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O Estado e a temperatura do banho

por henrique pereira dos santos, em 21.07.23

Há muitos anos, alguns dos meus irmãos levaram uns filhos meus para férias.

Uma delas ficou doente, como ficam frequentemente, tinha umas febres altas e persistentes e, pelo que lhe falámos de uma forma clássica de controlar febres altas, com água fria.

O meu irmão, que não tem filhos e toda a vida tomou banho de água fria, levou a coisa a peito e ainda lhe deu uns valentes banhos de água fria até chegarmos onde ele estava, a levar ao hospital e ser internada para curar a pneumonia que tinha (se a tinha antes ou depois dos banhos de água fria é coisa que nunca saberemos).

Lembrei-me desta história a propósito da senhora que trata das birras com banhos de água fria (se querem saber, duvido muito que seja a única no mundo), e que resolveu falar disso publicamente de uma forma que me pareceu pouco razoável (mas isso sou eu, que acho que misturar educação de crianças com horóscopos e astrologia é coisa com um enorme potencial de irracionalidade, embora ter filhos seja objectivamente uma coisa irracional, não há nada que justifique esta mania que continuamos a ter de arranjar problemas tendo filhos).

A quantidade de reacções a esta história que, para além de "Too much ado about nothing", vão muito para lá do pouco razoável, entrando directamente para o absurdo, é extraordinária.

Para além do psicologismo de treta sobre os efeitos terriveis no futuro da criança de uns banhos de água fria (e, genericamente, dos erros de educação dos pais sobre os filhos), que acho despropositado, o que mais me impressiona é a quantidade de pessoas, muitas delas pessoas razoáveis e aparentemente sensatas, que acham que os filhos deviam imediatamente ser retirados aos pais e entregues ao Estado se a temperatura do banho das crianças alguma vez baixar dos 35 graus centígrados.

Às pessoas que acham que o Estado é perfeito a criar crianças, ao contrário do perigo que há em os deixar nas mãos de pais que não são perfeitos e fazem asneiras na educação dos filhos, talvez seja útil lembrar a história de Liliana Melo que demorou quatro anos a conseguir rever os filhos cuja tutela lhe foi retirada, ilegalmente, pelo Estado e que está longe de ser caso único: são várias as condenações do Estado português a indemnizar pais a quem foram retirados filhos ilegalmente.

Ou lembrar como o Estado cuidou dos menores ao cuidado da Casa Pia.

Ou tudo o que se passa nas instituições de acolhimento de menores, onde não há erros de educação e problemas traumáticos, como tomar banhos forçados abaixo dos 35 graus e outras coisas igualmente terríveis.

Ou as dificuldades da adopção em Portugal, com tempos de decisão extensíssimos e algumas "devoluções" de filhos por parte de famílias que o Estado considerou idóneas para os receber (e, se calhar, são, mas educar e integrar filhos numa nova família, e filhos com um histórico de rejeição anterior, é mesmo muito difícil).

A educação não é uma ciência exacta, entre outras razões porque somos todos diferentes e o que funciona bem com uns, pode não funcionar com outros (nós somos dez irmãos, todos a caminhar para velhos com excepção da que já não caminha, e quando a conversa vai para o que se passava em nossa casa, também em matéria de educação, a sensação que tenho é que fomos todos criados em casas diferentes, tal é a disparidade com que cada um descreve o que foi a sua vida em casa dos meus pais).

As famílias são uma coisa péssima: é onde se verifica a esmagadora maioria dos abusos sexuais, é o único sítio onde existe violência doméstica, é onde as tensões entre as pessoas podem ter raízes mais profundas e explosões mais perigosas e muitas e muitas outras coisas que se poderiam dizer sobre as famílias.

O problema é que para educar, socializar crianças, cuidar de bebés - esquecemo-nos frequentemente de como as nossas crias são incompetentes, ao contrário de um potro que corre num prado ao fim de umas horas do seu nascimento, as nossas crias são praticamente "fetos externos", não vêem grande coisa, não se aguentam nas canetas durante um ano, ouvem mal, não sabem procurar comida, meses depois do nascimento não sabem rigorosamente nada do que sabe a generalidade das crias das outras espécies ao fim de umas horas de vida - ainda não encontrámos mecanismo social mais eficiente que este de nos juntarmos em famílias.

