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Os incêndios e a propriedade

por henrique pereira dos santos, em 25.07.22

"A maneira como têm sido enfrentados pelos sectores responsáveis do Ministério de Agricultura e Pescas os problemas dos fogos florestais ... convence-nos de que o País está a ser governado efectivamente por bandos de contabilistas ou econometristas da "macroeconomia", completamente ignorantes da Economia Política (como arte integradora de todas as microeconomias de um país - que mostram desconhecer por completo)". Ilídio de Araújo, em 2005, do livro "Arquitectura Paisagista ou "A organização do espaço" nas paisagens", página 71.

Como em qualquer grupo profissional, há variações relevantes de pontos de vista, e na minha profissão de arquitecto paisagista, mesmo no primeiro grupo de profissionais, conhecidos pela sua coesão, há variações muito relevantes de discurso e, em especial, do discurso público.

Note-se que Ilídio de Araújo põe a tónica nos sistemas agrícolas e florestais como condicionantes da estruturação das paisagens (di-lo explicitamente no parágrafo que antecede este, no livro), no que representa uma visão diametralmente oposta à de muitos outros paisagistas que pretendem condicionar os sistemas agrícolas e florestais como forma de estruturar paisagens.

Parece-me um bom ponto de partida para escrever sobre o cada vez mais presente problema da estruturação fundiária como condição prévia à gestão do fogo, problema sobre o qual tenho uma posição mais que ultra-minoritária, na medida em que mesmo nas pessoas cujas opiniões sigo habitualmente em matéria de fogos, verifico que há divergência neste ponto (o outro é o das ignições, sobre as quais talvez venha a fazer um post).

Este ano constatei que a discussão sobre fogos continua a sua melhoria, são já raros os discursos trogloditas sobre incendiários (é verdade que este ano as coisas correram melhor que o esperado, em parte porque se exagerou no esperado, desvalorizando a relativa amenidade do vento, parece-me) e são muitos e variados os discursos mais estruturados sobre fogos e gestão da paisagem.

Estou tentado a dizer que o discurso da valorização da gestão florestal foi este ano mais forte, mais audível e mais consensual que em anos anteriores, o que acho muito bom.

O problema é a forma como estamos, mais uma vez, a desviar a discussão para sintomas, esquecendo a doença.

Um bom exemplo é o facto de do excelente artigo de Luís Aguiar-Conraria no Expresso desta semana - fica-me mal dizer isto, eu sei, porque o artigo tem umas referências muito simpáticas ao que tenho escrito - o Expresso ter escolhido destacar "O rastreamento das propriedades rurais e legislação que facilite partilhas de heranças indivisas é crucial". Sim, isso está escrito no artigo, mas é um parágrafo final de reforço da ideia de olhar para a economia associada à gestão do fogo, em que Luis Aguiar-Conraria diz que para haver valor económico é preciso que os direitos de propriedade estejam bem definidos, está muito longe de ser o essencial do artigo.

Da mesma forma, há dias, o Público destacava da entrevista de Tiago Oliveira a sua insistência na necessidade de alterar o direito sucessório.

E António Costa quando resolveu falar da questão da valorização da gestão florestal, imediatamente se meteu pelo atalho do registo de propriedades e afins.

Não vale a pena citar pela enésima vez o presidente de junta que diz que quando quer saber de quem é um terreno põe uma placa a dizer vende-se, com o seu número de telefone, e diz que nunca passou mais de uma semana que não recebesse um telefonema a perguntar a que propósito estava a vender um terreno que não era dele.

Vamos admitir que há de facto um problema de competitividade do sector ligado à dimensão da propriedade.

A ser assim, o normal seria ter as propriedades bem geridas, desde que tivessem a dimensão adequada.

Não é o que se verifica, em que há milhares de médias e grandes propriedades não geridas ou geridas com muito baixa intensidade, numa lógica mais extractiva que de verdadeira gestão.

Acresce que a maior parte do Valor Acrescentado Bruto Florestal do país vem das zonas de minifundio. Não porque exista qualquer relação entre pequena propriedade e maior rentabilidade, mas apenas porque existe uma relação estreita entre produtividade e dimensão média das propriedades.

Ainda que estes dois argumentos não sejam verdadeiros, o facto é que mexer no direito sucessório ou entrar em processos de reestruturação fundiária, como condição prévia de competitividade da gestão, ainda que esteja certo - eu acho que não está, independentemente de haver alguns modelos rentáveis que só são viáveis em propriedades com alguma dimensão, mas também com outras características que são condição sine qua non para esses modelos serm exequíveis e competitivos - vai demorar tempos infindos a dar qualquer resultado na gestão dos combustíveis finos.

