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Quando havia Academia...

por João-Afonso Machado, em 29.01.14

A dita «recepção ao caloiro» não era coisa de que se falasse então. Havia, é certo, a obvia curiosidade de conhecer os recém-chegados à Faculdade - sobretudo as recém-chegadas - e umas inofensivas ameaças sobre os horrores da colher de pau; tudo cessava quando as jovens estudantes aceitavam como protector um colega mais velho, que era o que se queria. E depois tudo se processava pacíficamente. Lá para Março, dois meses antes da Queima das Fitas, o bando - uns trinta ou quarenta, oriundos dos mais diversos cursos - juntava-se à noite na cervejaria do costume, onde permanecia mais ou menos tempo, conforme as posses. Seguiam-se as serenatas, debaixo de qualquer desses lares que acolhiam meninas estudantes de fora da cidade, entregues à vigilância das freirinhas. Ninguém via mal nisso, nem mesmo a vizinhança, cantava-se fado, dizia-se poesia e era-se prendado com cestinhos descidos das janelas por cordas, e contendo cerveja, fatias de bolos, recadinhos em papeis espetados em peluches...

É claro, no dia em que se descobriu as saliências na parede por onde alcançar o primeiro andar e foi iniciada a escalada e, de gatas pelo patamar, já havia quem entrasse nas varandas amorosamente abertas pela ala feminina da brincadeira - nada espantou a visão das luzes azuis do carro da polícia aproximando-se velozmente. Foi só o incómodo de saltar abaixo, galgar o muro do quintal e correr e dispersar pelas sucessivas esquinas da rua. A Natureza fora escrupulosamente respeitada: os guardiões da ordem pública contentaram-se com a debandada, porque também eles já tinham passado pelos vinte anos; a rapaziada talvez ainda partisse para a cantoria em outro estabelecimento congénere; as religiosas, refeitas do susto e cumprido o ralhete às suas pupilas, recolhiam à cama; e as pupilas, rezadas em silêncio as devidas pragas às religiosas, à cama se resignavam também, esperançosas no dia seguinte.

A Queima das Fitas, na primeira semana de Maio, constituiria a apoteóse, recheada de acontecimentos interessantes como o "baile de gala", a "sarau cultural" (que rendia sempre uma namorada, vá lá saber-se porquê), o "rali paper" e outras bizarrias obsoletas. Um "queimódromo" era algo de impensável e perfeitamente dispensável segundo os usos da época.

Isto dito, percebe-se o que a "praxe", de que tanto e fala, não é. Não é, minimamente, a emanação do espírito académico de sempre. Não é mais do que uma repugnante e selvática demonstração de estupidez, ordinarice e falta de graça e imaginação.

Qualquer coisa que se baralha entre a prodigalidade de estabelecimentos de ensino superior e, sinceramente, explica em muito o desemprego a que está destinada parte substancial dos estudantes que o frequentam.

No mais, associar a tragédia na Praia do Meco à "praxe", ainda assim parece absurdo e matéria apenas para vender jornais.


3 comentários

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De l.rodrigues a 29.01.2014 às 12:24

Não interessa o que achamos que é ou não é a "verdadeira" praxe. Se os envolvidos acham que era isso que estavam a fazer, e o faziam em nome disso, era, para todos os efeitos práticos, praxe. 
Os estudantes de há 100 anos não reconheceriam como tradicional aquilo que faziam os de 1980, aposto. A praxe, como a própria palavra indica, a prática. 
A prática hoje em dia é o que é, com os resultados que se vêem.
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De tric a 29.01.2014 às 13:39

"No mais, associar a tragédia na Praia do Meco à "praxe", ainda assim parece absurdo e matéria apenas para vender jornais."

.
realmente...
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De Anónimo a 30.01.2014 às 18:44

Estiveram aí mesmo há dias, nesse exacto local da belíssima Praça dos Leões, vestidos com o habitual traje funerário. Os caloiros estavam sentados no chão, fardados com fato de macaco à prisioneiro de côr azul turquesa, não fosse alguém escapar e não se dar logo por ela. Fiquei fascinado com o modo como olham em redor para verem se estão a ser vistos, e com o prazer que emanam em abundância e alta velocidade pelos poros todos por estarem perante uma manada de obedientes, que não estão ali a fazer nada senão a estar ao dispor, já com os olhos num futuro em que poderão, eles mesmos, mimar os outros como agora os mimam a eles. É uma coisa que nem vale a pena discutir, até porque eles já nem capacidade para perceber têm.

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