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Há uns séculos atrás, quando a escuridão nas noites dependia dos astros, o sustento dependia das colheitas, a saúde dependia da sorte, a distância dependia do andar, o comércio dependia das tréguas, a luz irradiada pelo Deus Menino em cada Natal era incontestável. Tento imaginar como nesses tempos ancestrais, na noite fria de Natal, se engalanavam os templos iluminados e aquecidos de gente, que eram pólo de encontro das comunidades, um verdadeiro consolo para os nossos antepassados, que numa pausa dos trabalhos agrícolas se juntavam a celebrar o grande acontecimento. Imagino as refeições melhoradas, os caminhos entre povoados ponteados por pequenos grupos de pessoas para se juntarem nas casas umas das outras em festejo. Acredito que dadas as circunstâncias, sob um céu estrelado e silencioso era então mais fácil a devoção à Natividade, o mistério da encarnação de Deus que do seio da Virgem Maria num recôndito estábulo de Belém vem comungar com a humanidade os seus padecimentos e desse modo libertá-la da corrupção da carne. Era então por certo mais evidente para cada um a importância da vida espiritual e da oração, fonte preciosa da esperança que move montanhas e conforta as aflições. Já as pessoas, na sua humanidade, eram intrinsecamente como nós. O Natal repetia-se a cada ano graças a Deus.
Passados alguns séculos, com o livre arbítrio ensinado nos Evangelhos - porque só o Amor verdadeiro colhe - do crescente conforto e abundância que o Homem tanto tinha suplicado e recebido de Deus, vieram outras luzes que as conquistas técnicas e científicas eram deslumbrantes. Muitos foram os que então se encandearam, e alguns se iludiram. Afinal o Natal não era de Deus, era “quando o homem quisesse”, que era para si que afinal os pastores e os reis sempre deveriam ter prestado culto. Equivocados, julgaram que era homem o princípio e o fim de todas as coisas, único dono das suas acções e destino, cuja “boa vontade” não se deveria circunscrever a uma data. Alguns mais afoitos quiseram mesmo acabar com a festa e até experimentaram um novo calendário – o banho de sangue foi o que se viu.
Claro que já ninguém se espanta que, chegados à maravilhosa modernidade, quando a comida já nasce nos supermercados, dominámos a natureza, e somos desafiados a viver para sempre sem susto e sem dor, a maioria já não reivindique o Natal “quando o Homem quiser”. O Natal passou a ser “o que cada um quiser”: elfos e gnomos, comidas e bebidas, chifres de renas nas cabeças, barretes e luzinhas a piscar, que a vida seja um interminável carnaval de sensações e suspeita-se que muitas depressões medicadas. Chamam-lhe progresso.
Acontece que ainda hoje alguns de nós nos juntamos numa igreja iluminada para a Missa do Galo, mesmo no meio da cidade enlouquecida de idolatrias e alienações. Com cânticos de festa, vestidos a preceito para celebrar o nascimento do Jesus Menino, na senda duma esperança verdadeira e a pedir o seu império no nosso coração endurecido. Porque por detrás de tanta ciência e arrogância afinal somos todos irmãos na fragilidade e na aventura desta peregrinação terrena e arriscamo-nos a morrer sozinhos, que a vida gasta-se num instante em caminhos perdidos. Afinal o Criador não pede licença para existir e a realidade, para contrariedade de muitos, existe apesar de nós, apesar do nosso olhar. Permitamo-nos então que nos consolemos com o mistério da Sua vinda que nos foi dada, e que, aqui entre nós, é nossa a última esperança. Que o nosso coração se deixe iluminar pelo milagre do nascimento de Cristo inscrito na História para sempre – mesmo quando algum homem não queira.
Feliz Natal a todos os leitores do Corta-fitas, são os meus votos!
Na imagem: A Adoração dos Pastores – Gerrit van Honthorst - 1622
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