Mesmo sabendo que sendo as pessoas imperfeitas, é difícil que sejam capazes de fazer famílias perfeitas, juntando pessoas não só imperfeitas, mas com imperfeições diferentes entre si.

Com séculos, milénios de demonstração, fico estupefacto com a facilidade com que vejo gente, ao mínimo percalço de educação de uns pais, defender que a solução é entregar as crianças ao Estado, essa entidade carinhosa, próxima, razoável, justa, sensata, atenta, serena e etc., que sem dúvida consegue garantir que nenhuma criança a seu cargo alguma vez toma um banho forçado a temperaturas abaixo de 35 graus centígrados.


23 comentários

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De anónimo a 21.07.2023 às 10:56

Feliz, consigo mesma, porque venceu a guerra de vontades com tão desigual "adversário". Patológico?. 
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De henrique pereira dos santos a 21.07.2023 às 17:01

Fico tão feliz, mas tão feliz, por na sua família nunca ter havido um braço de ferro entre uma criança e um adulto, que nem imagina.
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De Anónimo a 21.07.2023 às 11:31

Até pode nem ser importante aqui, a temperatura da água , mas a senhora que relata a história, aquela frialdade com que fala, não parece sequer a "mão que embala o berço"... tem um ar pouco "normal" ao gabar~se da façanha...
Aqui o Estado deve é ficar de atalaia...
-"quem faz um cesto, faz um cento!"
Filha minha não ficava à guarda desta Senhora...
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De henrique pereira dos santos a 21.07.2023 às 14:32

Espero que encontre sempre pessoas que eduquem a sua filha da forma perfeita como sempre terá feito, tanto quanto percebo.
É uma tarefa difícil, mas sei que consegue nunca exigir menos dos outros que a perfeição.
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De Anonimo a 21.07.2023 às 21:41

A senhora ao gabar-se da façanha(?) pretende obter feedback positivo. Como todos nós,  quer reconhecimento. Se puder "viralizar", melhor. Este tipo de "saídas ", a la internet dizendo, as decisões fora da caixa,  costumam ter sucesso.
Desta vez terá corrido mal.
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De balio a 21.07.2023 às 12:00


A educação não é uma ciência exacta, entre outras razões porque somos todos diferentes e o que funciona bem com uns, pode não funcionar com outros



Ora bem, excelente frase.


A minha fisioterapeuta, que era uma miúda de 26 anos, disse-me uma vez uma frase simples, que eu achei extremamente sábia: "As pessoas são diferentes." Excecional como uma rapariga tão nova consegue dizer algo que a maior parte das pessoas mais velhas jamais chega a entender.


A regra de que causas iguais produzem efeitos iguais não funciona com seres humanos (nem, creio, com seres vivos em geral).


Irrita-me ouvir repetidas vezes pessoas a dr conselhos e sentenças sobre educação de crianças e jovens, como se houvesse receitas infalíveis e como se errar fosse impossível para quem as soubesse aplicar.
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De Terry Malloy a 21.07.2023 às 14:30


"Somos todos diferentes e o que funciona bem com uns, pode não funcionar com outros".


Os ingleses têm uma expressão dessa ideia que aprecio muito: 'different strokes for different blokes'.


A versão original é com 'folks' no fim, mas gosto mais desta, com o sotaque que usam nos filmes do Guy Ritchie.


De resto, o Afonso da Maia é que deve estar às voltas na tumba...
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De pitosga a 21.07.2023 às 12:26


HPS,
A Família é a resposta automática, biológica, de uns seres humanos para que outros seres humanos, em quem investiram tudo, possam sobreviver. Existe antes das Leis e dos Governos — que são uma patetice que os humanos inventaram para sacudir a água do capote.

