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Soberania alimentar e proteccionismo alimentar

por henrique pereira dos santos, em 16.05.22

Soberania alimentar é o que chamamos à protecção dos mercados internos de alimentos, quando somos nós a fazer, e muita gente acha isso óptimo e uma boa política a adoptar.

Proteccionismo alimentar é o que chamamos à protecção dos mercados internos de alimentos, quando são os outros a fazer (como agora, que a Índia proibiu a exportação de trigo) e muita gente acha isso horrível e um egoísmo intolerável.

"A questão cerealífera: o trigo" é um dos textos mais interessantes que li sobre estes dois assuntos - a nobre soberania alimentar e o execrável proteccionismo alimentar - , muitíssimo bem escrito, muitíssimo bem argumentado, e procurando responder a esta pergunta, que consta tal e qual da tese em causa: “De modo que este país da vinha e da oliveira, das frutas magníficas e das flores preciosas, podendo oferecer nos grandes mercados, com antecedência de bastantes dias, os produtos mais caros e mais raros, de maior procura e consumo, vive agarrado à miséria da sua cultura de cereais. Porque não a abandonará?”.

Uma das coisas interessantes sobre esta tese é a de que é a tese de um académico que está a prestar provas para entrar a Universidade de Coimbra, por volta de 1916, se não me engano, António de Oliveira Salazar, cujo regime, mais tarde, é conhecido por ser responsável pela fortíssima protecção à produção nacional de cereais a que se chamou "Campanha do trigo".

Como de costume, as coisas não são assim tão simples.

A "Campanha do trigo", em grande parte copiando a "Batalha do pão", de Mussolini, não é uma invenção de Salazar, ou do Estado Novo, foi lançada por Linhares de Lima, ainda no tempo da Ditadura Militar que precedeu o Estado Novo, e a tomada de poder por Salazar.

Para complicar, essa campanha do trigo na verdade era uma evolução do que resultou da Lei da Fome, de Elvino de Brito, a legislação proteccionista da cultura de cereais que foi aprovada em 1899 (tinha alguma legislação precedente no mesmo sentido) que é exactamente o objecto da tese de Salazar.

O nome pelo qual ficou popularmente conhecida a legislação de Elvino de Brito é muito esclarecedor: a protecção à produção de cereais nacionais, como forma de combater a entrada de cereais mais baratos vindos do Novo Mundo, resultou, como seria de esperar pela teoria económica, em pão mais caro para os consumidores e ineficiência produtiva por parte do sector.

Salazar é um feroz crítico dessa política - devo dizer que o que mais me espantou na tese de Salazar é o facto da crítica ser, essencialmente, liberal, que é coisa que Salazar nunca foi - e parece ter existido uma tentativa de desmantelar o proteccionismo à lavoura, por parte de Salazar, logo depois da segunda guerra mundial, tentativa que Salazar faz abortar para não perder o apoio da lavoura ao regime.

De uma forma ou de outra, Salazar, o académico, tinha razão: viveríamos muito melhor usando as nossas vantagens para vender caro os nossos produtos no mercado internacional, comprando barato os cereais estrangeiros, em vez de persistirmos na cisma de produzirmos o que comemos.

Um desvio para dizer que quando fiz um doutoramento sobre a evolução da paisagem rural em Portugal, ao longo do século XX, este assunto era tratado e havia um capítulo a que eu queria chamar, ironicamente, o triunfo de Salazar, referindo-me ao académico e ao perído de adesão à União Europeia em que que foi desmantelado, e bem, o que restava do sistema de protecção à produção ineficiente de cereais. Disseram-me que talvez a academia não estivesse preparada para aceitar teses com títulos desses. Ri-me, encolhi os ombros - queria era despachar aquela porcaria - e mudei o nome do capítulo.

Voltando ao assunto, até pode haver quem, perante um cenário de potenciais rupturas de cadeias de abastecimento, pretenda erguer barreiras ao comércio internacional de alimentos (como aliás faz, excessivamente, quer a União Europeia, quer o Estados Unidos, e muitos outros, embora de forma muito mais mitigada do que pretenderiam os fisiocratas que falam de soberania alimentar).

