nomeadamente as batatinhas, o azeitinho e as couvinhas que ele manda vir lá da terrinha, a santa terrinha. A ASAE não gosta, mas é a maneira de fintar os hípres.

Depois, correu a informação de que não havia gasolina nos postos, excepto num onde já se formara fila com dois quilómetros, mas acabou em motim, com o povo aflito por causa do racionamento. Sem gasosa, não podíamos ir buzinar. Não se faz e é anti-patriótico!

Foi então que recebemos a mensagem de que o primo do Aduzoindo, o Arloindo, tinha ficado preso no piquê do Carregado.

Juntámos um grupo e fomos ter lá com os mânfios (na imagem).

Aquando lá chegámos e vimos o arcaboiço deles, perdemos algum gás, assim um pouco como aconteceu com a selecção nacional, quando os chéquios meteram aquele matulão de dois metros e dois, o kollê, ou lá o que era o maganão.

Mas não sou homem para não ir à luta:

“Como é que é, amigos, levantem lá o piquê, para deixar passar a carrinha do Arloindo”, tentei, com diplomacia e até alguma amistosidade.

Eles responderam que não deixavam, que até não se importavam de contribuir para as marchas do bairro e nesse particular a passagem da carrinha do Arloindo era assim como deixar passar medicamentos e isso, mas era uma questão de princípios e tal, mais os amarelos e tretas.

Não percebi patavina, até porque o Arloindo é do Sporting e por isso é assim verde, e coiso.

“Ah”, disse o matulão, “podias ter dito logo que eras do Sporting”.

A partir daí, as coisas correram melhor. Houve um que disse que a carrinha nem era camion, nem nada, que podia passar. E que nós não tínhamos cara de quem possuía uma frota (quase nem cabíamos na carrinha, na volta).

“Eu até compreendo a rapaziada”, expliquei. “É a história do pequenino contra o grande”.

Os matulões do piquê acharam que eu tinha razão. “Pois é, o pequenino contra o grande”, disseram. “E quem manda fica sempre do lado do grande, claro”, filosofou um dos gajos.

E foi assim que passámos o piquê. Temos de ser uns para os outros. E fomos dali para a lota comprar sardinha, à espera de que não houvesse bloqueios de pescadores.

O certo é que o custo de vida aumenta e o povo já não aguenta. E vós perguntais: onde está a política, aqui?

Em lado nenhum, pois não sou de falinhas mansas, mas até parece que as coisas já não estão a correr lá muito bem...

 Zé Manel, primo por afinidade do Adolfo Ernesto

 

 Emplastros e velhos de Restelo

Ia a passar na zona de Belém-Restelo, levando pelo braço a minha Clotilde, em passeio dominical, quando me deparei com a celebração do triunfo no campeonato da Europa. Uma multidão verde e vermelha, aos gritos, vitoriava os heróis da selecção. Pela intensidade do ruído, deduzi que tinham vencido todos os jogos. Sou um patriota e desafiei a Clotilde:

“Devíamos juntar-nos aos festejos”.

“Boa ideia”, respondeu ela. “Poderei ser entrevistada pelas televisões”. (A Clotilde tem estudado a técnica do emplastro, que consiste em ficar especada, ao lado do repórter, à espera do directo, fazer olhinhos e depois estar no sítio certo quando o repórter espetar o microfone para recolher uma importante declaração das massas populares).

Naquele caso, tivemos de furar através da massa popular. Felizmente, quando quero sou um ferrabrás. Tive de afastar cinco ou seis lingrinhas, que estavam ali desde as seis da manhã e que ficaram a gritar, depois de serem desalojados dos melhores lugares. Nisso sou parecido com a selecção de todos nós: quando há uma missão, não deve haver sentimentalismo.

A multidão concentrara-se em frente ao palácio presidencial, numa manifestação patriótica sem paralelo na nossa memória colectiva.

“Foi de facto uma bela vitória, nunca vi nada assim”, disse eu, quase às lágrimas, perante tal momento de comunhão e convergência.

Atraí a atenção das pessoas à minha volta, incluindo de um velhinho muito velhinho.

