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Sidónio, a construção de um mito

por Daniel Santos Sousa, em 16.12.22

Pode ser uma imagem de 2 pessoas, pessoas em pé, ao ar livre e monumento

A 14 de Dezembro de 1918 Sidónio Pais é assassinado, consumando a decadência final anunciada desde o regicídio de 1908. Em seu redor construiu-se o mito. Foi o Presidente-Rei exaltado por Fernando Pessoa, o “nosso primeiro republicano sem barrete frígio”, como lembrou António Ferro. Paradoxo de um tempo conturbado, Sidónio reúne em torno de si as várias facções políticas desavindas. Nele revêem-se os republicanos autoritários na apoteose dos gritos ao Chefe, os monárquicos esperançosos na personalização do poder, os católicos cansados do anticlericalismo radical. Mas Sidónio liberta-se das amarras do tempo. Depois da sua morte continuará o culto e nele reconhecer-se-ão os fascistas e exaltadores do militarismo do novo século e os artistas do futurismo impulsionados pela estética radical que suplante o anacronismo burguês oitocentista. Para os conservadores um preservador da ordem, para os católicos um enviado dos céus e, na senda modernista, descobrem outros a renovação da tradição encarnada no cesarismo.

O registo ainda não fora definido, mas nas décadas seguintes encontraria paradeiro: a poesia da violência, a política elevada à estética, o mito suplantando a razão, o heroísmo elevado à virtude, a condução da massa informe a uma unidade de destino. Ainda que original entre nós, não constituía uma novidade na política europeia. No passado Napoleão III e Bismarck tinham dado o mote ao conjugar os desafios herdados pelas revoluções liberais com o remanescente da tradição, o “cesarismo plebiscitário” era a resposta à legitimidade da autoridade quando ameaçada pela violência das barricadas. Em suma, preconizava a "revolução desde cima" do hegelianismo, também estudada pela pena de Oliveira Martins. Faltava apenas encontrar o protagonista. Para Martins seria o rei D. Carlos, não tivesse o projecto da “Vida Nova” definhado com o desaparecimento do seu principal animador; e não tivesse o regicídio roubado a única força viva da monarquia. Numa reviravolta da história a “República Nova” de Sidónio retomaria o pojecto de uma revolução conduzida desde cima. Mas Sidónio está para além da tecnocracia, ou de uma teorização filosófica, a sua passagem fugaz eleva-o a mártir e símbolo da República.

Desde as profecias do sebastianismo, até ao culto miguelista, que não se conhecia uma tão grande devoção. Aos reis é fácil encarnar o mito, mas na República (e num regime ainda jovem em 1918) tal ainda parecia inconsequente. Sem dúvida que Sidónio contrastava com os demais Presidentes da Primeira República, na imagem que cultivou, no modelo, na linguagem. Mas foi a morte quem o tornou um ícone, em parte através da idealização jornalística de Reinaldo Ferreira (o famoso Repórter X)."Morro bem salvem a pátria" tornou-se uma espécie de grito derradeiro face à agonia do próprio regime. Na verdade Sidónio terá suspirado "não me apertem rapazes".

Homem de gesta guerreira que fardava junto às massas o seu idealismo, Sidónio inaugurava o século XX em Portugal. Maçon, republicano da tradição laica e jacobina, superou os facciosismos. O homem que muito antes antecipou Mussolini; e que marchou sobre Lisboa antes dos camisas negras entrarem em Roma. Verdadeiramente protótipo do revolucionário de topo, um César redentor da república, bem sintetizava a máxima de Oliveira Martins escritas décadas antes: "um sabre contendo um pensamento".

O catedrático-soldado, o político elevado a mártir, era a renovação da autoridade. Populista e cesarista, bonapartista e nacionalista, como não se conhecia na paisagem seca de uma política de caciques e de bufos, nele o presidente confundia-se com o rei, face ao trono vacante que deixara o país entregue ao caos. Um ano bastou - como se tivesse vivido a existência plena de um povo. Morreu em sentido paradoxal ao do Rei D. Carlos, um por tentar regenerar a monarquia, outro por procurar regenerar a república. No final de tudo, viveu como o século: perigosamente, velozmente.

 


15 comentários

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De entulho a 16.12.2022 às 09:27

felizmente temos o maior dirigente político da história e a sua maioria absoluta, não confundir com dissoluta
a nova versão de 'filo porque quilo'
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De balio a 16.12.2022 às 10:03

Foi um dos grandes populistas.
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De lucklucky a 16.12.2022 às 22:52

Populismo: tudo o que o balio não apoia mas povo apoia
Democracia : tudo o que o balio apoia e o povo também apoia.


Quem usa a palavra populismo está dar um sinal de classe para dizer que não faz parte do povo e que tem um entendimento superior "á ralé" ou nos termos presentes aos "deploráveis".


Que os jornalistas a usem a eito mostra como mudaram de classe social sem sequer darem por isso...
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De Anónimo a 16.12.2022 às 10:46

Um homem de gesta guereira que, não podendo retirar, abandona os soldados à sua sorte na Flandres sem apoio nenhuma.
Pensava que os guerreiros protegiam os seus.
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De balio a 16.12.2022 às 15:19


Como podia ele retirar? Ele não tinha navios para o fazer!
Os soldados foram para a Flandres em navios ingleses, e só saíram de lá quando a Inglaterra se dignou disponibilizar navios para os trazer de volta.
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De lucklucky a 16.12.2022 às 22:57

Não tinha navios? se não bastavam os portugueses umas boas dezenas de navios alemãe foi capturada nos portos portugueses.
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De Francisco Almeida a 16.12.2022 às 12:09

Já alguém (Jaime Nogueira Pinto?) anotou que os cadetes de Sidónio foram os tenentes do 28 de Maio e os coronéis da guerra do Ultramar. Hoje, desse quadrante, não se vislumbra esperança.
Mas os aventais não desistem de recuperar a chefia do Estado - um dos motivos porque sou monárquico - e, se deram com os burros na água com as declarações desastradas de Magina da Silva na crise do SEF agora parecem estar a rodear o almirante das seringas. A postura da comunicação social, nesse campo, é mais fiável do que um barómetro.
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De passante a 17.12.2022 às 01:16

os cadetes de Sidónio foram os tenentes do 28 de Maio


Dá-me alguma curiosidade de pensar o que seria o Portugal de 1960 - estatistica e geograficamente, desfulanizando completamente a questão - se Sidónio Pais tivesse vivido e continuado presidente pelo menos mais alguns anos.





