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O Natal é quando Deus quiser

por João Távora, em 23.12.20

the_adoration_of_the_shepherds.jpg

Há uns séculos atrás, quando a escuridão nas noites dependia dos astros, o sustento dependia das colheitas, a saúde dependia da sorte, a distância dependia do andar, o comércio dependia das tréguas, a luz irradiada pelo Deus Menino em cada Natal era incontestável. Tento imaginar como nesses tempos ancestrais, na noite fria de Natal, se engalanavam os templos iluminados e aquecidos de gente, que eram pólo de encontro das comunidades, um verdadeiro consolo para os nossos antepassados, que numa pausa dos trabalhos agrícolas se juntavam a celebrar o grande acontecimento. Imagino as refeições melhoradas, os caminhos entre povoados ponteados por pequenos grupos de pessoas para se juntarem nas casas umas das outras em festejo. Acredito que dadas as circunstâncias, sob um céu estrelado e silencioso era então mais fácil a devoção à Natividade, o mistério da encarnação de Deus que do seio da Virgem Maria num recôndito estábulo de Belém vem comungar com a humanidade os seus padecimentos e desse modo libertá-la da corrupção da carne. Era então por certo mais evidente para cada um a importância da vida espiritual e da oração, fonte preciosa da esperança que move montanhas e conforta as aflições. Já as pessoas, na sua humanidade, eram intrinsecamente como nós.  O Natal repetia-se a cada ano graças a Deus.

Passados alguns séculos, com o livre arbítrio ensinado nos Evangelhos - porque só o Amor verdadeiro colhe - do crescente conforto e abundância que o Homem tanto tinha suplicado e recebido de Deus, vieram outras luzes que as conquistas técnicas e científicas eram deslumbrantes. Muitos foram os que então se encandearam, e alguns se iludiram. Afinal o Natal não era de Deus, era “quando o homem quisesse”, que era para si que afinal os pastores e os reis sempre deveriam ter prestado culto. Equivocados, julgaram que era homem o princípio e o fim de todas as coisas, único dono das suas acções e destino, cuja “boa vontade” não se deveria circunscrever a uma data. Alguns mais afoitos quiseram mesmo acabar com a festa e até experimentaram um novo calendário – o banho de sangue foi o que se viu.

Claro que já ninguém se espanta que, chegados à maravilhosa modernidade, quando a comida já nasce nos supermercados, dominámos a natureza, e somos desafiados a viver para sempre sem susto e sem dor, a maioria já não reivindique o Natal “quando o Homem quiser”. O Natal passou a ser “o que cada um quiser”: elfos e gnomos, comidas e bebidas, chifres de renas nas cabeças, barretes e luzinhas a piscar, que a vida seja um interminável carnaval de sensações e suspeita-se que muitas depressões medicadas. Chamam-lhe progresso.

Acontece que ainda hoje alguns de nós nos juntamos numa igreja iluminada para a Missa do Galo, mesmo no meio da cidade enlouquecida de idolatrias e alienações. Com cânticos de festa, vestidos a preceito para celebrar o nascimento do Jesus Menino, na senda duma esperança verdadeira e a pedir o seu império no nosso coração endurecido. Porque por detrás de tanta ciência e arrogância afinal somos todos irmãos na fragilidade e na aventura desta peregrinação terrena e arriscamo-nos a morrer sozinhos, que a vida gasta-se num instante em caminhos perdidos. Afinal o Criador não pede licença para existir e a realidade, para contrariedade de muitos, existe apesar de nós, apesar do nosso olhar. Permitamo-nos então que nos consolemos com o mistério da Sua vinda que nos foi dada, e que, aqui entre nós, é nossa a última esperança. Que o nosso coração se deixe iluminar pelo milagre do nascimento de Cristo inscrito na História para sempre – mesmo quando algum homem não queira. 

Feliz Natal a todos os leitores do Corta-fitas, são os meus votos!

Na imagem: A Adoração dos Pastores – Gerrit van Honthorst - 1622

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23 comentários

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De Anónimo a 23.12.2020 às 17:17

Agradeço e retribuo um Santo Natal e um Feliz Ano Novo também para si, João Távora.
MT
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De balio a 23.12.2020 às 17:24


Imagino os caminhos entre povoados ponteados por pequenos grupos de pessoas para se juntarem nas casas umas das outras em festejo.