“Pois é, meu jovem”, disse o velhinho muito velhinho, que tinha uma longa barba branca. “Eu ainda me lembro da exposição do mundo português, que foi aqui mesmo junto a esta praça”, e apontou o vetusto dedo na direcção da Torre de Belém, “e vitoriámos o grande Salazar… Era um belo tempo, quando havia ordem e entusiasmo e patriotismo verdadeiro, sobretudo ordem, meu jovem”.

“Sim, mas ainda o país era pequenino e não ganhávamos na Europa”, interrompi.

“Portugal era grande, nessa época”, exclamou o velhinho muito velhinho. E apontando para o céu com um dedo coevo, prosseguiu: “E lembro-me da chegada de Mouzinho, que Lisboa era um mar de bandeiras azuis e brancas. Na altura, meu jovem, ainda não havia esta horrível bandeira verde e vermelha. Bons tempos aqueles, quando ainda tínhamos vitórias a sério”.

“Sim, esse Mouzinho era do Porto, não era? Agora, temos o Moutinho. Mas esta também foi uma boa vitória, amigo”, disse eu, enquanto se sentia o crescente frémito da populaça, pela aproximação iminente do autocarro da selecção.

Uma onda de entusiasmo atravessou a multidão, que gritava vivas a Portugal, num delírio de berros e desmaios.

“Falou aí numa vitória. Mas qual vitória?”, perguntou o taxista que estava ao meu lado.

Encolhi os ombros: “Não percebo nada de futebol, mas com esta histeria toda, é porque ganhámos, certamente”.

“Não vê televisão? Isto é a despedida da selecção, que só joga no sábado”.

Nisto, apareceu o autocarro da selecção e a multidão começou a mover-se, como se fosse uma onda. Ouviu-se o gigantesco rumor, como se fosse um grito de guerra:

“Tragam a taça”, gritou o taxista.

E o velho disse-me, por cima da berrata:

“Tentei avisar o Gama para nunca usar o quatro, três, três e veja só o que deu ele ter ignorado os meus conselhos. Agora, com este brasileiro, é inútil tentar convencê-lo de que só ganhámos aos turcos em Lepanto por termos usado um pentágono, que é muito mais acutilante. Ele vai ser teimoso e quando nos calharem os espanhóis, temos de usar o quadrado, porque em Aljubarrota usámos o quadrado. Mas este não aprende, está a ver? Países jovens, não sabem…”

Compreendera finalmente que ainda não tínhamos ganho nada. Aproveitei para me escapulir dali, enquanto o povo celebrava a iminência da vitória, numa festa louca.

No caminho, encontrei a Clotilde, que vinha a chorar. Não conseguira ser entrevistada, explicou:

“Eu bem me coloquei no local ideal, junto ao repórter. Fiz-lhes olhinhos, mas quando ele apontou o microfone, para fazer uma interessante entrevista, preferiu a mamalhuda que estava ao meu lado”.

Dito isto, a Clotilde esticou o peito e perguntou-me:

“Também achas que são pequeninas?”

Ia dizer que vivemos em tempos maus para achar alguma coisa, mas lá ao fundo, uma multidão vitoriava as nossas grandes esperanças. E respondi, de forma automática:

“São grandes, são grandes”.

 Adolfo Ernesto

 
Fumo a bordo

Quando o meu amigo Hugo Chávez (outro bipolar) soube que o José Sócrates ia à Venezuela, telefonou logo para Lisboa:

Traz mi muy amigo Adolfo Ernesto in tu vuelo charter” (ele pronunciou rarter).

Foi assim que me juntei à comitiva de empresários, diplomatas e dirigentes de primeira linha.

Os primeiros 20 minutos de voo foram agradáveis. Mas existe algo nos aviões que provoca uma urgente necessidade de transgressão. Talvez o ar condicionado, não sei, ou a pressão atmosférica inebriante. Poucos resistem. Alguns começam a andar no corredor, para cá e para lá, com o sinal de cinto de segurança aceso. Outros sentem uma irresistível necessidade de falar ao telemóvel, apesar da proibição. Há ainda aqueles que necessitam de fumar um cigarro, incluindo muitos não fumadores. Há quem consiga resistir à pressão cerca de 25 minutos.

Viajei ao lado de um simpático empresário.

“Você é o Adolfo Ernesto que escreve no Corta-Fitas?”, perguntou o importante multimilionário.

“O próprio”.

