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Em boa parte das notícias sobre a demissão do responsável pelo SNS, aparece a informação de que teria sido autorizado a acumular funções de médico, desde que sem pagamento.
Não me lembro de alguém ter dado realce a este pequeno pormenor.
Não faço ideia quem autorizou a acumulação de funções, desde que não remuneradas, o que me interessa é que este tipo de jogo de sombras com as regras que existem é o pão nosso de cada dia na administração.
Claro que quem autorizou sabia perfeitamente que o senhor ia fazer o que é corrente: formalmente não há pagamentos porque se faz uma empresa que é receptora dos pagamentos.
A autorização é para contornar a regra que impede a acumulação, a referência à ausência de pagamentos é para justificar uma decisão legal, mas ilegítima e injustificável.
Há dezenas, centenas, milhares de situações destas na administração pública, usando formalmente excepções e quejandos, que tornam letra morta as regras formais, substituídas por práticas que toda a gente sabe que existem, que são materialmente ilegais, embora possam ser formalmente justificadas tornando a administração pública um imenso mercado de pequenos favores e silêncios, só quebrados quando alguém se sente suficientemente injustiçado para fazer chegar uma denúncia documentada onde for mais útil (a hierarquia, os jornais, o amigo do Governo, o amigo da oposição, depende das circunstâncias).
Quando brevemente fui vice-presidente do ICN tinha um motorista (penso que essa atribuição de motorista nem teria grande base legal, não sei) e das primeiras coisas que me informaram é que os motoristas da direcção recebiam mais 30% de ordenado em horas extraordinárias (os dos gabinetes do governo acho que eram mais 60%, em princípio, mas tudo isso era negociável, pessoa a pessoa) que tinham de ser autorizadas e validadas por mim (coitado do desgraçado a quem calhou ser meu motorista).
Note-se que ser motorista de alta direcção é um cargo bastante desejado (pelas razões que referi e outras), embora sujeita aos maiores abusos por parte de dirigentes sem carácter (exemplo, um dia Sócrates, ainda ministro do ambiente num governo empenhado na tolerância zero nas estradas, entra no carro em Aveiro e diz ao motorista que tem uma reunião dentro de hora e meia em Lisboa a que quer chegar a horas, mas que o motorista é o responsável pelo cumprimento pelas regras de trânsito, sabendo perfeitamente que tem instruções estritas dele, ministro, para não passar os limites de velocidade, e que ia aproveitar a viagem para dormir, confiando que chegava a horas à reunião), mas é também uma posição de elevada confiança pessoal porque a quantidade de informação que chega aos motoristas é muito elevada (irrelevante para quem genericamente cumpre as regras, mas questão muito sensível para outros).
Num registo menos directo, toda a gente conhece a história dos professores universitários turbo, que estavam em muitos sítios ao mesmo tempo (a carreira universitária é das que mais usam esquemas para receber mais pela exclusividade, sem perder a possibilidade de ter outras fontes de rendimento).
Ou a muito conhecida história de António Costa que recebia mais por ser presidente de câmara em exclusividade, o que não o impedia de ter um segundo ordenado, maior que o primeiro, para participar semanalmente num programa da SIC, ao abrigo de uma interpretação criativa da excepção que existe para os direitos de autor, que lhe permitia receber os serviços prestados de comentador político como direitos de autor.
O alheamento geral e desinteresse pela investigação dessa autorização que permitia acumular funções, desde que condicionada a uma circunstância que todos sabiam que não se iria verificar, usando um esquema manhoso para formalmente todos puderem dizer que cumpriram formalmente a lei, é um bom retrato do alheamento e desinteresse com que se olha para a gestão da administração pública.
Com os resultados conhecidos e crescentemente piores.
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