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Pediram-me, duas vezes e com alguma insistência, que fosse comentar o fogo na Madeira mas eu recusei terminantemente (o que me custa, eu percebo que quem tem de preencher os notíciários intermináveis das televisões tem um problema sério e não é justo eu criticar asperamente a qualidade da informação, ao mesmo tempo que me recuso a expor-me tentando fazer melhor, quando me pedem).
As minhas razões são fáceis de explicar: não conheço praticamente nada da Madeira (objectivamente, sou um saloio pouco viajado), não sei o suficiente do contexto para sequer interpretar a informação que vai sendo produzida e o fogo é um filho do seu contexto, logo, o que eu disser sobre o assunto, incluindo neste post, tem fortes probabilidades de não ter grande utilidade.
Dito isto, ao fim de uma semana, em que fui acompanhando o assunto com alguma distância mas lendo algumas coisas escritas por pessoas que sabem mais do assunto (Paulo Fernandes e Jorge Capelo, por exemplo), acabei por decidir fazer este post.
A motivação mais imediata foi um pequeno comentário de Paulo Fernandes, qualquer coisa como, cinco mil hectares ardidos numa semana de 2024 na Madeira, cinco mil hectares ardidos no pinhal de Leiria em três horas e meia de 2017.
A motivação menos imediata é a novela dos meios aéreos, quando confrontada com os vídeos que fui vendo do fogo e que me parecem ilustrar bem o erro de doutrina que persiste em Portugal no que diz respeito ao combate aos fogos.
Não pretendo desvalorizar a preocupação manifestada por Jorge Capelo no que diz respeito à conservação da laurissilva e concordo com ele no que me parece ser uma linha de raciocínio fundamental: a conservação da laurissilva deveria estar no processo de decisão de combate ao fogo praticamente ao mesmo nível que as outras preocupações fundamentais: não perder vidas, não perder casas, não perder infraestruturas essenciais.
Nesse ponto, não podia estar mais de acordo com Jorge Capelo: é inaceitável a desvalorização que é feita da conservação da laurissilva.
Onde tenho dúvidas é na visão mais catastrofista que a minha que tem Jorge Capelo, a laurissilva é uma menina dos olhos do Jorge, é dos maiores conhecedores do assunto, mas conheço-o o suficiente para saber que tem uma visão pessimista e catastrofista sobre a conservação da flora e a sua relação com o fogo.
É verdade que a laurissilva, ao contrário da generalidade das formações vegetais do continente (com raras excepções, como os zimbrais), não tem a longa relação com o fogo que nos permite ter alguma tranquilidade em relação à recuperação da esmagadora maioria das formações vegetais com interesse de conservação que existem no continente.
Mas também não faz o menor sentido pensar que nas últimas centenas de anos o fogo não esteve presente na Madeira, sendo muito pouco provável que não haja capacidade de recuperação da vegetação autóctone no pós fogo.
Também é verdade que hoje existem um conjunto de invasoras (algumas autóctones no continente) que podem estar mais bem adaptadas a um padrão de fogo que entretanto poderá ter mudado (como disse acima, não conheço o suficiente da Madeira para ter alguma ideia de como tem evoluído o padrão de fogo nas últimas centenas de anos), é verdade que há alterações de uso que podem ter tornado mais complicada essa recuperação, é verdade que os tempos de recuperação podem ser demasiado lentos para o padrão de fogo que hoje existe, tudo isso são riscos reais (que não sei avaliar) que talvez pudessem ter sido diminuídos com um combate mais inteligente, mas o que não me parece razoável é pensar que a Madeira não teve episódios de fogo anteriores bem mais complicados que este.
O que consigo perceber (dentro dos limites da minha ignorância, insisto) é que o fogo tem andado por ali com alguma lentidão (compare-se o tempo de uma semana com o tempo de três horas e meia para atingir os mesmos cinco mil hectares de área ardida), com elevada piro-diversidade, ardendo em mosaicos com bastante variação de intensidade de fogo (isto é, de energia libertada) e, provavelmente, severidade (isto é, efeito na vegetação, é preciso mais uns dias para saber).
Parece também ser claro que a doutrina dominante de combate aos fogos em Portugal - concentração dos meios à volta das casas e pessoas, combate baseado em água e utilização de meios aéreos em substituição do trabalho de sapadores, em vez da sua utilização como mero suporte ao trabalho dos sapadores - poderá ser responsável por se ter deixado o fogo andar por áreas que teria sido desejável evitar, se a conservação da laurissilva fosse uma prioridade e se a visão estratégica do combate incluísse a identificação das oportunidades de êxito do trabalho de sapadores (com os pés no chão, ferramentas de cabo de madeira nas mãos e o uso do pinga-lume bem treinado).
Agora discutem aviões e números de helicópteros, como se fosse possível andar a regar fogos à espera que a água seja suficiente para abafar as chamas.
Francamente não tenho nenhuma certeza de que o que escrevi tenha alguma base sólida, o que me impressiona mesmo é que o conjunto de questões que me coloco a mim mesmo, ao olhar para a situação, esteja quase completamente ausente do debate sobre o que fazer quando tudo arde.
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