“Gosto imenso daquela vossa rubrica, a rapariga das sextas-feiras. A prosa tem grande qualidade”.

“Também acho”.

Era a minha vez de fazer perguntas:

“Qual é o seu ramo?”, perguntei.

“Não é ramo, mas sim folhas. Trabalho nos tabacos. Estou aqui a substituir um empresário dos petróleos, que não arranjou tempo de agenda para se juntar a esta comitiva”.

E logo me começou a mostrar as amostras que levava. Cigarros, cigarrilhas e charutos.

Sim, sim, já adivinharam: fui o primeiro a transgredir no famoso voo da polémica, em que ministros fumaram a bordo.

Ignorei os sinais de proibido fumar, ao acender automaticamente um dos cigarros da amostra do empresário. O pior é que nem sou fumador.

Nas filas da frente decorria o conselho de ministros e chegara a pausa do café, o relaxante coffee break. O ministro Pinho veio até à nossa fila, atraído pelo inebriante cheiro do tabaco. Também não resistiu. Depois, veio o José Sócrates, distraído, a pensar nos problemas do país. E o Luciano Alvarez, sentado mesmo ao nosso lado, anotava tudo, com um semblante severo.

A nuvem no interior do avião formou-se devagar, mas acabou por se transformar num espesso nevoeiro. Alguns empresários que faziam jogging no corredor central do aparelho começaram a protestar pela falta de oxigénio e houve também alguns diplomatas que contestaram o facto de não conseguirem ver os números dos seus telemóveis naquela sopa de fumo, o que dificultava a precisão dos telefonemas.

Perante o coro de críticas, refugiei-me na casa de banho, pois tenho este antigo sonho de fumar um cigarro no local onde isso é mesmo perigoso. Mas, a meio, começaram a soar sirenes e houve uma corrida de hospedeiras pelos extintores de emergência. Quando estávamos a fugir para a parte de trás do avião, o José Sócrates, a meu lado só dizia: “nunca mais fumo, é uma promessa de nossa senhora de Fátima”.

E, prontos, depois chegámos à Venezuela, onde já nos esperava a notícia da polémica.

Sem querer entrar em contestações, acho que estão a ver a questão pelo mau ângulo. Claro que nos cabe a nós, à elite nacional, dar o exemplo do saudável cumprimento da legislação em vigor. Afinal, não somos uns sobas.

Mas nos aviões é diferente. Quando chegamos às altas esferas, há qualquer coisa que nos leva a transgredir por transgredir. Não é abuso de poder ou algo assim, mas apenas a altitude, a breve ilusão de que ali não se aplicam os disparates que legislamos.

 Adolfo Ernesto

Sexta-feira

por Luís Naves, em 25.04.08

Vanessa Andreia, a sobrinha da Dona Rosa, a conhecida vidente, tal como foi prometido em anterior crónica, pelo vosso

Adolfo Ernesto

Pizza boy

É preciso comer e tive de arranjar um biscate, a entregar pizzas ao domicílio.

Era o meu primeiro dia de trabalho, ou melhor, a primeira noite. De repente, tocou o telefone lá na loja:

“Quatro pizzas à rua patatitipatatá, presto, e um delas com pepperoni”.

Eu sou mais de piano, piano, e desconfio sempre destes pedidos molto agitato con brio, mas lá fui, na minha motoreta, equilibrando um saco com quatro pizzas familiares, uma delas com pepperoni.

Qual não foi o meu espanto, quando cheguei à casa da rua papatipatatá, abriu a porta uma figura familiar e conhecido bloguer, de barba e cabelo grisalho comprido, comentador de TV, que disse, falando para outros, dentro do apartamento:

“Já aqui está o rapaz das pizzas”.   

 “Ainda bem, manda entrar”, ouviu-se lá de dentro.

Na sala, onde poisei as quatro familiares, uma delas com pepperoni, estava um grupo de caras conhecidas: uma ex-ministra, um presidente da câmara e outros, todos famosos. (Infelizmente, como sou esquecido, não me lembro dos nomes). Estavam com cara de caso e pareciam conspirativos.

“Trouxe as coca-colas?”, perguntou a senhora, num tom de autoridade.

