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"Onde a ralé do império se misturava com a realeza"

por henrique pereira dos santos, em 20.09.23

O título deste post é uma auto-citação (um dos cúmulos da possidoneira) de um comentário meu, num post meu, já velhinho (12 de Maio de 2009, mais de catorze anos).

Vem isto a propósito de eu me meter sempre em qualquer conversa sobre o Terreiro do Paço, "uma ruína funcional" (mais auto-citação), provavelmente o espaço de circulação mais caro e inútil do país (apesar dos esforços de Siza Vieira para levar os Aliados, no Porto, pelo mesmo caminho, ao ponto de se zangar publicamente com a câmara por pôr bancos nos passeios).

Como já escrevi o que penso naquele post com quase catorze anos e, hoje, ao lê-lo, concordei com ele (não é assim tão frequente eu manter uma opinião por mais de dez anos, acontece, mas não é o mais frequente), vou poupar muito espaço neste post, sugerindo a quem esteja interessado que o vá ler, bem como à discussão que se segue nos comentários.

É nesses comentários que acabo por escrever:

"Repare que quando Siza Vieira desenha os Terraços do Duque, respeita a envolvente mas não a mumifica. Repare que quando o Távora redesenha Santa Marinha não mumifica o pré-existente, que tornaria inviáveis as novas funções. Quando Souto Moura pega na Alfândega do Porto não diz que o projectista inicial queria que fosse uma alfândega e reinventa a sua funcionalidade (e, necessariamente, as soluções formais). Quando o Carrilho da Graça refaz a pousada da Flor da Rosa não anda a brincar às funcões originais e às intenções originais e reinventa um edifício para lhe dar a função que se pretende.
O que acontece com frequência é que as escolas de arquitectura em Portugal (e como todas as generalizações esta deve ser lida com as limitações de uma generalização, que tem, claro, muitas excepções) olham para o espaço exterior público como púlpitos para o edificado e não como aquilo que verdadeiramente são: espaços das pessoas (a trienal de arquitectura até foi subordinada ao conceito extraordinário de vazio urbano, que é uma coisa que não existe). Como lhes falta a capacidade técnica para trabalhar materiais que não dominam (e não têm de dominar, porque não é o seu métier), têm dificuldades em reinventar o espaço público em função das novas funções que lhes cabem, como fazem, e muitas vezes bem, com os edifícios.
E é este o problema do Terreiro do Paço."

O Terreiro do Paço é o resultado de várias operações urbanísticas ao longo do tempo, a principal das quais seria hoje impensável e manifestamente chumbada por razões ambientais: o aterro da foz da ribeira que tinha como afluentes a ribeira de Valverde (hoje, Avenida da Liberdade) e a ribeira cujo nome desconheço, e que é hoje a Almirante Reis.

Não sei, nunca estudei o assunto, é um mero "uneducated guess", mas é possível que a opção urbana de aterrar a foz da ribeira e ocupar os leitos de cheia seja uma das principais responsáveis pelo caracter destrutivo do maremoto de 1755, que foi impedido de entrar, como seria o caso na topografia original, pela ribeira adentro, e respectivos leitos de cheia, com muito menor efeito destrutivo na cidade que, nesse caso, estaria nas encostas. A ser assim, é uma lição útil: todas as opções de ocupação do território têm custos, mas é bem possível que os custos de algumas dessas opções, por muito altos que sejam (como foram e provavelmente serão no futuro), são largamente compensados pelos proveitos quotidianos de ter a cidade como ela é, respondendo às necessidades quotidianas das pessoas que nelas vivem, mesmo que isso implique opções que se podem revelar desastrosas em circunstâncias extremas.

O problema central é que há quem olhe para as fachadas do Terreiro do Paço e veja a fachada exterior dos edifícios quando na verdade elas são a parede interior de um espaço que deveria servir as pessoas comuns e as funções actuais que se queiram dar aos quatro hectares do terreiro que servia um dos maiores portos do mundo, com o que isso significava de movimento, sujidade, mistura social, barulho, comércio, representação do poder, etc..

Infelizmente, disso tudo sobra a representação do poder e um espaço de circulação horrivelmente desconfortável.

Já era tempo de democratizar o Terreiro do Paço e devolvê-lo ao quotidiano das pessoas comuns.


23 comentários

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De balio a 20.09.2023 às 09:43


um espaço que deveria servir as pessoas comuns e as funções actuais que se queiram dar aos quatro hectares do terreiro


Parece-me em todo o caso um bocado difícil ocupar aqueles quatro hectares.


Duvido que árvores de algum porte e que façam sombra ali possam crescer, dada a ocupação do subsolo.


E, sem árvores nem sombra, nunca ninguém quererá ali estar.
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De henrique pereira dos santos a 20.09.2023 às 09:49

Não consigo entender como nunca te contrataram para dar aulas de projecto e construção de jardins
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De balio a 20.09.2023 às 10:07


Não é possível haver um jardim para as pessoas estarem no Terreiro do Paço sem que lá hajam árvores de grande porte que façam sombra. E, dado que as águas subterrâneas devem ser salobras e devem estar muito perto da superfície, não estou bem a ver como podem árvores de grande porte crescer ali. A maior parte das árvores (há exceções) não gostam de ter as raízes no meio da água, creio eu. Muito menos de água com teor de sal.
Vai-se a ver e quem tinha razão era o João Soares: a melhor utilização que se pode dar ao Terreiro do Paço é como parque de estacionamento.
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De henrique pereira dos santos a 20.09.2023 às 11:00

Achas que sim?
Já ouviste falar em latadas, pérgolas e afins? Já ouviste falar de estruturas artificiais para a criação de sombra? Já ouviste falar em processos de escavação e substituição de solo, com estruturas de contenção para evitar a salinização? Já ouviste falar em laranjais, com árvores de pequeno porte, que permitem criar sombra desde que a densidade seja suficiente?
Etc., etc., etc..
Já agora, o Terreiro do Paço já teve árvores, mas como não as informaste dessas coisas todas, não morreram.
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De balio a 20.09.2023 às 11:11


o Terreiro do Paço já teve árvores


Eu sei, já vi fotografias, mas eram árvores esparsas, de pequeno porte e que pouca sombra fariam.

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