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Ontem foi a vez de Irene Pimentel fazer a defesa do regime no Público, procurando evitar que se discutam seriamente as razões da convergência com os países desenvolvidos entre meados dos anos 50 e meados dos anos setenta, durante a ditadura, e a estagnação dos últimos vinte anos, durante a democracia.
Irene Pimentel avisa logo que jamais deixará que os factos influenciem as suas ideias "não me proponho rebater uma argumentação baseada na sacralização dos números".
E depois entretém-se na demonstração do que acabei de escrever.
"Qualquer historiador sabe que não é "fazer história" abordar apenas aspectos económicos, sem os interpretar, contextualizar e comparar ... E na ditadura portuguesa, têm de ser referidos, pelo menos, os aspectos repressivos (censura, PIDE), a ausência de Estado social, a emigração, os salários de fome, a miséria e a guerra colonial.
...
para caracterizar qualquer regime do passado, é benéfico utilizar a comparação histórica. Mas é melhor, por exemplo, comparar dados económicos no longo período ditatorial com outros países da Europa no mesmo período."
Sendo a origem da discussão exactamente o facto de Nuno Palma dizer que a vulgata historiográfica que é passada à sociedade, nomeadamente nos livros escolares, não faz essas comparações de forma correcta, usando Nuno Palma a solidamente estabelecida convergência económica que referi acima e a evolução no ensino, como exemplos de como a ideologia se tem sobreposto ao conhecimento na análise da evolução do país, seria de esperar que Irene Pimentel, depois de se colocar no mesmo plano metodológico, explicasse os erros de Nuno Palma na caracterização da evolução de Portugal quando comparada com o resto do mundo.
"Para só falar da mortalidade infantil, compará-los entre os anos 30 e 70 do século XX, em Portugal pouco traz ... a não ser que obviamente diminuiu em 42 anos. Em 1930, 143,6 bebés até um ano por cada mil morriam em Portugal, ..., e 55,5 por mil em 1970. Ora, neste último ano, a média da mortalidade infantil da UE (a 27) era menos de metade do que em Portugal: 25 por mil".
Certo, Irene, mas e qual era o ponto de partida em 1930 da UE a 27, para que nós, pobres ignaros, possamos saber se convergimos ou divergimos ou, para usar as suas palavras, não seria "melhor, por exemplo, comparar dados económicos no longo período ditatorial com outros países da Europa no mesmo período"?
"Compare-se também os valores da mobilidade social, da redistribuição da riqueza, do analfabetismo, da emigração".
Cara Irene, mas é exactamente essa comparação que tem sido feita pela historiografia que Nuno Palma refere como sendo deturpada no discurso social sobre o Estado Novo, incluindo nos programas escolares, comparação que Irene Pimentel não pode deixar de conhecer e que omite totalmente, tornando o seu artigo numa comédia de enganos.
E é neste ponto que a minha cabeça fez a ponte para a invocação da ciência a propósito da epidemia.
Deixemos de lado a palavra ciência, e usemos academia, a elite que investiga e pensa de forma institucionalmente estabelecida, para evitar a discussão sobre o carácter científico ou não das ciências sociais.
O que a polémica sobre a intervenção de Nuno Palma demonstra é que a academia instalada é tão permeável ao viés ideológico como qualquer outro grupo social, na enésima demonstração desta citação de Max Planck que uso frequentemente e de que tomei conhecimento, via Carlos da Câmara, a propósito de fogos: “A new scientific truth does not triumph by convincing its opponents and making them see the light, but rather because its opponents eventually die, and a new generation grows up that is familiar with it.”
Como me parece claro - embora o óbvio seja uma coisa muito subjectiva - as medidas de gestão da epidemia, e mesmo a interpretação das variações de incidência da epidemia, dificilmente mudarão nos próximos tempos, não por estarem certas ou erradas - um ano e meio depois do seu início não existe uma única demonstração científica sólida, baseada em dados reais, que consiga estabelecer uma correspondência sólida entre medidas não farmacêuticas e taxas de incidência da covid - mas simplesmente porque quer os investigadores mais expostos publicamente, quer o poder instituído, não podem simplesmente reconhecer, agora, que realmente não controlam epidemia nenhuma e as incidências que se vão verificando, se influenciadas pelas horas a que se vendem bebidas alcoólicas ou se fecham restaurantes, são-no marginalmente, não são um factor essencial de evolução da incidência da epidemia.