Já ia a sair quando uma das figuras famosas me interpelou:

“Queríamos a sua opinião…”

A princípio, achei aquilo normal. Se calhar tinham reconhecido o cronista e filósofo político Adolfo Ernesto, mas, pensando melhor, eles não viam mais do que um rapaz das pizzas.

“Acha que o governo vai conseguir maioria absoluta?”, perguntou o senhor que é presidente da câmara, algures.

Achei uma boa oportunidade para explanar alguns tópicos que, na qualidade de politólogo, tenho estudado:

“O governo tem governado ao centro”, comecei, “o que poderá originar uma boa votação dos partidos que agora estão à esquerda. A minha Clotilde, que vota no bloco, acha que os bloquistas podem subir dos 12%. É talvez exagero, mas nunca se sabe. Falta muito tempo para as eleições, mais de um ano, uma eternidade em política. A economia não vai melhorar. Pelo contrário, só pode piorar. A conjuntura internacional é péssima e a economia espanhola desacelera. As pessoas estão fartas da incerteza, da precariedade, das promessas não cumpridas. O eleitorado socialista tem poucas razões para andar satisfeito, tirando as sinecuras, que tocam só a alguns. A direita tem um problema: está balcanizada. Não é fácil viver em oposição e longe do poder. Será difícil apresentar um simulacro de unidade que convença o eleitorado. E terá, provavelmente, de fazer promessas que vão alienar os votos no centro. A vitória é quase impossível, mas o primo Toninho, da minha Clotilde, calcula que o centrão tenha 77 ou 78 por cento dos votos, a dividir por dois. Se o bloco crescer, esta proporção será menor, talvez 75 por cento. Se as eleições forem normais, é uma questão aritmética. 40-35, 39-36, etc, etc. a maioria absoluta implica uma votação demasiado baixa da oposição, para aí uns 30. Ou seja, se o maior partido da direita conseguir uma liderança…”

“Mas as bases do partido são muito difíceis”, interrompeu-me o conhecido bloguer.

“Quando cheira a poder, as bases do partido acompanham as lideranças”, afirmei. “Se parecer possível, então torna-se possível. Caso perca a maioria absoluta, o PS regressa à esquerda, a sua área natural, mas com um partido à sua esquerda entretanto maior. Nas eleições seguintes, será uma luta típica direita-esquerda, como acontece no resto da Europa, veja a Itália ou a Espanha. Portugal, em certo sentido, é uma anomalia”.

"Pois é, se conseguirmos 35%...", disse alguém.

"Haverá um governo forçado a governar à esquerda...", interrompeu outro.

"O caos, a ingovernabilidade, e, depois, entramos nós, para salvar o país".

Eu só pensava em conseguir governar-me bem. Para ver se sacava uma boa gorjeta, não lhes confessei que a minha análise era quase toda copiada da do primo Toninho.

“Gostamos sempre de ouvir a opinião popular”, disse a antiga ministra.  

Estendi a mão, à espera de qualquer coisa que se visse, mas a senhora limitou-se a agradecer, apertando-me a mão estendida:

“Não se esqueça de votar em mim”, disse ela, sem me dar gorjeta.

Saí da sala e, depois, da casa, deixando atrás um grupo animado e feliz. E lá avancei, no trânsito da noite escura e solitária, em mais uma noite sem história, em mais uma rotina de trabalho incansável, em busca de um sentido para a vida…

Adolfo Ernesto    

 

Uma questão de tempo

A Clotilde, a minha santinha, está sempre preocupada com os outros. Esta semana, ficou ralada com o primo Toninho (primo em sétimo grau pelo lado do pai dela), que anda deprimido porque não se consegue decidir a ser candidato a um lugar não executivo no núcleo 27 da concelhia de um partido do centrão.

O Toninho, diga-se de passagem, é um notável estratego.

“Adolfo Ernesto”, dizia-me ele recentemente, “o meu núcleo tem oito militantes e sete facções. Terei de anular os josé-silvistas e conquistar o apoio táctico dos nunistas e dos filipistas. Depois, é que vou para eleições gerais. Ali, as franjas valem 20 por cento dos votos e o centrão vale 77. Com outro candidato, damos a maioria absoluta ao nosso adversário, 30-47. Comigo, teremos um mínimo de 35 por cento, retirando a maioria absoluta ao outro lado, que não passa dos 42. No futuro, para governarem, os nossos adversários terão de ganhar o apoio das franjas deles, pelo que deixarão o centro só para nós. Nas eleições seguintes, a nossa vitória será esmagadora. Em resumo, eu defendo uma estratégia em dois passos”.

