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Um indigente artigo de um diplomata e escritor (assim se apresenta), e antigo Ministro da Cultura (assim o apresento eu), acaba com o seguinte parágrafo: "E pensar que, segundo o economista Nuno Palma, da Universidade de Manchester, esses anos constituíram o período mais glorioso do crescimento económico de Portugal nos últimos anos...".
É uma boa introdução para o que vou repetir, mais uma vez.
Que o primeiro acabe um artigo vagamente poético sobre as suas memórias, com um parágrafo que mais que ser verdadeiro, se quer que assinale a virtude do autor, aproveitando para distorcer o que diz Nuno Palma introduzindo ali um "glorioso", onde Nuno Palma se limita a confirmar o que é do mais alargado consenso na historiografia económica do país (que o período de maior crescimento e convergência do país dos últimos 200 anos se situa entre a adesão à EFTA e o primeiro choque petrolífero), enfim, é o que é.
Que a segunda aproveite a sua aura de historiadora para contrabandear ideias políticas, distorcendo a realidade histórica, isso é outra coisa.
Que o Estado Novo - já agora, antes dele, a ditadura militar, que também suspendeu as escolas do magistério primário, embora só por quatro meses - entendesse que era preciso liquidar a influência republicana no ensino primário e, por isso, tenha fechado as inscrições nas escolas do magistário primário, é do domínio dos factos conhecidos e das interpretações razoáveis.
A razão invocada pelo regime - o excesso de professores para o serviço que havia - é desmentida pelo próprio regime quando, quatro ou cinco anos depois, resolve publicar legislação de emergência para resolver a falta de professores com que estava confrontado, sendo por isso razoável pensar que o regime terá querido reduzir a influência política do republicanismo no ensino primário.
Da mesma forma que o regime republicano entendia o ensino primário como um instrumento poderoso de inculturação (acho que foi ao artigo de Paulo Guinote sobre os regentes escolares que fui buscar esta ideia e palavra, adequada para o que está em causa), o Estado Novo entendia que era na escola, ideologicamente formatada, que estava uma das maneiras mais eficazes para assegurar o apoio social ao regime.
Como Nuno Palma e Jaime Reis enfatizam no seu artigo "Can autocracy promote literacy? Evidence from a cultural alignment success story", será em grande parte porque os republicanos pretendiam mudar mentalidades criando uma escola que manifestamente se opunha ao consenso social, onde o Estado Novo pretendia reforçar os sentimentos sociais prevalecentes entre as pessoas comuns, que o Estado Novo teve muito mais sucesso na mobilização das famílias para que mandassem os seus filhos à escola, sem correrem o risco de virem de lá os rapazes como maus cristãos e as filhas umas perdidas (uma tia-avó minha, professora primária numa aldeia, e considerada uma fera sem coração, justificava a sua férrea disciplina com o facto de ter de ensinar o programa todo até Março, que depois entravam as regas e as sachas do milho e os miúdos desapareciam todos da escola).
Não é pois a ideia de que o ataque que o Estado novo fez às escolas do magistério primário era, em primeiro lugar, um ataque que visava o controlo ideológico do que se passava na sala de aula, que me incomoda no que diz Irene Pimentel.
O que me incomoda, sendo ela historiadora e especialista neste período da história, é que diga uma barbaridade como esta: " isso faz de tal maneira mal à educação que, nos anos 50, não há sequer professores da escola primária porque há uma destruição da sua formação a partir dos anos 30".
E incomoda-me porque é uma rotunda mentira e não há maneira de Irene Pimentel não saber que está a mentir, provavelmente por cegueira política.
Tirando os tais quatro meses da ditadura nacional em que estas escolas estiveram fechadas, há um período entre 1936 e 1942 em que as inscrições nestas escolas não existem, o mesmo é dizer que as escolas estão fechadas.
Mas, ao contrário do que diz Irene Pimentel, isso não se traduz numa escassez de professores nos anos 50, porque o regime fez duas coisas essenciais para o que veio a ser o desbloqueio da escolarização generalizada das crianças, coisa que nunca tinha sido conseguida.
Por um lado, em 1940, lança mão de um modelo excepcional de contratação de professores, que diminui a exigência para o exercício da profissão, é certo, que diminui os custos para o Estado porque os regentes escolares não ganham o mesmo que os professores, é certo, garante o controlo político dos escolhidos, é certo, mas que permite a contratação de mais de mil "professores", grande parte dos quais em regiões do país em que não havia escolas, isto é, garantindo uma maior capilaridade no ensino do básico: ler, escrever e contar.
E logo em 1942 reabre o ensino do magistério primário, reduzindo a formação de três para dois anos, o último semestre dos quais já leccionando debaixo da supervisão de um professor.
Do sistema anterior, que vai permanecer como provisório muitos anos, é verdade, mas crescentemente mais exigente (ver Paulo Guinote "O Lugar da(o)s Regentes Escolares na Política Educativa do Estado Novo: Uma Proposta de Releitura (anos 30–anos 50, que beneficia muito da tese de Ana Paula Rias, que não li por não a encontrar na internet, embora tenha lido, com proveito, "O ensino em discurso feminino, o caso singular das regentes escolares", que esse sim, se encontra facilmente na net), retêm-se os exames de admissão e de Estado, que garantem uma exigência mínima - e crescente - para o provimento dos lugares.
É impossível que Irene Pimentel, que sabe que as matrículas foram suspensas em 1936, não saiba que foram reabertas em 1942 e que o número de professores e de regentes escolares, nos anos 50, era muito maior que nos anos 30 e que a eventual escassez não se devesse ao facto de, finalmente, o país ter quase todas as suas crianças em idade escolar onde deviam estar: na escola.
Como muito bem diz Paulo Guinote, "Muitos investigadores e autores tendem a aceitar muito rápida e acriticamente o valor retórico, facial, do discurso legislativo como a realidade efectiva das coisas, quando sabemos que existem importantes desfasamentos entre o que é postulado no aparato legislativo e o que é depois levado à prática, num processo em que os diplomas originais vão sendo adaptados progressivamente, à medida que as circunstâncias concretas exigem que a vontade política ceda, em maior ou menor escala, perante a realidade."
A questão central é que não são só "os investigadores e autores" que têm uma marcada preferência pelo discurso, em detrimento da avaliação da acção: esse é um traço distintivo da nossa sociedade.
Um bom exemplo é uma recente troca de argumentos entre Alexandra Leitão e Carlos Guimarães Pinto sobre cortes: Alexandra Leitão diz que há uma diferença muito grande entre ganhar 1000 e passar a ganhar 950, isso é um corte, ou haver inflação, não havendo corte, e Carlos Guimarães Pinto contra-argumenta que a diferença é meramente estética: uma inflação de 10% põe os 1000 a valer 900, portanto um aumento nominal de 5% é, em termos reais, um corte semelhante ao descrito por Alexandra Leitão, num cenário sem inflação (não me macem com os 10% ou 5% não darem exactamente os números redondos que citei, para o caso é igual e escusam de fazer a demonstração de como o acessório dito é mais importante que o essencial feito, para muita gente).
Vai demorar muito tempo até que os historiadores (e o resto das elites) que dão mais importância à sua sinalização de virtude anti-fascista saiam da frente e deixem de travar o aumento do conhecimento da realidade que, por não ser preto e branco, às vezes não cabe nos seus preconceitos.
Como a estafada mentira de que analfabetismo e a pobreza são resultados voluntários e prosseguidos politicamente pelo regime salazarista, com êxito, como forma de controlo social.
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