As consequências disto para a forma como o poder vai gerindo politicamente este assunto compreende-se melhor a partir do Príncipe, de Maquiavel, um arguto analista da natureza do poder, embora, claro, seja sempre difícil compreender o chorrilho de disparates regulamentares de compressão das liberdades públicas que estão a ocorrer, porque não é possível compreender as decisões num manicómio em auto-gestão.
Quando se argumenta que o facto de todos os países em todo o mundo terem adoptado o mesmo tipo de medidas é uma demonstração de que com certeza essas opções serão as mais razoáveis, argumenta-se com base na falácia de que as medidas, por serem todas não farmacêuticas, são semelhantes, o que está longe de ser verdade.
No entanto, a verdadeira objecção a este argumento é que o que faz todos os governos convergirem para o mesmo tipo de medidas é a natureza do poder, não é o consenso sobre a epidemia, que simplesmente não existe.
Por isso é que Maquiavel é útil para compreender o que se está a passar.
O poder sabe que uma epidemia é essencialmente um processo social guiado pelo medo, portanto é a gestão do medo que é relevante politicamente - os aspectos de saúde associados à epidemia acabam por ser marginais, no processo social, pela simples razão de que são largamente não controláveis sem medidas farmacêuticas eficazes, tratamentos e vacinas, sobretudo.
"cada príncipe deve desejar ser tido como piedoso e não como cruel", diz Maquiavel e é esta ideia que é o centro das opções: cada governo foge como o Diabo da cruz de ser acusado de ser cruel e não ligar ao valor da vida humana, fazendo tudo o que estiver ao seu alcance para se mostrar piedoso.
Todos os governos fazem a pergunta mais conhecida de Maquiavel e conhecem a resposta à pergunta: "se é melhor ser amado que temido ou o contrário. A resposta é de que seria necessário ser uma coisa e outra; mas, como é difícil reuni-las, em tendo que faltar uma das duas é muito mais seguro ser temido do que amado", o que naturalmente implica, em caso de dúvida, que os governos prefiram estabelecer confinamentos, por impopulares que sejam, evitando o risco da evolução da epidemia os colocar na posição de ter de responder à acusação de falta de sensibilidade social perante o número crescente de mortos que venha a ocorrer.
A questão central é que mesmo que os confinamentos sejam ineficazes, e as mortes venham a ocorrer, como abundantemente aconteceu neste ano e meio e aconteceria sempre em qualquer epidemia com estas características, é possível responsabilizar terceiros pelo incumprimento das regras, mas não há forma de escapar politicamente à responsabilização política quando não foram tomadas medidas que a imprensa considere necessárias.
"Isso porque dos homens pode-se dizer, geralmente, que são ingratos, volúveis, simuladores, tementes do perigo, ambiciosos de ganho; e, enquanto lhes fizeres bem, são todos teus, oferecem-te o próprio sangue, os bens, a vida, os filhos, desde que, como se disse acima, a necessidade esteja longe de ti; quando esta se avizinha, porém, revoltam-se".
Ou, de forma mais clara:
"que o príncipe pense (como acima se disse em parte) em fugir àquelas circunstâncias que possam torná-lo odioso e desprezível; sempre que assim proceder, terá cumprido o que lhe compete e não encontrará perigo algum nos outros defeitos".
Em verdade, em verdade vos digo, todas estas medidas e contra-medidas que se vão tomando por estes dias para controlar uma doença que não está a provocar nenhuma pressão relevante sobre a prestação de cuidados de saúde, nem nenhum aumento expressivo de mortalidade, não têm qualquer relação com a ciência, com a saúde ou com a razoabilidade, decorrem apenas da natureza do poder e do medo instalado na sociedade, que a torna receptiva à compressão das liberdades públicas ao ponto de permitir que o Estado defina como se organizam reuniões familiares, produzindo mesmo certificados que me permitam estar com os meus filhos e netos todos juntos sem que o aparelho repressivo do Estado se possa abater sobre mim.
Tal como a polémica sobre as questões levantadas por Nuno Palma não tem nenhuma relevância académica - todos estão de acordo com os factos que enunciou - prende-se apenas com o controlo político da memória colectiva, que tem estado nas mãos dos donos do regime como instrumento que lhes permite fugir à discussão sobre a sua responsabilidade no Estado a que chegámos.
Niccolò Machiavelli:
1. O melhor método para estimar a inteligência de um chefe é ver de que homens ele se rodeia.2. É melhor actuar e arrepender-se do que não actuar e lamentar.
3. A multidão vulgar é sempre conduzida pelas aparências e o mundo consiste sobretudo de vulgares.
Abraço
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Acho que não percebeu a substancia do texto...