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Comecemos por uma declaração de interesses.
Conheço o Pedro Bingre do Amaral há um ror de anos e gosto imenso dele, tem graça, deve ter lido mais livros que os que existiam na biblioteca de Alexandria e sabe realmente de teorias económicas relacionadas com a gestão do solo (ainda recentemente, quando me perguntaram o nome de alguém para um debate sobre a recente alteração da lei dos instrumentos de gestão territorial que tem dado origem à histeria sobre a matéria, sugeri exactamente Pedro Bingre).
No dia 10 de Dezembro o Pedro, penso que na sua dupla qualidade de especialista no assunto e presidente da Liga para a Protecção da Natureza, publicou um artigo no Expresso que foi amplamente divulgado, com generalizadas menções à sua qualidade.
Na altura pensei em escrever sobre o assunto e não o fiz, não queria que um comentário meu sobre o assunto fosse entendido como uma fulanização do debate, tanto mais que atribuo mais importância ao Pedro Bingre que ao assunto que o Governo e as oposições acham muito importante, acho mesmo uma alteração pouco relevante de uma legislação que deveria ser extinta.
Mas com a publicação da dita alteração à lei (dizer que uma norma que foi anunciada em Maio, que tem vindo a ser contestada desde essa altura, que foi sujeita a parecer de várias organizações, que foi objecto de artigos como o do Pedro Bingre, foi aprovada sem discussão pública só é possível num país em que o jornalismo é uma treta), a discussão aqueceu, turbinada pela histeria dos defensores de gambuzinos.
Envolvi-me marginalmente na discussão, e outro colega meu, de quem também gosto bastante, esquerdista q.b. e sectário em algumas matérias, de quem verdadeiramente gosto, resolveu dizer, no meio de uma discussão em que faltavam argumentos verificáveis, que o Pedro Bingre já tinha explicado isto e aquilo.
Nessa altura resolvi dizer por que razão acho que Pedro não tem razão nenhuma quando fala destas matérias, de que é, inegavelmente, um grande estudioso que vale a pena ouvir.
É isso este post, um comentário crítico do tal texto do Pedro Bingre, e por isso vai ficar comprido.
Diz o Pedro que "Com esta, medida o legislador pretende enfrentar o renovado problema da habitação, disponibilizando mais terrenos para a construção de casas em solos que até agora se destinavam à agricultura, à floresta e à proteção da Natureza.", mas isto é completamente falso, o legislador pretende aumentar a oferta de solos para urbanização em solos que poderiam destinar-se ao que o Pedro diz, mas também poderiam estar ao abandono e não ter qualquer valor social relevante, serem aquilo que Belmiro de Azevedo dizia que o Público era, um perdócio.
Omitir o facto dos terrenos rústicos terem perdido valor ao longo das últimas décadas, o que é acentuado pelas decisões administrativas que impedem a sua ocupação com usos urbanos, é distorcer toda a discussão, é esquecer que a rigidez da distinção entre terrenos onde se pode construir ou não, distinção essa que depende de decisões administrativas, é uma opção do Estado e é omitir a fonte de inúmeros problemas de gestão de terrenos rústicos (a que administrativamente se retira valor potencial), a fonte da corrupção endémica no sector e uma das fontes de escassez de oferta urbana que atira os valores da habitação para a estratosfera.
Esta é, no entanto, uma distorção relativamente marginal, o problema central da argumentação de Pedro Bingre é outra distorção completamente absurda: "promulgaram o Decreto-Lei n.º 46673, de 29 de novembro, criando a figura dos loteamentos privados ad hoc em solo rústico. Este decreto-lei criou o enquadramento legal para o desordenamento do território dos cinquenta anos seguintes".
O argumento do Pedro de que é o enquadramento legal dos loteamentos privados, que retira o monopólio do loteamento ao Estado, a origem do desordenamento do território nos anos seguintes não tem qualquer base factual ou empírica, quer porque o desordenamento não começa em 1965, quer porque os bidonville parisienses, as favelas brasileiras, os bairros de caniço de Moçambique, etc., etc., etc., não resultam do Decreto-lei 46673 de 29 de Novembro de 1965.
