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Desde há anos, com destaque para os últimos dias em que foi aprovada, anda pelas bocas da Europa uma lei do restauro da natureza (acho graça quando lhe chamam lei da restauração da natureza, em rigor, é admissível, mas na verdade restauro e restauração, embora tenham uma sobreposição de significado, são palavras suficientemente diferentes para tornar cómica a ideia de restauração da natureza).
No tempo em que estava mais envolvido nas discussões sobre conservação da natureza, a posição dominante, a Sul, era a de que restaurar era sempre mais caro que conservar, o que acabava por resultar numa clivagem entre os conservacionistas dos países do Norte e Centro da Europa, que não tendo já grande coisa para conservar insistiam no restauro, e os conservacionistas do Sul da Europa que entendiam que os dinheiros europeus da conservação deviam ser canalizados para conservar o que ainda estava em estado razoável no Sul da Europa, em vez de dissipar recursos em políticas que beneficiavam o infractor, isto é, os que tinham destruído os seus valores naturais.
Pelos vistos, o Sul da Europa (e, em parte, os novos membros de Leste), os grandes hotspots de biodiversidade europeus, perderam essa guerra e passaram a estar do lado dos que defendem políticas de restauro como sendo centrais para a conservação da natureza europeia (estou convencido de que o que fez a balança inclinar-se para a ideia de restauro foi a retórica da emergência, da antecâmara do apocalipse, que tornou credível a ideia de que temos de fazer tudo o que é necessário para parar a perda de biodiversidade, não sendo já possível pensar em conservar, é mesmo necessário obrigar os governos, as empresas e as pessoas a pagar o estrago que está feito, através de políticas de restauro, independentemente do que isso possa significar em afectação de recursos).
Claro que, como acontece quando se acha que legislar é a forma mais eficiente de chegar aos amanhãs que cantam, a lei andou em bolandas e foi sendo burilada em função das pressões e da realidade, pelo que o resultado final parece ser um típico produto da burocracia europeia: grandes proclamações, grandes objectivos, grandes responsabilidades atribuídas aos estados membro da União, e zero de consequências se nada acontecer.
Há um conjunto de objectivos exigentes para 2030, cuja concretização exige a mobilização de toda a sociedade - a gestão do património natural não é uma tarefa do Estado, é o resultado de milhões de decisões individuais das pessoas comuns - e a lei, para conseguir cumprir estes objectivos, acha que o passo mais relevante é que os Estados membro façam um plano nacional de restauro.
Para não cair no ridículo de propôr prazos evidentemente delirantes, a lei diz que esse plano deve estar feito em dois anos, a que se seguem seis meses de apreciação pela burocracia comunitária, as adaptações decorrentes dessa apreciação, de maneira que lá por 2027 Portugal, e os outros estados membros, terão um plano que em três anos, de 2027 a 2030, vai levar o país a atingir objectivos que não conseguiu atingir nos últimos 50 anos de políticas de conservação.
Acontece que esse prazo de dois anos é completamente irrealista para o que a lei exige que o plano tenha, digo eu, no estado catatónico em que está a administração pública na área da conservação e no estado de alienação social que caracteriza hoje o pensamento sobre gestão dos recursos naturais em Portugal (e em grande parte do mundo).
Eu sei que se dirá que está muita coisa feita para trás, e isso é verdade, mas o que está feito para trás é exactamente o que nos levou ao ponto em que estamos, portanto usar o que deu maus resultados como base para ter melhores resultados parece-me um bocado ingénuo.
Mesmo esquecendo esse aspecto de substância, a questão de fundo é que um plano, para ser eficaz, tem de ter clareza estratégica e uma noção muito clara do que é informação que discrimina e do que é palha, coisa para a qual falta pensamento crítico no país.
Quando eu trabalhava em ordenamento do território, o normal era os planos arrastarem-se por meses e meses (quando não anos) de análise de informação, sem que se conseguisse chegar a algum lado, "como o rio de S. Pedro de Moel/ Que se some nas areias em plena praia/ Ali a 10 metros do mar em maré cheia e nunca consegue desaguar de maneira que se possa dizer: porra, finalmente o rio desaguou!".
Não se pense que estou a escrever de cor.
Durante muitos anos, muitas áreas protegidas em Portugal continuavam sem plano de ordenamento, cuja conclusão era prometida amiúde para daí a pouco tempo, "porque já havia muito trabalho feito que agora era só organizar".
Numa dessas vezes, um ministro, Nobre Guedes (foi um excelente ministro do ambiente, apesar da má fama que tem, quer Nobre Guedes como ministro, quer o governo de que fez parte, para o que não terá sido indiferente ter um excelente chefe de gabinete, Adolfo Mesquita Nunes e um excelente secretário de estado, Jorge Moreira da Silva), resolveu prometer que seis meses depois de tomar posse, todas as áreas protegidas teriam plano de ordenamento.
Nessa altura eu fiquei responsável pelo assunto e, com as mesmas pessoas que durante anos não conseguiam acabar planos nenhuns, os planos que faltavam foram todos acabados, o que implicou uma liderança clara e métodos de trabalho orientados para o objectivo pretendido, isto é, tomar decisões com base na informação existente, em vez de passar o tempo à procura da informação necessária para tomar decisões (também ajudou o facto de eu repetir todos os dias que não há pior coisa para rebentar orçamentos e prazos que o "já agora", o principal problema da cultura portuguesa de planeamento, que pretende aproveitar a oportunidade criada por cada novo processo para resolver os problemas do mundo, em vez de se limitar a resolver o problema para o qual foi criado o processo).
Acontece que, na actual conjuntura da administração pública, a probabilidade de ter chefias capazes de fazer isto é baixíssima, pelo que a probabilidade de, dentro de dois anos, ou mesmo até 2030, haver um plano nacional de restauro, é ainda mais baixa.
E esta é apenas a parte mais fácil de aplicação da lei de restauro da natureza agora aprovada.
A velhice, o cinismo e outras coisas que tais concorrem para o meu encolher de ombros perante a "histórica" (não tem conta o número de decisões "históricas" que vi serem tomadas e assim classificadas pelos seus decisores, sem que hoje alguém se lembre delas) decisão de aprovar de lei de restauro da natureza.
Felizmente há luar.
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