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"Riscos globais e biodiversidade"

por henrique pereira dos santos, em 13.09.21

"Riscos globais e biodiversidade" é um ensaio de Maria Amélia Martins-Loução, publicado na colecção de ensaios da Fundação Francisco Manuel dos Santos.

Não quero fazer a recensão do ensaio, apenas realçar um aspecto que me parece particularmente enganador.

"O processo de Haber-Bosch aparece, também, como vilão ao fim de um século de invenção, com inúmeros e inimagináveis custos ambientais e sociais" (pág. 46).

Se esta afirmação, que surge como contraponto às páginas anteriores em que se explica a importância do desenvolvimento deste processo para o mundo que conhecemos hoje, ainda pode aceitar-se como tecnicamente defensável - é verdade que há um conjunto de problemas ambientais e sociais associados à generalização dos adubos azotados -, já a afirmação seguinte, que traduz mais fielmente a orientação quimiofóbica do ensaio, é bastante mais preocupante.

"É realmente difícil avaliar os custos e benefícios da descoberta de Haber-Bosch. Os problemas associados são tão complexos, as dificuldades em romper com modas sociais são tão elevadas, que a maioria prefere valorizar a componente indirecta, responsável por potenciar as alterações nas emissões de CO2 e do clima, cujos ícones ambientais entraram já no léxico social".

É uma afirmação preocupante por ser largamente consensual nos meios dominantes associados à conservação da natureza e à militância ambiental, tendo o problema de ser uma afirmação completamente fora da realidade: os benefícios positivos da descoberta de Haber-Bosch são de uma ordem de grandeza - é a descoberta que, por si, isoladamente, mais mortes precoces evitou no mundo, desde sempre - e os problemas ambientais e sociais que o seu uso acarreta são de outra ordem de grandeza, incomparavelmente mais pequena.

De outra forma não se compreenderia que tenha sido esta descoberta que permitiu o aumento populacional, e simultânea diminuição da fome no mundo, que conhecemos hoje, porque os tais problemas ambientais anulariam esse efeito claramente conhecido.

Para dar um exemplo concreto: um trabalhador, em Lisboa, por volta do fim do século XIX, gastava 70% do seu rendimento em alimentação, sendo 30% em pão. Ou seja, dos tais 1400 euros líquidos que eu recebo hoje, todos os meses, eu gastaria 980 euros em alimentação, dos quais, 420 euros seriam em pão. A verdade é que eu não devo gastar mais de 30 euros por mês em pão (já estou a admitir uma larga margem em relação aos meus gastos reais), ou seja, mais de dez vezes menos.

Estes são os efeitos positivos da descoberta de Haber-Bosch (e os desenvolvimentos subsequentes na produção de alimentos), que serão muito mais visiveis em países pobres em que a fome era endémica, tendo também diminuído a fome nos países ricos, isto é, aqueles em que a fome não era endémica mas tinha surtos de elevada magnitude, com alguma frequência.

Os seus efeitos negativos existem, são relevantes, merecem a nossa atenção, mas são manifestamente menores, em várias ordem de grandeza (duvido que a poluição por nitratos tenha gerado mortes em larga escala em algum lado e os seus efeitos de longo prazo, relevantes, dificilmente podem ser classificados como catástrofes humanitárias).

Note-se que o livro reflecte bem o pensamento ecológico dominante, não apenas nas franjas marginais, mas em organizações com fortes responsabilidades em processos decisórios que nos afectam a todos, como a Comissão Europeia e os grande fora internacionais, como a Convenção da Diversidade Biológica, onde propostas semelhantes às que constam do livro - um retorno às soluções de base natural, que supostamente estavam implícitas no uso tradicional dos território (o tal que está historicamente associado à fome, convém não esquecer) ideia que ninguém contesta, em si, mas tem o problema de significar coisas muito diferentes para cada uma das pessoas que a subscrevem.

Mais preocupante ainda é verificar-se que a compreensão do que são essas soluções de base natural está ao nível do que transcrevo: "Antes do processo de Haber-Bosch, a produção agrícola estava dependente das reservas naturais de nitrogénio, particularmente Guano, do Peru, e sal amoniacal, do Chile".

Muito anos antes da descoberta do Perú e do Chile, pelos europeus, já a agricultura da Europa existia e era tecnicamente complexa, nomeadamente no que diz respeito aos processos de gestão da fertilidade e ciclagem de nutrientes - um assunto totalmente ausente do livro e central na gestão da produção de alimentos -, e a frase citada deixa muitas dúvidas sobre a profundidade do que é defendido neste ensaio que, repete-se, reflecte muito bem o pensamento dominante na militância ambiental.

O problema principal é que esse pensamento dominante tem vindo a condicionar as sociedades num sentido claramente iliberal, deixando estreitas margens de manobra para a defesa de soluções ambientais de base liberal, assentes na informação, no risco individual e na liberdade de acção dos agentes económicos e sociais, frequentemente entendidos como inimigas das soluções globais, impostas por processos globais de decisão, consideradas necessárias.


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