“Portanto, a política é basicamente a ocupação do centro”, disse eu.

“Compreendeste. É como no xadrez. Mas existe um outro aspecto: a personalidade”.

“Estás a falar de carisma…”

“E não só: estou sobretudo a falar da elegibilidade. Fazer passar a ideia de que se tem um programa”.

“E é tudo?”

“Não. Falta ainda o timing certo”.

Estava aqui a relembrar esta conversa com o Toninho. O problema dele é a teoria. E o primo da Clotilde (que como vimos é um notável teórico) sempre teve a estratégia certa, uma personalidade fascinante, mas nunca conseguiu avançar no momento adequado.

“Os partidos povoam-se de mediocridade e nós, a elite, ficamos a ver passar os comboios, porque não sabemos o horário”, dizia ele, num desabafo.

A Clotilde, preocupada com o primo, conseguiu quebrar este pessimismo doentio, convencendo o Toninho a ir a uma consulta.

Já vos falei aqui da Dona Rosa, a vidente. Ela queria à força ser rapariga das sextas-feiras no Corta-fitas, (ainda insisti com a rapaziada aqui do blogue) mas a Dona Rosa foi vetada.

Desculpem a digressão narrativa: a Clotilde convenceu o Toninho a ir à consulta e lá fomos.

O consultório estava vazio, havia uma música inquietante e um suave cheiro a enxofre. A Dona Rosa apareceu-nos de repente, irrompendo de uma cortina pesada. Trazia na mão uma ampulheta com areia vermelha, que escorria devagar, pois a força da gravidade parecia fraca.

Ficámos espantados, o primo Toninho estava lívido, a Clotilde balbuciou o nosso problema.

“Queres, portanto, saber se é o tempo certo para avançares…”. A Dona Rosa fez uma pausa dramática, houve um silêncio, apenas interrompido pela música angustiante. Depois, a vidente sentenciou, num tom catastrofista:

“Sê irreflectido e avança, avança. Mas o País, esse, está para além da salvação. Para se salvar, a Pátria tem que vir à bruxa”.

Sentimos um arrepio de medo. E, quando íamos a sair, a Dona Rosa apontou um dedo ao Toninho e disse:

“E não te esqueças de mim, quando estiveres no poder. Tenho uma sobrinha muito bonita que precisa de um emprego”, e apontando depois o dedo na minha direcção, ordenou: “A minha sobrinha dava uma boa rapariga das sextas-feiras no Corta-Fitas”.

Adolfo Ernesto

 

A salvação dos aflitos

O Naves andou por aí a escrever a minha biografia e aquilo só tem disparates. Até a Clotilde achou estranho: “Ó Adolfinho Ernestinho, meu chuchu, fofinho crocodilo meu, tu andavas mesmo vestido à Elvis?”

Aquilo aborreceu-me a sério e fui à procura do Naves, para lhe explicar novos pormenores sobre a minha biografia, a saber: tive uma passagem pelo pugilismo peso-pluma.

Os corta-fiteiros jantavam algures em Lisboa (sem me convidarem) e eu entrei num edifício ali perto, a pensar que era o restaurante da moda onde eles estavam.

E, de facto, numa mesa ao fundo de um restaurante discreto, estava um grupo de bacanos. Só quando cheguei perto deles, percebi que não eram os corta-fiteiros, mas conspiradores fumadores de charutos.

Um deles pensou que eu era trabalhador da copa e disse assim:

“Vamos perguntar aqui ao rapaz (que era eu) qual é a opinião que tem sobre a nossa crise. Afinal, é um trabalhador. Deve ter uma opinião”.

Ele tinha-me chamado trabalhador e não gosto de ser insultado, além disso estava chateado, mas deixei passar.

Aproximei-me. O homem fez a pergunta:

“E o que achas do Borges para conduzir a equipa?”

“Pode ser uma solução, mas preferia o Humberto”, admiti.

Ele ficou a olhar para mim, como se não percebesse. Depois, prosseguiu:

“E do Aguiar para reforço?”

“Não conheço esse. É avançado”.

“Avança, se for preciso. E do Marcelo?”