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De Francisco Almeida a 17.12.2022 às 11:31

É um exercício fútil. Também poderia imaginar o que seria Portugal em 1926 se D. Carlos e D. Luís Filipe não tivessem sido assassinados e tivessem dado tempo a João Franco. Ou o que teria acontecido se D. João VI não tivesse sido assassinado e não tivesse havido a guerra civil. Ou ainda se D. João II não tivesse sido envenenado ou o seu filho não tivesse morrido num acidente hípico e nunca tivessem acontecido os três casamentos castelhanos de D. Manuel. Ou se o Infante D. Pedro não tivesse sido assassinado a seguir a Alfarrobeira. Ou se apenas D. Afonso V. não fosse um desastre e D. Joana tivesse ocupado o trono de Castela sem nunca terem ascendido ao poder Fernando e Isabel. Ou até se García Sánchez tivesse ganho a batalha de Atapuerca em 1054. Ou "the last but not the least" se D. Sebastião não se tivesse metido em Alcácer-Quibir ou, pelo menos, não tivesse sido enganado pelo seu tio Felipe.
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De passante a 17.12.2022 às 21:57

E se fosse aproximadamente o mesmo, e os incidentes de percurso fossem irrelevantes?


Essa é a parte interessante. Acho que os marxistas, e não só, pensam que os indivíduos não contam muito - se não for o A, será o B - o que interessa são as forças e massas da história, como num problema de física.
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De Francisco Almeida a 18.12.2022 às 15:48

É tão errado acreditar que os marxistas têm toda a razão como acreditar que não têm nenhuma.
Não se pode descartar a análise histórica de Marx mas reduzir a história a Marx já custou 100 milhões de mortos. E, muito antes de Marx, Shakespeare já tinha expressado o mesmo. Num drama de Shakespeare as personagens encaminham-se inexoravelmente para um desfecho trágico, algumas até ganham consciência antecipada disso mesmo, mas não o conseguem evitar.
Como o vejo, a esmagadora maioria das pessoas, só contam nos seus apertados círculos de convivência, a família, a vizinhança (esta fora das grandes cidades) o trabalho e até a política. Quantos dos filiados dos partidos alteram ou podem alterar seja o que fôr?
Mas acredito que, muito raramente, surgem pessoas que podem fazer a diferença. E outras que o poderiam se não fossem travadas prematuramente. É-me impossível reduzir a ocorrência de líderes inesperados e imprevistos, como Reagan ou Zelensky, a efeitos de forças e de massas históricas.
O que, evidentemente, torna tudo muito mais difícil pois, para cada caso, para emitir um juízo ou escrever um ensaio ou simplesmente preencher um boletim eleitoral, é necessário um conhecimento das personagens significativas e das suas envolventes. Isso dá trabalho. Que não é um valor em alta nesta sociedade de hoje De facto, como se sabe desde os antigos gregos, esse alheamento colectivo, essa limitação aos títulos dos jornais e a comentários nas redes, conduz inexoravelmente à sujeição a um demagogo. Isto na versão "soft" porque na versão "hard" será a um tirano.
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De João-Afonso Machado a 16.12.2022 às 13:33

Seja bem vindo Daniel Sousa ao grande Corta Fitas.
Não me cabe fazer as "honras da casa". Mas li com o maior interesse o seu post. E permitirá duas notas: Sidónio personaliza o único modelo de republica presidencialista ("cesarista" seria com qualquer Antº Costa lhe chamaria) em Portugal.
A classe política da casa na gosta disso. Gosta de demagogia e esta funciona melhor -e bem - no parlamentarismo. É por isso que não conseguimos uma monarquia constitucional.
Sidónio seria também - para Antº Costa - um "populista": com preocupações sociais, criou a "sopa dos pobres".
Sidónio foi, na realidade, um ano de esperança para todos os portugueses que bem refere no seu post. E foi assassinado, como todos os verdadeiros estadistas portugueses do séc. XX.
Um abraço
JAM
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De balio a 16.12.2022 às 15:23


Sidónio seria também um "populista"


Exatamente. Há um livro recente de um investigador português em ciência política (não me recordo do nome) que estuda o populismo em Portugal e elenca, de forma justificada em detalhe, alguns exemplos, em particular Sidónio Pais, Humberto Delgado, e Sá Carneiro.
Contrariamente àquilo que muita gente parece pensar, o populismo não nasceu com Donald Trump nem, em Portugal, com André Ventura.
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De João-Afonso Machado a 16.12.2022 às 16:14

Balio, V. é grosseiramente o tal demagogo que quilhou Portugal. Onde quer que haja uu líder e projecto de lider V. está lá a desfazer.
Peço - continue. Assim se demonstra que não pode haver Estadistas em Portugal.
Apenas salafrários partidários.
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De João Távora a 16.12.2022 às 15:56

Grande entrada! Bem vindo, Daniel.

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