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Reserva Agrícola Nacional

por henrique pereira dos santos, em 18.01.25

"contestam que a crise da habitação se resolva com a desafetação de solos de Reserva Agrícola Nacional, tendo em conta que apenas 4% do território nacional é ocupado por solos muito férteis e que a selagem dos solos promoverá uma degradação total e irreversível à escala humana".

Este parágrafo é um dos pontos de uma petição com mais de um ano, contra a medida tomada então pelo governo de António Costa, semelhante à que agora foi tomada pelo governo de Montenegro, com a diferença essencial de que no primeiro caso a passagem de solo rústico a urbano - por um processo centrado nas Assembleias Municipais e não na kafkiana consulta a diversos organismos da administração central em que cada funcionário diz uma coisa diferente - apenas poderia ser usado para promoção pública, e a segunda alarga essa possibilidade a promoção privada (ambas condicionadas quanto ao preço final das casas, na primeira venda, uma espécie de tributo que o vício paga à virtude).

Não sei de onde vem o valor de 4% do território ocupado por solos muito férteis, mas os terrenos muito férteis não podem ser ocupados ao abrigo desta legislação, apenas podem ser ocupados ao abrigo da legislação geral, através do ínvio processo de delimitação da Reserva Agrícola Nacional nos PDM, ou da desafectação de terrenos em concreto, que é o pão nosso de cada dia.

O que sei é que o parágrafo em causa é bem a demonstração da falta de seriedade nestas discussões e da preguiça da imprensa (ou, na hipótese mais caridosa, ignorância) em assuntos com alguma tecnicidade.

Comecemos pelo básico: apesar da sugestão implícita que é feita, a Reserva Agrícola Nacional não ocupa 4% do território, ocupa 16% do território.

Ou seja, a área de RAN, que é sempre descrita pelos que defendem a sacralidade das regras que existem como extremamente rara, corresponde a mais 50% da área ocupada por eucaliptos, que é sistematicamente referida como sendo evidentemente excessiva, às vezes pelos mesmos.

Repare-se agora nesta frase, retirada do relatório do ordenamento do território de 2024: "Na Golegã, Alpiarça, São João da Pesqueira e Mirandela a RAN representava mais de 50% da área municipal". A que se pode acrescentar mais esta informação: "Em 2018, 68% da RAN continental (disponível em formato vetorial) era efetivamente explorada para fins agrícolas. Em São João da Pesqueira, Campo Maior e Golegã a superfície de RAN ocupada por agricultura ultrapassava mesmo os 90%. Por outro lado, o potencial produtivo deste tipo de solos encontrava-se desaproveitado (percentagem de RAN ocupada com agricultura inferior a 25%) em seis municípios (Barrancos, Barreiro, Seixal, Espinho, Almodôvar e Nisa)".

E um vulgar de Lineu pergunta-se: mas é em São João da Pesqueira que se concentram solos férteis de Portugal?

Não, só que há muito que a Reserva Agrícola Nacional deixou de ser o conjunto de solos mais férteis do país, para incluir muitas outras coisas, como os socalcos do Douro, que são agricolamente muito valiosos, mas de férteis têm muito pouco.

É aliás muito curioso ver como a economia resiste à irracionalidade administrativa: em São João da Pesqueira, em que o vinho do Porto paga a gestão, mais de 90% da área de RAN é ocupada agricolamente, mas em Barrancos, em que a pobre agricultura de cereais de sequeiro predomina, menos de 25% dos solos da RAN estão dedicados à agricultura.

Por mais que se grite, se façam regras, petições e manifestações, no fim a economia vai gerir sempre a paisagem, os planos deveriam servir para compreender os processos de gestão da paisagem, permitindo desenhar medidas que os influenciassem no sentido pretendido pelas comunidades, em vez de serem os instrumentos de canalização da incompetência dos técnicos que, por não compreenderem o mundo em que vivem, querem usar a lei e o monopólio da violência legal que caracteriza o Estado, para impor aos outros as paisagens com que sonham.

Por alguma razão Ilídio de Araújo insistia que o mais relevante de um plano era o que sobraria se no dia da sua apresentação um mafarrico qualquer queimasse todos os seus elementos materiais.

E, pelas mesmas razões, há uns quinze anos, escrevi um epitáfio da Reserva Agrícola Nacional, em forma de relatório da sua autópsia.

Daí para cá, só tenho vindo a reforçar as razões que tenho para ficar deprimido de cada vez que acabo a encolver-me no que quer que seja ligado ao absurdo sistema legal e administrativo a que chamam ordenamento do território.


4 comentários

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De lucklucky a 19.01.2025 às 09:33

Não há ordenamento do território há atrofio do território.
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De Carneiro a 19.01.2025 às 23:22

Quando não há um projecto, uma ideia, uma política de longo prazo o desordenamento ou o caos no território é a única colheita possível.


Eu tinha encaminha a compra de uma parcela (parada há 10 anos) com 0,5ha (RAN) para somar a terrenos meus. Nada feito. Abortou o negócio porque está na expectativa que com a nova lei dos solos possa multiplicar o valor 10 ou mais vezes!
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De Anonimo a 20.01.2025 às 09:45

Quem abortou o negócio?
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De Carneiro a 20.01.2025 às 22:58

O meu vizinho, a quem eu queria comprar o campo.

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