Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]




O jogo e a regra

por henrique pereira dos santos, em 22.01.25

Em boa parte das notícias sobre a demissão do responsável pelo SNS, aparece a informação  de que teria sido autorizado a acumular funções de médico, desde que sem pagamento.

Não me lembro de alguém ter dado realce a este pequeno pormenor.

Não faço ideia quem autorizou a acumulação de funções, desde que não remuneradas, o que me interessa é que este tipo de jogo de sombras com as regras que existem é o pão nosso de cada dia na administração.

Claro que quem autorizou sabia perfeitamente que o senhor ia fazer o que é corrente: formalmente não há pagamentos porque se faz uma empresa que é receptora dos pagamentos.

A autorização é para contornar a regra que impede a acumulação, a referência à ausência de pagamentos é para justificar uma decisão legal, mas ilegítima e injustificável.

Há dezenas, centenas, milhares de situações destas na administração pública, usando formalmente excepções e quejandos, que tornam letra morta as regras formais, substituídas por práticas que toda a gente sabe que existem, que são materialmente ilegais, embora possam ser formalmente justificadas tornando a administração pública um imenso mercado de pequenos favores e silêncios, só quebrados quando alguém se sente suficientemente injustiçado para fazer chegar uma denúncia documentada onde for mais útil (a hierarquia, os jornais, o amigo do Governo, o amigo da oposição, depende das circunstâncias).

Quando brevemente fui vice-presidente do ICN tinha um motorista (penso que essa atribuição de motorista nem teria grande base legal, não sei) e das primeiras coisas que me informaram é que os motoristas da direcção recebiam mais 30% de ordenado em horas extraordinárias (os dos gabinetes do governo acho que eram mais 60%, em princípio, mas tudo isso era negociável, pessoa a pessoa) que tinham de ser autorizadas e validadas por mim (coitado do desgraçado a quem calhou ser meu motorista).

Note-se que ser motorista de alta direcção é um cargo bastante desejado (pelas razões que referi e outras), embora sujeita aos maiores abusos por parte de dirigentes sem carácter (exemplo, um dia Sócrates, ainda ministro do ambiente num governo empenhado na tolerância zero nas estradas, entra no carro em Aveiro e diz ao motorista que tem uma reunião dentro de hora e meia em Lisboa a que quer chegar a horas, mas que o motorista é o responsável pelo cumprimento pelas regras de trânsito, sabendo perfeitamente que tem instruções estritas dele, ministro, para não passar os limites de velocidade, e que ia aproveitar a viagem para dormir, confiando que chegava a horas à reunião), mas é também uma posição de elevada confiança pessoal porque a quantidade de informação que chega aos motoristas é muito elevada (irrelevante para quem genericamente cumpre as regras, mas questão muito sensível para outros).

Num registo menos directo, toda a gente conhece a história dos professores universitários turbo, que estavam em muitos sítios ao mesmo tempo (a carreira universitária é das que mais usam esquemas para receber mais pela exclusividade, sem perder a possibilidade de ter outras fontes de rendimento).

Ou a muito conhecida história de António Costa que recebia mais por ser presidente de câmara em exclusividade, o que não o impedia de ter um segundo ordenado, maior que o primeiro, para participar semanalmente num programa da SIC, ao abrigo de uma interpretação criativa da excepção que existe para os direitos de autor, que lhe permitia receber os serviços prestados de comentador político como direitos de autor.

O alheamento geral e desinteresse pela investigação dessa autorização que permitia acumular funções, desde que condicionada a uma circunstância que todos sabiam que não se iria verificar, usando um esquema manhoso para formalmente todos puderem dizer que cumpriram formalmente a lei, é um bom retrato do alheamento e desinteresse com que se olha para a gestão da administração pública.

Com os resultados conhecidos e crescentemente piores.


5 comentários

Sem imagem de perfil

De Manuel da Rocha a 22.01.2025 às 11:29

O "acumular de funções", foi feito usando uma empresa... com 2 sócios. O ex-dirigente e a esposa. É verdade que a ministra não poderia questionar o que fazia a empresa ou com quem trabalha mas, dentro da escolha. Gandra teve de entregar, a declaração de IRS. Nenhum dos 60000 assessores, do governo, achou estranho, alguém, dedicado ao SNS, ter 1,7M, em salários e 2,46M noutros rendimentos de capitais (dividendos e investimentos financeiros? Se a análise ao candidato não questionou como recebeu 4 milhões de euros, em 2023, algo de errado se passou, na selecção do candidato. 
Vamos ver é se o novo não irá pelo mesmo caminho. É que já foi nomeado e, ainda, é consultor de 8 empresas seguradoras, além de representante legal de um laboratório espanhol e ser accionista (com mais de 1%, pois tem direito de voto) em 4 entidades privadas de saúde portuguesas. 
Imagem de perfil