No fundo, pretende-se que seja o Estado a impulsionar um processo de agregação da propriedade quando as pessoas não estão interessadas no assunto. É exactamente o mesmo tipo de equívoco que fez com que o Estado andasse anos em programas de reabilitação dos centros históricos das cidades, e o problema se tenha alterado muitíssimo assim que o alojamento local passou a ser uma actividade com interesse para os proprietários.

O facto de não haver um mercado de terreno digno desse nome para as terras marginais, ao ponto de haver muitas terras de que os donos não conhecem os limites, prende-se com o problema da criação de valor: se não há criação de valor que pague a gestão e remunere o trabalho e o capital, não há interesse em transações de propriedade - o que é agravado pelos custos de transação que o Estado impõe nestas transações e de que poderia prescindir de imediato, sem grandes efeitos negativos.

Por tudo isto, vou insistir: precisamos de pagar já a gestão de combustíveis finos, sem estar à espera do grandes programas de reestruturação fundiária que, tarde ou cedo, serão anunciados.

Felizmente já houve quem fizesse sugestões para tornar mais simples ainda esse pagamento, envolvendo as organizações de produtores florestais e, quando tiver tempo, vou actualizar as propostas que tenho feito nesse sentido.

Como diria Ilídio de Araújo, são as condicionantes destes sistemas que estruturam paisagens, não é o condicionamento destes sistemas que estrutura paisagens.


12 comentários

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De balio a 25.07.2022 às 15:46


há dias, o Público destacava da entrevista de Tiago Oliveira a sua insistência na necessidade de alterar o direito sucessório


Isto não é verdade somente para a gestão das propriedades rurais, é-o também para a gestão das propriedades urbanas.


Há incontáveis propriedades urbanas em Portugal que não são adequadamente geridas porque pertencem a heranças indivisas, com os herdeiros sem se entenderem sobre o que fazer com elas.


Eu conheço, por exemplo, uma família que tem uma casa de férias em péssimo estado numa praia perto de Lisboa. Embora alguns membros da família ainda consigam utilizar a casa para nela passar férias, os membros da família não se entendem quanto a investir dinheiro para pôr a casa em bom estado.


E não é só um problema de heranças indivisas. É também um problema de condomínios. Em Portugal incentivou-se a formação de propriedade horizontal, vulgo condomínios, o que é (em minha opinião) um erro muito grande, porque a prazo os condóminos acabarão por não se entender sobre o que fazer com o seu condomínio cada vez mais deteriorado.
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De balio a 25.07.2022 às 15:54

Vamos admitir que há de facto um problema de competitividade do sector ligado à dimensão da propriedade.
A ser assim, o normal seria ter as propriedades bem geridas, desde que tivessem a dimensão adequada.


Não, porque ter as propriedades bem dimensionadas, isto é, suficientemente grandes, é uma condição necessária, mas não suficiente, para ter as propriedades bem geridas.


Ou seja, não é por uma propriedade ser grande que ela será, automaticamente, economicamente rentável e, portanto, ativamente gerida. Porém, se a propriedade fôr demasiadamente pequena, então certamente que ela não será economicamente rentável e será, portanto, mal gerida.



Ou seja: é preciso aumentar a dimensão das propriedades, porém, isso não será suficiente.


(Eu sou proprietário de muitas propriedade muito pequenas e, como tal, conheço bem até que ponto é deseconómico gerir propriedades assim.)
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De antonio ramos a 31.07.2022 às 08:53

Ó homem, venda essas propriedades pequenas não rentáveis. Seja coerente!
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De balio a 31.07.2022 às 11:50

Sou coerente: já vendi a maior parte das propriedades mito pequenas e não rentáveis que herdei. As que ainda mantenho não me dão prejuízo.
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De Manuel da Rocha a 25.07.2022 às 19:24

