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O princípio da responsabilidade

por henrique pereira dos santos, em 25.07.21

Artigo 16º do Código do Procedimento Administrativo: Princípio da responsabilidade - A Administração Pública responde, nos termos da lei, pelos danos causados no exercício da sua atividade.

Já num post anterior citei este artigo do código do procedimento administrativo que é um princípio que nem sempre esteve consagrado na lei, em especial com esta clareza e neste código.

Ao fim de muitos, muitos anos, o mesmo Estado que mantém tribunais especiais para administrar a justiça administrativa - como se o Estado vivesse num mundo de regras tão específico e diferente que os tribunais que servem para as pessoas e instituições normais não fossem capazes de lidar com a administração da justiça que resulta da actividade do Estado (eu compreendo, as quatro alterações contratuais que o Estado determinou unilateralmente em relação ao contrato que tinha comigo, jamais seriam aceites num tribunal do trabalho, e jamais seriam postas em causa no tribunal administrativo, por exemplo) - reconhece que tem uma responsabilidade concreta nos prejuízos que cause a terceiros.

Note-se que fora da bolha do Estado, é assim há muito tempo: se um médido for negligente, é responsável pelas consequências dos seus actos, por exemplo.

Bem sei que existem muitos matizes nesta responsabilidade para com terceiros, por exemplo, no caso do médico, se as coisas correrem mal, mas o médico tiver adoptado todos os procedimentos que seria normal adoptar, ele não é responsável pelas consequências das coisas terem corrido mal; no caso de um técnico de fogo controlado, ele é sempre responsável pelas consequências de um fogo controlado, mesmo que tenha feito tudo bem e um factor externo tenha dado origem a um problema; no caso dos juízes, e bem, são completamente irresponsáveis pelas consequências das suas decisões.

É pois preciso muito cuidado na aplicação deste princípio (ao ponto da responsabilidade do técnico de fogo controlado, por exemplo, dever ser restringida ao que depende do técnico, como acontece em alguns países, e não ser uma responsabilidade sem limite, que engloba circunstâncias incontroláveis pelo responsável pela acção).

Olhemos para um exemplo prático de como ainda não estamos sequer na discussão do melhor equilíbrio social na responsabilização do Estado e dos seus agentes (nos quais me incluo, fica feita a declaração de interesses), estamos ainda num ponto em que a lei diz uma coisa e na prática a teoria é outra.

Aqui a atrasado, o Governo decidiu fazer uma cerca sanitária que não era uma cerca sanitária (a influência de Magritte na prática administrativa portuguesa só tem comparação na influência de Kafka, devemos ter a prática administrativa intelectualmente mais estimulante do mundo) a Lisboa, para controlar a difusão da variante delta do vírus sarscov2.

A fundamentação das decisões que foram tomadas é desconhecida:

1) Não se faz ideia de como uma cerca sanitária a um terço da população portuguesa conseguia conter uma variante de um vírus que está presente em quase todo o mundo;

2) Não se faz ideia de como uma cerca sanitária intermitente tem algum efeito numa doença contagiosa, não tenho ideia de haver algum precedente mundial desse tipo:

3) Não se faz ideia de como se consegue pôr um prática uma cerca sanitária deste tipo sem recursos repressivos várias vezes superiores aos existentes.

Passado pouco tempo, não me lembro se duas, três ou quatro semanas, o Governo disse que afinal já não valia a pena fazer cerca nenhuma porque a tal variante delta já estava em todo o lado (já estava antes da cerca e seria mais que previsível que a cerca não tivesse efeito nenhum na difusão da dita variante).

Mas, e aqui está o busílis da questão, no entretanto esta decisão, não fundamentada, absurda e sem qualquer efeito real no que se pretendia fazer (controlar regionalmente a difusão de uma variante que tem uma difusão mundial crescente), afectou negativamente milhares de pessoas e milhares de empresas.

Imaginemos então que uma dessas pessoas pretendia invocar o princípio da responsabilidade do Estado para pedir uma indemnização (saltemos por cima do facto de um pedido desses ir ser decidido pelo tal tribunal mais ou menos privativo do Estado).

1) Quem tomou a decisão. Foi o Governo. Por proposta de quem? Não sabemos;

2) Onde está a proposta sobre a qual o governo decidiu, qual é a sua materialidade? Não sabemos;

3) Se de repente houver acesso à proposta material sobre a qual foram sendo feitos despachos concreto, com nomes, datas e fundamentação, qual foi a fundamentação invocada na proposta? Não sabemos;

4) Imaginemos que sabemos tudo que antes eu disse que não sabemos. Precisamos agora de saber que avaliação dos efeitos da medida foi feita para que fosse revogada? Não sabemos;

5) Imaginemos que foi feita uma avaliação, que está materializada em documentos concretos e acessíveis ao queixoso, a avaliação feita permite distinguir o que realmente foram boas práticas do que foram imponderáveis que estão para lá da responsabilidade do decisor? Não sabemos.

E assim sucessivamente.

É por isso que não tenho ponta de optimismo em relação ao país: o que seria normal - o escrutínio de medidas administrativas tremendistas com evidentes efeitos negativo na vida de milhares de pessoas - é simplesmente anormal em Portugal, quer por parte da administração, quer por parte dos jornalistas, quer por parte das oposições, quer por parte das organizações representativas dos interesses em presença, isto é, por parte de nós.

As nossas instituições são más, agem frequentemente fora da lei - isto vai ser assim, diga o que disser a constituição não foi uma frase dita por um taxista irritado, foi dita pelo primeiro ministro em pleno uso das suas faculdades e sem qualquer pressão relevante que o levasse a dizer tolices sem pensar - mas são as instituições que queremos e de que gostamos, porque com os amigos certos ou no momento certo, uma palavrinha vai com certeza resolver o nosso problema concreto.

Eu, por exemplo, limitei-me a sair um dia mais cedo de Lisboa, pagando mais uma noite, para fazer umas férias com os meus filhos e netos.

Se isto tudo fosse para levar a sério, eu não teria estado em férias com os meus filhos e netos, e isso, para cada um de nós, acaba por contar muito mais que abstracções como o princípio da responsabilidade do Estado no exercício da actividade administrativa.


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