De henrique pereira dos santos a 22.01.2025 às 12:18

E sobre o conteúdo do post, tem alguma coisa a dizer?
Sem imagem de perfil

De Anonimo a 22.01.2025 às 13:00

O hps decerto conhece legislação publicada em DR melhor que qualquer um de nós incautos, e percebe que aquilo é em grande parte dúbio. Propositadamente ou não,  fica para cada um.
Depois, mesmo quando se é apanhado em contravenção, ou não sabia, ou a lei não fazia sentido (e muda-se).
Sem imagem de perfil

De cela.e.sela a 22.01.2025 às 14:47

mais de 1/2 da administração pública provem das jotinhas e considerado perfeitamente dispensável e inútil por incompetente.
assusta qualquer um de ser obrigado a ir a uma repartição estadual
Sem imagem de perfil

De Filipe Costa a 22.01.2025 às 17:55

Acabar com esses esquemas é impossivel, está enraizado na Adm Publica, não gosto de admitir uma derrota, mas após tantos anos de vida, perdi a esperança que um dia isto vá ao sitio.

Comentar post



Corta-fitas

Inaugurações, implosões, panegíricos e vitupérios.

Contacte-nos: bloguecortafitas(arroba)gmail.com



Notícias

A Batalha
D. Notícias
D. Económico
Expresso
iOnline
J. Negócios
TVI24
JornalEconómico
Global
Público
SIC-Notícias
TSF
Observador

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Comentários recentes


Links

Muito nossos

  •  
  • Outros blogs

  •  
  •  
  • Links úteis


    Arquivo

    1. 2025
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    14. 2024
    15. J
    16. F
    17. M
    18. A
    19. M
    20. J
    21. J
    22. A
    23. S
    24. O
    25. N
    26. D
    27. 2023
    28. J
    29. F
    30. M
    31. A
    32. M
    33. J
    34. J
    35. A
    36. S
    37. O
    38. N
    39. D
    40. 2022
    41. J
    42. F
    43. M
    44. A
    45. M
    46. J
    47. J
    48. A
    49. S
    50. O
    51. N
    52. D
    53. 2021
    54. J
    55. F
    56. M
    57. A
    58. M
    59. J
    60. J
    61. A
    62. S
    63. O
    64. N
    65. D
    66. 2020
    67. J
    68. F
    69. M
    70. A
    71. M
    72. J
    73. J
    74. A
    75. S
    76. O
    77. N
    78. D
    79. 2019
    80. J
    81. F
    82. M
    83. A
    84. M
    85. J
    86. J
    87. A
    88. S
    89. O
    90. N
    91. D
    92. 2018
    93. J
    94. F
    95. M
    96. A
    97. M
    98. J
    99. J
    100. A
    101. S
    102. O
    103. N
    104. D
    105. 2017
    106. J
    107. F
    108. M
    109. A
    110. M
    111. J
    112. J
    113. A
    114. S
    115. O
    116. N
    117. D
    118. 2016
    119. J
    120. F
    121. M
    122. A
    123. M
    124. J
    125. J
    126. A
    127. S
    128. O
    129. N
    130. D
    131. 2015
    132. J
    133. F
    134. M
    135. A
    136. M
    137. J
    138. J
    139. A
    140. S
    141. O
    142. N
    143. D
    144. 2014
    145. J
    146. F
    147. M
    148. A
    149. M
    150. J
    151. J
    152. A
    153. S
    154. O
    155. N
    156. D
    157. 2013
    158. J
    159. F
    160. M
    161. A
    162. M
    163. J
    164. J
    165. A
    166. S
    167. O
    168. N
    169. D
    170. 2012
    171. J
    172. F
    173. M
    174. A
    175. M
    176. J
    177. J
    178. A
    179. S
    180. O
    181. N
    182. D
    183. 2011
    184. J
    185. F
    186. M
    187. A
    188. M
    189. J
    190. J
    191. A
    192. S
    193. O
    194. N
    195. D
    196. 2010
    197. J
    198. F
    199. M
    200. A
    201. M
    202. J
    203. J
    204. A
    205. S
    206. O
    207. N
    208. D
    209. 2009
    210. J
    211. F
    212. M
    213. A
    214. M
    215. J
    216. J
    217. A
    218. S
    219. O
    220. N
    221. D
    222. 2008
    223. J
    224. F
    225. M
    226. A
    227. M
    228. J
    229. J
    230. A
    231. S
    232. O
    233. N
    234. D
    235. 2007
    236. J
    237. F
    238. M
    239. A
    240. M
    241. J
    242. J
    243. A
    244. S
    245. O
    246. N
    247. D
    248. 2006
    249. J
    250. F
    251. M
    252. A
    253. M
    254. J
    255. J
    256. A
    257. S
    258. O
    259. N
    260. D