O Pedro defende este argumento da seguinte forma: "Em termos muito simplificados, antes deste decreto-lei de 1965 a expansão urbana processava-se nas seguintes fases. Em primeiro lugar a administração pública traçava o plano do bairro que se pretendia criar, segundo os modelos urbanísticos de cidade clássica, cidade-jardim ou cidade moderna. Seguidamente, adquiria os prédios rústicos necessários para implantar esse novo bairro, emparcelando-os. ... Concluída esta etapa, realizavam-se as obras de infra-estruturação: vias de circulação, saneamento, jardins, etc. ... Assim nasceram bairros lisboetas como Alvalade, Azul, Alvito, Benfica, Campo de Ourique, Restelo, Areeiro, Encarnação, Olivais, etc.".
Esta visão romântica do estado da habitação em Portugal até 1965 é bastante lógica, desde que se omita o essencial: os bairros citados destinavam-se a uma minoria privilegiada (naturalmente, dirá quem, como eu, parte do princípio de que o Estado é um instrumento de repressão nas mãos das classes dominantes), frequentemente com alojamentos sobrelotados (incluindo o sub-arrendamento de quartos, a senhores solteiros ou casais de respeito), continuando o parque habitacional da maioria a não ter electricidade, água, esgotos, jardins e outras infraestruturas, mesmo tratando-se de habitação legalizada, o que ocorria a par do crescimento da urbanização clandestina.
Ao contrário da fábula contada pelo Pedro, não é o decreto-lei que gera os problemas posteriores de desordenamento, falta de qualidade e dificuldade de acesso à habitação, são os problemas da incapacidade do Estado e da economia dar resposta à crise da habitação (ao pé da qual a altual crise da habitação é uma brincadeira de crianças) que obriga o Estado a largar mão do seu monopólio de loteamento urbano que lhe permitia controlar mais valias e escolher que empresários beneficiar ou prejudicar, no acesso aos terrenos onde se podia construir.
O primeiro diploma legal que pretendia dar resposta à crise da habitação (uma crise tão antiga como a humanidade, porque construir é caro e tem retorno longo, isto é, só está ao alcance de quem tem capital acumulado ou consegue pagar o serviço da dívida, seja directamente, seja através de mecanismos de arrendamento) é de 1918 e reproduzo aqui parte do diagnóstico que contém.
Para quem queira perceber bem a imensa omissão que Pedro Bingre faz das condições de habitação em Portugal antes de 1965, pode entreter-se a ler estas mais de 500 páginas, em que os temas da especulação, do investimento preferencial nas casas de mais elevado perfil económico, da escassez dos terrenos urbanizáveis, etc., etc., etc., aparecem vezes sem conta, mesmo sendo uma publicação centrada nas políticas do Estado, demonstrando que nunca foi o DL que permite o loteamento privado a fonte dos problemas, pelo contrário, é a escassez induzida pelo Estado através da classificação do solo em urbano e não urbano (em termos económicos, o grande especulador urbano é o Estado, que induz escassez e faz subir os preços dos solos urbanos, com base em argumentos de duvidosa demonstração na defesa de bens colectivos) que gera ineficiências brutais, a que legislação de arrendamento urbano irracional acrescenta mais uma camada de distorção deste mercado.
É dessa extensa publicação que retiro este parágrafo que destroi, por completo, a ideia romântica de que os problemas do sector da habitação, e consequente desordenamento, resultam da abertura da actividade de loteamento urbano aos privados (acresce que os bairros citados por Pedro Bingre, frequentemente, resultam do investimento público directo, e não do processo económico de produção de habitação e seu enquadramento legal): "Parte integrante do Plano Intercalar de Fomento (para 1965 ‑1967), elaborado por um «grupo de trabalho adstrito ao Secretariado Técnico da Presidência do Conselho» 52, no qual se encontravam Nuno Teotónio Pereira e João Braula Reis enquanto representantes das «principais entidades responsáveis pela actividade do sector público na construção de casas de habitação» 53, esse capítulo, que teve como relator o vice ‑presidente das HE Rafael Santos Costa, permitiu traçar um quadro de carências no domínio e «propor algumas medidas tendentes a encetar um processo de solução para os graves problemas que lhes [estavam] na base» (Pereira, 1969)".
Pois é, é longa, muito longa a história da crise da habitação, é uma história rica, com presença forte do Estado, o grande especulador, acompanhada sistematicamente do estribilho contra os especuladores, que nunca ninguém consegue encontrar (especular em sectores de capital intensivo e retorno longo é para quem tem muito capital, não para os pequenos empresários de um país com falta de capital há anos e anos).
Mais economia e menos histeria, isso sim, seria um grande contributo para melhorar o acesso à habitação para todos.
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