Cada um de nós tem uma vivência, umas recordações, do que nos fizeram para nos safarmos.
Agora sabemos que o bicho homem é dos mamíferos mais lentos a se tornar autónomo. Não é mais do que a consequência biológica daquilo que cada bicho é. Tal como a estrutura óssea da bacia que é diferente da dos outro primatas para nos permitir andar em duas pernas.
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De Zé raiano a 21.07.2023 às 13:09

lembrança dum familiar:
Joaquim Letria terá sido o único que mencionou as Meninas da Casa Pia no ''engate'' frente aos Jerónimos


só tomo banho de água quente
o mesmo com a água que bebo, mas prefiro tinto Alentejano por 'escassa acidez volátil'
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De balio a 21.07.2023 às 13:09


as dificuldades da adopção em Portugal, com tempos de decisão extensíssimos


Eu estou convencido há muito tempo de que o Estado sofre uma influência muito poderosa da indústria dos asilos, de que é exemplo o Refúgio Aboim Ascensão, que pertence ou pertencia a um influente Luís Villas-Boas. Esta indústria dos asilos, para mais num tempo difícil devido à queda da natalidade, pretende a todo o custo manter a sua "clientela", a qual justifica os empregos nessa indústria, e portanto pressiona o Estado no sentido de que este dificulte a saída de crianças para adoção.
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De Ricardo A a 21.07.2023 às 13:46

A "educação" na repúbliqueta de Portugal está (qual estado danação)fora de moda,vamos todos mas  é para o reino do pineal(onde não há água fria nem morna).
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De Anonimo a 21.07.2023 às 14:46

Reconheço achar alguma piada sádica quando um destes influenciadores é apanhado numa das enxurradas digitais. 
Não porque me ache superior enquanto educador, mas porque tenho apreço pela privacidade, e se estes marrecos metem a vida deles e dos outros (sim, porque aqui o filho é parte interessada) disponível para todo o bicho careta ver, em troca de uns mimos (afagos ao ego, ou acrescentos à conta), é apenas justo que também lidem com a parte menos boa da fama que tanto procuram. 
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De henrique pereira dos santos a 21.07.2023 às 17:03

Tem toda a razão, era o que mais faltava que houvesse pessoas com ideias diferentes das suas sobre privacidade.
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De Anonimo a 21.07.2023 às 19:20


Eu sei que tenho toda a razão. A que me assiste enquanto indivíduo que exprime uma opinião pessoal.
 Tudo tem consequências, e expor assunto privados na esfera pública tem este tipo de resultados. Não o "quererem" tirar o filho à senhora, mas todo o tipo de considerações de pessoal que não a conhece de lado algum sobre a educação que promove.
Acho graça que os que anseiam pelos afagos ao ego levem umas ripadas (digitais).
Ou era o que mais faltava todos termos de concordar com o colocado no texto. Ou com a SUA ideia de privacidade. 
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De henrique pereira dos santos a 22.07.2023 às 08:48

"Acho graça que os que anseiam pelos afagos ao ego levem umas ripadas (digitais)."
Tem toda a razão, ansiar por afagos ao ego é um crime terrível que merece castigo pesado, para contentar a turbamulta que sente um prazer sádico na humilhação de terceiros.
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De Anonimo a 22.07.2023 às 11:36

Continua a bater na razão.
Devia aprender a definição do termo. Só há aqui uma pessoa a exigir/dar razão,  e eu não sou. Se calhar há aí algo de projecção.




"para contentar a turbamulta que sente um prazer sádico na humilhação de terceiros"



A ironia da situação é mesmo essa.
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De lucklucky a 21.07.2023 às 15:35

A Politica(Estado) é a única religião que resta no Ocidente. Jornalistas são os seus Padres.
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De balio a 21.07.2023 às 15:56


para educar, socializar crianças, cuidar de bebés [...] ainda não encontrámos mecanismo social mais eficiente que este de nos juntarmos em famílias



Isto não é bem assim. Entre a família nuclear dos nossos dias, e o Estado com as suas instituições de acolhimento, vai um longo caminho. Muitas foram as sociedades em que as crianças eram educadas e socializadas em larga medida na interação com muitas pessoas que não da sua família. Havia por exemplo as "casas longas" dos índios iroqueses, nas quais muitos adultos e muitas crianças coabitavam sob o mesmo teto. Mesmo em Portugal, até aos anos 1950 grande parte das crianças passava grande parte do seu tempo a brincar em conjunto no largo da aldeia, e não encerrada dentro de uma família.
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De Filipe a 21.07.2023 às 18:00

Antigamente eram familias grandes, como no reino do Pineal.
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De Anonimo a 21.07.2023 às 21:37

Infelizmente ter pai e mãe não implica ter família. Quantos pais são obrigados a deixar a escola e a tv educarem os filhos, por falta de tempo...

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