“Ouvi dizer que é bom”.

“O importante é conseguirmos tirar o Luís Filipe, o que parece garantido”, insistiu outro dos homens de charuto.

“Nesse ponto, estou totalmente de acordo”, respondi. “Precisamos de novos avançados, de um treinador à maneira e, sobretudo, de nova liderança. Mas atenção, que não apareçam dez líderes e apenas um avançado centro, como nos exércitos sul-americanos".

Naquela noite, ainda não tínhamos sido cilindrados pelo Sporting e eu ainda não estava a ver bem a dimensão da nossa crise.

Mas os bacanos pareceram satisfeitos com a minha resposta. “É a opinião dos trabalhadores”, disse um deles, como que a sublinhar um ponto importante.

Só quando vinha a sair é que o verdadeiro empregado me disse que aquele não era um jantar de salvadores do meu Benfica, mas a reunião de opositores da liderança do PSD.

“Esses ainda estão piores que o Benfica”, ri-me. Ainda não tínhamos apanhado os 5 a 3 e agora, tenho dúvidas sobre quem estará pior, porque nós não nos livramos do nosso Luís Filipe.

Despedi-me do empregado, perguntei-lhe se conhecia o restaurante da moda onde estavam os corta-fiteiros e segui caminho, à procura do Naves, para lhe ensinar uns truques de pugilismo e entregar-lhe esta crónica, pare ele pôr em linha.

Adolfo Ernesto 

Teoria do karaoke

Em dois episódios anteriores, fragmentos do capítulo 18 desta saga, contei como Alcibíades, o cronista contemporâneo, se apaixonou por Vanda, a mulher-verde, enquanto Adolfo Ernesto, personagem central deste folhetim, vestia um fato de Elvis, para abrilhantar o karaoke do Atheneu. Também houve uma longa digressão sobre o karaoke como metáfora da era da espuma...

 

“Dizia eu”, continuou Alcibíades, “que vivemos num tempo que valoriza a técnica em prejuízo do conteúdo”.

“Permita-me”, interrompi, “mas o mestre estava a falar de Vanda, a mulher-verde, e da forma como Adolfo Ernesto interpretou Elvis no karaoke do Atheneu”.

“Tem razão, senhor Naves. E já lhe tinha dito que, depois, chegou a polícia, atraída por um horrível denunciante, convocada por um bufo pidesco, um ser indescritível e pestífero, que se queixara do barulho ao piquete da esquadra”.

Fiquei em silêncio; tentava reflectir. Era a única explicação: já escrevi ali atrás (creio que no segundo fragmento deste capítulo 18, que já deve ir duzentos posts mais abaixo), que sou vizinho do Atheneu. O meu quarto orienta-se para o majestoso edifício e, por vezes, ouço o barulho dos concertos, o que deveras me incomoda, provocando prolongadas insónias; embora não tanto como naquela noite me incomodou a desafinação do karaoke. Ou seja, eu próprio chamei a polícia, pois o barulho era atroz e já passava da meia-noite.

“Se eu apanhasse o denunciante, senhor Naves, nem sei o que lhe fazia”, prosseguiu o grande cronista. “Eu estava mais ou menos orientado com a Vanda, que apreciara os meus conhecimentos sobre ficção científica; falámos de Asimov e de Van Vogt, de Heinlein e K. Dick, enquanto o Adolfo Ernesto interpretava Elvis no palco”.

Sim, agora lembrava-me; foi exactamente uma berrata de um imitador de Elvis que me levou a convocar a acção policial (chamei os agentes na qualidade de cidadão, voltaria a fazê-lo, mas não podia confessar a verdade ali, na biblioteca de alguém que parecia tão ofendido com a minha denúncia). Enquanto Alcibíades falava, eu lembrava o tumulto que se seguiu à violenta carga policial. Fugiam pessoas do Atheneu, num pânico, enquanto lá dentro os agentes distribuíam pancada,

“Os polícias atacaram o Adolfo Ernesto com tudo o que tinham”, explicava Alcibíades.

Entretanto, eu tentava reflectir sobre o que podia ou não confessar daquela noite em que também participara de forma indirecta.