Convém é ter bem presente que a lei da fome não se chamava assim por acaso: o controlo administrativo de preços e as barreiras ao comércio, pagam-se, quase instantaneamente, em escassez e carestia.

O principal fermento das revoluções, como penso ser do conhecimento comum.


11 comentários

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De henrique pereira dos santos a 17.05.2022 às 14:39

Não percebi quem critica o quê, só percebi que, para si, a agricultura tem de ser subsidiada.
Como pelos vistos este post não foi suficiente como afirmação de que o controlo administrativo dos preços conduz sempre à escassez e carestia, uma dia destes faço outro post a explicar que não há um único liberal com dois dedos que testa que afirme que há mercados perfeitos.
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De João Pedro Pereira a 19.05.2022 às 10:39

Então percebeu mal...
Para mim, a agricultura devia focar-se em produzir alimentos de qualidade ao melhor preço possivel e não em captar subsídios....
O que não é viável, nem faz sentido, é termos um processo de produção completamente "soviético", controlado "ao milimetro" por politicos e funcionários que sabem tanto de agricultura como eu sei de ballet clássico, e depois sermos 100% liberais nas vendas e importações, a única coisa que isso consegue é destruir os agricultores e, um dia, como estamos agora a ver, estes podem fazer falta...
O que eu não consigo perceber é que os grande parte dos liberais portugueses (os que vou lendo na bloga, os do partido IL, etc.) se insurge contra o facto de os agricultores portugueses receberem subsídios e não lhes fazer confusão, por exemplo, a ideia repetidamente proposta pela esquerda (e já parcialmente implementada através dos PDMs) de serem os funcionários das câmaras municipais a decidir o que cada agricultor pode ou não cultivar nas suas terras, como também não os vejo incomodados por os agricultores portugueses serem "trucidados" por preços definidos por países que não produzem mais nem melhor que nós, mas apenas mais barato por não terem a nossa carga fiscal, mas acima de tudo, por empregarem métodos, técnicas e produtos que são absolutamente proibidos na Europa. Proibir a utilização de insecticidas por estes terem um risco eventual de matar abelhas (imagine-se, insecticidas que matam insectos!) e depois ir comprar a comida lá fora porque, não tendo de cumprir essas regras, conseguem produzir mais barato não é liberal, é só estupido...
Por último, também não vejo nenhum liberal incomodado com o facto dos subsídios serem definidos por um histórico, qual tença de nobres do tempo do feudalismo, o que promove a imobilidade e ineficiência (não por descuido, o objectivo é mesmo esse) mas acima de tudo é injusto e um travão de mobilidade social.
Há gente que recebe anualmente milhares de euros dos fundos agrícolas, sem cultivar sequer uma plantinha na varanda, à conta do histórico do pai ou do avô e que mantém as terras bloqueadas, sem vender ou arrendar, por conta desse pagamento, pior, consoante seja Espanhol, Francês ou Alemão, um agricultor recebe 3, 5 ou 8 vezes o que um português receberia nas mesmas circunstâncias (não sei se os valores estão actuais, mas o que importa é uma valorização financeira da nacionalidade).
Bem... Isto já vai longo e não tem solução fácil...
Resumindo a minha posição: não sou a favor dos subsídios, mas não percebo quem ataca estes ignorando todas as situações que lhes dão origem e que os tornam vitais para que os agricultores portugueses possam ter um mínimo de hipóteses de sobrevivência e que são mais contrárias aos principios liberais do que uma mera taxa alfandegária.
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De henrique pereira dos santos a 19.05.2022 às 13:59

Obrigado pela síntese dos argumentos que têm sido usados para manter o status quo, que se traduz, na prática, na defesa dos subsídios que existem.
Como disse, quando tiver tempo e disponibilidade faço um post sobre isso, aconselhando-o a ler o programa apresentado pela Iniciativa Liberal às últimas eleições, para ver se vê alguns liberais a fazer o que diz que nunca viu liberais fazer.

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