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O predador e a presa

por henrique pereira dos santos, em 23.01.23

Os meus posts anteriores, sobre a dinâmica dos sistemas naturais, tiveram alguns comentários, públicos ou privados, que me fazem escrever, de novo, sobre este assunto.

Começo por despachar um mau argumento, para depois me concentrar nos bons argumentos: "A relação predador-presa está devidamente documentada e existem vários modelos matemáticos suportados em equações diferenciais para o descrever."

Modelos matemáticos servem para testar os preconceitos de quem os usa, não servem para documentar coisa nenhuma, na medida em que as condições de partida são definidas a partir do que se sabe previamente. Em qualquer caso, mesmo quando as relações predador presa tiveram o seu auge na dinâmica de populações, porque alguém conseguiu matematizar uns pressupostos que batiam certo com algumas situações muito pontuais, os autores e utilizadores dessas equações, e desses modelos, chamavam claramente a atenção para as suas limitações, tipicamente, "se tudo se mantiver igual".

Mais tarde (para quem quiser ter uma ideia mais sistematizada pode dar aqui uma vista de olhos, que é interessante e mesmo um leigo como eu consegue entender), mesmo do estrito ponto de vista matemático essas tais equações diferenciais perderam brilho e cingem hoje a sua utilidade a situações muito, muito circunscritas.

Dito isto, a ideia base de que existem oscilações temporárias decorrentes das relações predador presa, tal como descritas nesses modelos, é uma ideia essencialmente certa, embora pouco útil para a compreensão das dinâmicas de longo prazo.

"Se o Henrique puser ovelhas numa ilha com muita erva - como os colonizadores viking fizeram na Islândia, com resultados desastrosos - verá que a erva vai toda à vida, até as ovelhas ficarem também à fome. Estabelece-se um equilíbrio na miséria.
Ou seja, de facto, as ovelhas controlam a erva, não o contrário."

Este é um argumento muito melhor, embora só marginalmente invalide o meu argumento anterior: continuam a ser as plantas a controlar a quantidade de ovelhas, embora num equilíbrio condicionado pela densidade de ovelhas. Uma seca prolongada ou um ano especialmente produtivo, do ponto de vista da produtividade primária, resultam na mortalidade ou no aumento das ovelhas.

É certo que entretanto se passou de uma situação com um determinado tipo de habitats para outro, é bem possível que seja um equilíbrio menos produtivo (isso teria de ser visto com mais cuidado porque normalmente o que é estudado são as alteraçãos dos ecossistemas originais, e não propriamente a quantidade de biomassa produzida), é bem possível que, especialmente em ilhas, haja circunstâncias em que a ruptura provocada por uma nova espécie acabe por redefinir todo o sistema, podendo considerar-se que foram os predadores que moldaram a paisagem.

Os modelos que sugerem que é na captura de predadores ou de presas que está a chave para o resultado que se pretende são sempre construídos com base no famoso "tudo o resto igual".

Ora entre a disponibilidade de alimento, as doenças e os predadores, três factores que se podem considerar relevantes na dinâmicas das espécies, a predação, ou perseguição directa, é muito menos poderoso que os dois primeiros.

E é bem certo que a disponibilidade de alimento (se quisermos complicar, a capacidade de carga, que aparece em vários modelos e muitas políticas), está muito longe de ser estável, quer no curto prazo - varia frequentemente com base na meteorologia -, quer no médio/ longo prazo, em que varia com fertilidade do solo, com os modelos de gestão, etc..

Sendo as doenças, por definição, ainda mais instábveis e imprevisíveis.

É por isso que não se pode falar da diminuição do bisonte americano como tendo decorrido da caça desregrada que aparece frequentemente nos filmes de cowboys (e em muitos artigos de divulgação), sem falar da intensa alteração das pradarias americanas induzida pela colonização dos séculos XIX e XX.

Na sequência dos posts anteriores um amigo citou Hayek, razão pela qual fui à procura do contexto da citação, que me serve muito bem para o que aqui queria dizer, substituindo (como fez esse meu amigo) economia por ecologia, na citação:

“The curious task of economics is to demonstrate to men how little they really know about what they imagine they can design. To the naive mind that can conceive of order only as the product of deliberate arrangement, it may seem absurd that in complex conditions order, and adaptation to the unknown, can be achieved more effectively by decentralizing decisions and that a division of authority will actually extend the possibility of overall order. Yet that decentralization actually leads to more information being taken into account.”

O tal encontro entre o relojoeiro cego e a mão invisível que me tem servido muitas vezes.

Quer isto dizer que não podemos fazer nada e ficamos a assistir ao excesso (dizemos nós, o javali chamar-lhe-á sucesso, se aprender a falar) dos javalis?

Não, quer apenas dizer que as políticas que devemos adoptar devem, em primeiro lugar, reconhecer o pouco que sabemos e, em segundo lugar, que a decisão descentralizada pode conduzir a sistemas ordenados de forma mais eficaz que o planeamento central.

Ou seja, no caso dos javalis:

1) liquidar todos os entraves administrativos à caça do javali, com excepção daqueles que dizem respeito à defesa da propriedade e da vida humana;

2) favorecer a expansão dos predadores potenciais, nomeadamente, do lobo e do urso;

3) favorecer os usos do solo menos favoráveis ao javali (sim, pode incluir olival intensivo, pomares de abacates, amendoais, campos de golfe, urbanizações, etc.);

4) adoptar técnicas localizadas de defesa de bens contra a destruição por javalis.

Isto controla a população de javali?

Provavelmente não, mas concentramo-nos no que interessa: tirar partido da sua abundância actual e impedir que essa abundância afecte bens económicos relevantes, deixando as decisões a tomar em cada momento e lugar para quem esteja o mais próximo possível do problema a resolver.


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