O maior problema é mesmo a burocracia. 
O meu avô tinha 2 pinhais, uma casa e 2 "cortes", numa pequena aldeia perto da Guarda. Quando faleceu, a minha mãe tratou de tudo (desde o obter as escrituras de 1911, do pai do meu avô) para passar os terrenos e a casa para nome dela. Por entre pedidos de informações, de documentos, passaram-se 18 anos. No ano de 2014, um empresário, obteve as 2 cortes clamando o usocapião. Como quando lá vamos só se passa pela casa, as cortes ficam numa ponta da aldeia, não se ia lá. Quando a minha mãe faleceu, voltei aos registos e finanças, o processo dela continuava pendente de algo que ninguém sabia (conselho foi procurar um advogado, dado pelos funcionários das finanças locais). No entanto, lá me disseram que os 2 terrenos tinham sido "transferidos" para outra pessoa. É que ao cabo de 3 anos, sem contestar, o empresário pode construir 11 casas, em 9 terrenos, que não eram dele, sem pagar 1 cêntimo, para turismo rural. O pinhal e a casa, fui a um advogado que me pediu 75000 euros para tratar da legalização e permitir que fizesse os registos. Ora a casa está avaliada em 600 euros (não tem água canalizada, o acesso aos esgotos não é possível sem um grande investimento), o pinhal em 175 euros. Não posso estar a pagar para algo que nem 1% disso vale no mercado. É por isso que há tanto terreno ao abandono e alguns, espertos e com capital disponível, aproveitam. 
Infelizmente nada disso irá mudar, a não ser que exista uma via directa para tratar das heranças e evitar as burocracias, nalguns casos, que nem os funcionários do estado sabem qual é o problema e enviam para as partes jurídicas para tratar. 
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De Anónimo a 25.07.2022 às 22:11

Esta história, sendo verdadeira, algo que não duvido, devia ter como consequência o despedimento, por justa causa, de todo o funcionário público que teve este processo nas suas mãos. Desconfio que nem Kafka teria capacidade para imaginar tal cenário. 
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De pitosga a 27.07.2022 às 11:49


Manuel da Rocha,
O maior problema — por aqui pelo menos — está no tipo de Leça.
Que até abusa de conhecer HP dos Santos.

Cumprimenta
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De Anónimo a 25.07.2022 às 20:45

Caro HPS,
Espero que venha a fazer  o tal apontamento sobre as ignições. Estimaria ter estatísticas sobre as que ocorrem de dia e as nocturnas, para o último decénio ao menos; e, quanto às "naturais", também apreciaria que nos dissesse quais são as principalmente relevantes.
Obrigado.
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De henrique pereira dos santos a 26.07.2022 às 07:19

O meu post vai ser sobre outra matéria, mas sobre o que pergunta tem aqui muitos posts
ambio: Resultados da pesquisa para ignições
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De António Sousa Leite a 27.07.2022 às 14:02

Para os casos em que o problema esteja efectivamente na propriedade a maior ajuda do Estado seria aquilo que o Henrique Pereira dos Santos há muito sugere, que é eliminar os custos administrativos na transmissão de prédios rústicos, pelo menos aqueles sem valor qualquer fundiário (e caberia ao Estado comprovar o valor e não ao proprietário a sua ausência...). Mas mesmo aí, a questão da gestão pode ser contornada com arrendamentos rurais ou florestais, e não o é por falta de interessados.


Quanto aos prédios indivisos, tem de ser facilitada a livre resolução das coisas, mas tudo se encaminha para a coerção... Não há razão para que não seja possível os primos que vivem cada um para o seu canto fazerem a transmissão do seu quinhão de forma simplificada via Portal das Finanças ou, se quisermos, Cartão de Cidadão. Nem que não haja um prazo ao fim do qual as decisões possam ser tomadas por maioria simples, como em qualquer sociedade. E, já agora, mais uma vez, sem ou com baixos custos administrativos, porque suspeito que o custo e o prazo de um processo de divisão de coisa comum ou de partilhas sejam a principal razão para que estes não ocorram.


O BUPI foi, a meu ver, uma boa ideia, apesar de por si só não resolver nada, mas não percebo a forma como foi realizado:
-Sem ter como base o parcelário do IFAP, que já está construído, e poderia ter a camada das parcelas dividida em exploração e propriedade e ser depois corrigida;
-Sem gente no terreno;
-Com uma plataforma rudimentar;
-Com um processo de autenticação kafkiano.


Mas nada disto resolve o problema de base, que é o facto de a terra não dar dinheiro.
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De JPT a 27.07.2022 às 14:24

Na linha do primeiro comentador eu acrescentaria que o "rastreamento das propriedades [urbanas] e legislação que facilite partilhas de heranças [e patrimónios conjugais] indivisas é crucial". Grande parte do edificado em ruínas nas nossas cidades, deve-se a infindáveis partilhas, que apenas são um passatempo nacional porque os interessados não são sancionados (em tempo útil ou valor bastante) pelos danos que isso causa a terceiros e à comunidade.
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De Anónimo a 29.07.2022 às 09:36

O problema é o Estado. Esse morcão socialista que não deixa nada incolume, quer se meter em tudo e receber por tudo. Não fazendo nada para merecer isso!

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