O cronista prosseguia a sua narrativa: “O nosso Adolfo Ernesto defendeu-se bem, apesar do dó lhe fugir ligeiramente para fá sustenido. Seguiram-se cenas de rara violência, senhor Naves. Elvis foi levado em ombros pela polícia de choque, um triunfo, enquanto eu e a Vanda fugíamos pela janela das traseiras. E foi então que se deu a tragédia. Compreenda que a mulher-verde, a minha doce Vanda, usava aquele creme que lhe recriava uma pele extra-terrestre e eu, que já havia saltado a janela, disse-lhe que saltasse também, que o seu amigo Alcibíades era suficientemente forte para a segurar cá embaixo”.

Alcibíades, visivelmente transtornado, descrevia a cena, com largos gestos, revivia cada momento, pormenorizadamente. E prosseguiu:

“’Salta, filha, salta’ gritei, e ela arriscou o salto, e quando a tentei agarrar, o creme era deslizante e aquele corpo sublime fugiu-me da mão como uma enguia. E a Vanda estatelou-se no pavimento, passando por entre os meus dedos subitamente besuntados de creme escorregadio. Ela não se magoara, excepto no ego. Felizmente, as mulheres têm aqueles traseiros mais largos, que facilitam a aterragem; foi uma sorte no meio do azar. Mas olhou-me como quem fuzila um delator. Eu traíra a confiança que ela depositara na minha força. De súbito, era apenas um anónimo-incompetente-potencial-amante-descartado-do-baralho, a condição mais trágica do Homem. Vanda ergueu-se, tentou compor o seu vestidinho mimoso e largou-me um olhar de desprezo que ainda hoje me dói. Nunca mais a vi”..

Alcibíades, o grande cronista, não dissera a palavra fim, mas percebi que a história acabara. E, no entanto, num impulso furioso, ele concluiu ainda, numa voz tempestuosa: “Se ao menos pudesse deitar as minhas mãos ao pescoço do denunciante que chamou a polícia, os dedos não me iriam escorregar desta vez”. E, num gesto dramático, estrangulou na atmosfera um pescoço imaginário.

Era altura de me despedir, pensei. Já tinha o testemunho para a saga. Acenei e saí da caverna meditabunda do bom gigante.

 

Aqui termina o capítulo 18, para grande alívio dos leitores do Corta-Fitas. O folhetim, esse, continuará, até à rendição final do autor.

 

Contributo para a figura do Adolfo Ernesto (Parte II)

por João Villalobos, em 11.04.08

Decorreriam uns anos até voltar a ver o Adolfo Ernesto. Nesse tempo abardinado em curso, a Walther andava sempre comigo, não fosse necessário enfiar uns supositórios num comuna ou noutro daqueles guedelhudos ainda mais esquerdalhos que me infernizavam a vida lá na herdade.

Em Lisboa, onde me encontrava por causa de uns negócios a ver com Angola que não interessam para esta história, havia-os aos pontapés, literalmente falando. Preparava-me certa noite para negociar o preço do serviço de uma empresária em nome individual, ali para os lados do Técnico, quando vi um grupo de gajos à porrada e a dar novos e contundentes usos a paus de bandeira e baldes de tinta vermelho-Mao.

À margem da turba, olhando em tique-taque da esquerda para a extrema-esquerda, uma silhueta cujo desequilibrado gigantismo me pareceu familiar. Dei uns disparos para o ar com a minha «Amélia» e a maralha dispersou em tropel de rebanho, com excepção do dito cujo, com uma boina sebenta de pastor de cabras na cabeça. Cheguei-me ao pé dele e, calculando que tivesse algum atraso mental, gritei-lhe ao ouvido:

«Então pá?!!! Não sabes afinfar uma berlaitada nesses copinhos de leite morno»?

«Desculpa lá», murmurou ele com ar ausente.

«Desculpo-te o quê, ó gabiru»?

«Não ter levado a taça de branco traçadinho à tua amiga».

Por improvável que pareça, foi aí que se fez luz. Lembrei-me do impúbere troglodita que nunca regressara naquela noite que não esqueci, após o Tarzan Taborda me ter enfiado para dentro do estômago a 4ª e a 5ª costelas. E foi então que decidi convidar o Adolfo para continuarmos a noite num outro lugar…

Atenção: Relembro-vos que me limito a reproduzir uma série de textos recebidos sob anonimato, por isso não me chateiem.


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