Olhe João Távora, eu não sei se a sua imaginação não é demasiadamente fértil... Na aldeia de onde o meu pai era, na Bairrada, o Natal não é celebrado a não ser no plano estritamente religioso - não há quaisquer pessoas a juntarem-se nas casas umas das outras. Faz muito frio e a ninguém apetece andar a transitar de uma casa para outra, muito menos de um povoado para outro. E, nos tempos passados a que o João Távora se refere, em que não havia automóveis, ainda muito menos gente andaria pela noite escura a ir de uma casa a outra, de uma aldeia a outra. Na aldeia do meu pai, a festa em que as famílias se visitam é a Páscoa. Aí sim, as pessoas transitam abundantemente de uma casa para outra, para visitar família e amigos. O Natal não é nada, ou antes, é na melhor das hipóteses uma festa religiosa.
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De João Távora a 23.12.2020 às 19:51

Feliz Natal. 
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De Pedro Oliveira a 23.12.2020 às 21:06

"na aldeia do meu pai, a festa em que as pessoas se visitam é a Páscoa (...) o Natal não é nada"
Caro balio,
Neste contexto é necessário nascer para poder morrer e ressuscitar.
Acreditar/comemorar a ressurreição/a Páscoa mas não acreditar/comemorar o Natal/o nascimento será no mínimo estranho, não?
Um feliz Natal (ou feliz Páscoa se preferir) e um excelente 2021.
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De olhosqueleem a 23.12.2020 às 20:02

Maravilhoso texto.
Feliz Natal .
Ana
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De Pedro Oliveira a 23.12.2020 às 21:07

Feliz Natal, João.
Parabéns pelo maravilhoso texto.
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De Anónimo a 24.12.2020 às 01:10

E, assim se diz (e faz) o Natal, que apesar de sequestrado pelo consumismo (leia-se o  pelo Santo Padre dito) ainda vive em alguns (muitos) de nós.
Um feliz e santo Natal, João Távora e a todos os leitores do Corta-fitas.
Rui Matos Alexandre
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De Madalena Cardoso da Costa a 24.12.2020 às 09:50

Boas Festas, um Santo e Feliz Natal, João Távora, e família. Aproveito para agradecer os seus textos ou comentários dos textos de Domingo, ao longo do ano. É uma nota sentidamente inequívoca do filão de vida dessa família. Obrigada. Madalena Formigal Cardoso da Costa.
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De Anónimo a 24.12.2020 às 11:04

o homem-deus destruiu tudo
Saúde e Fraternidade
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De Anónimo a 24.12.2020 às 13:59


Quem não acredita em Deus, é porque acredita que o Homem é a medida de todas as coisas.
Como tal, não aceita que nada se coloque entre ele e os seus objectivos, e a total satisfação das suas paixões materiais.
É por isso que nunca votaria num presidente ateu.
Tempo de regressar a uma saudável comunidade cristã (o cristianismo é maior que o Vaticano e que o Papa Vermelho).

Um Feliz Natal para si e para todos os seus.
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De Anónimo a 24.12.2020 às 14:28

No plano espiritual, um Santo e Feliz Natal a si, João Távora, assim como a todos os colaboradores e autores deste blog.

No plano temporal (ou mais secular) já que...


"O tempo não volta para trás, é claro. Mas, apesar de tudo, pode-se criar de novo. E por estes dias de Natal seria verdadeiramente uma bela prenda a esperança de voltar a ver Pedro Passos Coelho de retorno à política activa. (...) Precisamos desesperadamente de um adulto na sala"  -  Paulo Tunhas.


Desejo também um Ano Novo com muitas, muitas vacinas para TODOS. Que haja Saúde que o resto virá por acréscimo.

Felizes dias! 


LS
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De Anónimo a 24.12.2020 às 21:04

Feliz Natal e Ano Novo cheio de venturas e saúde!
Que a "Luz" alumie sempre a vida de todos que andam por este blog.

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