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A discussão sobre o efeito do Natal na evolução da epidemia é interessante, mas se eu tivesse dois dedos de testa, esperava umas horas pelos dados de hoje, que são os primeiros a dar alguma segurança em relação ao que se está a passar, antes de escrever este post.
Comecemos pelo contexto da coisa, olhando para a mortalidade diária em Portugal, ao longo dos últimos anos.
2021 é aquele bocadinho preto à esquerda, 2020 é a linha azul que se destaca de vez em quando, nomeadamente ao longo o Outono, no lado direito, e o pico maior que vemos à esquerda é 2017, cujo surto gripal deu origem a um número inusitado de mortes a 2 de Janeiro (que, evidentemente, não podem estar associadas a convívios de fim de ano, sendo duvidoso que possam ser explicadas com convívios no Natal).
O que é claro é que mortalidade tem uma subida constante a partir de Outubro - em 2020, maior do que o padrão habitual - que culmina em Janeiro e Fevereiro, os meses mais mortíferos que temos. Há picos associados a ondas de calor no Verão, mas não têm o mesmo padrão de continuidade e frequência da mortalidade em Janeiro e Fevereiro.
De maneira geral a mortalidade excessiva desaparece por volta da semana 19 do ano, ali no princípio de Maio (em 2020, na Europa, desapareceu na semana 20), com oscilações temporais e magnitude, de ano para ano.
Peguemos agora na opinião de Carlos Guerreiro, expressa num comentário ao meu post anterior, mas podíamos falar do que disse Carlos Antunes ao Observador, Ricardo Maxia ao Público ou Filipe Froes à TVI - já lá iremos - sempre no sentido de que o Natal foi uma desgraça e agora temos de fechar tudo para conseguir controlar os danos que teriam sido evitados se houvesse medidas restritivas sérias durante o Natal.
"... as pessoas foram aconselhadas a fazer o teste antes de passar o Natal com os familiares e fazer o teste uma semana antes não traz nenhuma segurança, se o teste for negativo só significa que naquele momento não estavam doentes (se não for um falso negativo). Imaginemos que uma pessoa no dia X tem contacto com alguém com Covid-19 e fica infectado, pode apresentar sintomas de doença até ao dia X+14. Imaginemos que só fica com febre no dia X+14, se fizer o teste para RT-PCR para SARS-Cov -2 no dia X+12 será negativo (só começa a ser positivo 2 dias antes do aparecimento dos sintomas). E poderia fazer a vida normal sem risco de contagiar ninguém não fora o caso de não saber quando iria começar a ter sintomas (e ser contagioso 2 dias antes do aparecimento dos sintomas). Por isso em caso de contactos de risco com alguém Covid-19 tem de ficar em isolamento 14 dias."
Comecemos pelo fim: há um bom número de países em que este intervalo de 14 dias foi reduzido, exactamente porque a possibilidade descrita é muito pouco provável. O que este texto revela é uma abordagem clínica clássica - considerar todas as hipóteses possíveis no caso individual que se tem pela frente - em detrimento de uma abordagem epidemiológica, que considera probabilidades em grandes grupos, descartando os fenómenos possíveis, mas de baixa probabilidade. A razão para esta última abordagem é simples: as medidas sociais têm sempre impactos sociais secundários e é preciso acautelar o funcionamento, tão normal quanto possível, da sociedade. Acresce que nunca vi defendidos os testes anteriores ao Natal (não uma semana, mas um ou dois dias antes) como tendo como objectivo garantir uma carta de alforria para comportamentos irresponsáveis, se fossem negativos, mas sim como mais uma precaução adicional: tão perto quanto possível de contactos de risco, assegurar-se de que não se está positivo, circunstância em que se abortariam de todo os contactos, mesmo com todas as precauções.
Luís Aguiar Conraria encontrou uma formulação particularmente elegante para definir a abordagem de muitos problemas e que se aplica às epidemias: é certo que as pessoas não são números, mas é bom ter em atenção que os números são pessoas.
"... o que [o] faz pensar que é a mudança de tempo, existem muitos países em que o efeito da mudança do tempo não se verifica. Esse países em que não se verifica o “efeito do Natal” existe o hábito de festejos em família, o tipo de casas é semelhante ao nosso (e poderia continuar a adicionar variáveis)? Os vírus transmitem-se mais facilmente em ambientes fechados em que estão muitas pessoas, e isso é o que acontece no Natal e fim do ano. Por que motivo existem um pico de afluência às urgências depois do fim do ano? Se a variável fosse o tempo frio, era uma grande coincidência o tempo frio ocorrer sempre com o mesmo timing".
Esta é a parte do comentário mais interessante por ser uma boa demonstração de uma espécie de iliteracia sobre os fenómenos naturais, que na verdade não é deste comentador, é um problema generalizado na sociedade.
Só a existência dessa iliteracia explica a dificuldade em encontrar informação da evolução da epidemia numa base geográfica abaixo do país.
Esta parte do comentário começa com uma observação bastante acertada: pode haver um conjunto enorme de factores a explicar a evolução da epidemia, escolher um - o Natal, o frio, a cultura de distanciamento das pessoas, o bom ou mau arejamento das casas, etc. - é sempre uma escolha arbitrária face à ignorância que temos sobre o que verdadeiramente tem conduzido a evolução da epidemia.
Como já mostrei mapas dos Países Baixos e da Alemanha com variações geográficas de incidência que são analisadas como se se tratasse sempre da mesma curva para a unidade geográfica país, hoje escolho o Reino Unido. Não encontrei o mesmo mapa para a Primavera, por isso vou usar o pico de Novembro e o pico actual, cujo reflexo na curva do país tem sido interpretado como resultante de haver mais ou menos medidas de controlo, no pressuposto, errado, de que estamos a ver a mesma curva e não a soma de duas curvas geograficamente distintas que por acaso ocorrem no mesmo país.
Se usasse a semana anterior a esta (a do Natal), a diferença seria mais evidente porque não aparecem a Irlanda do Norte e Norte de Inglaterra/ Sul da Escócia nas cores mais carregadas (pode verificar-se aqui, semana a semana).
Mas o que mais indicia a iliteracia sobre o mundo natural no comentário que venho usando, é mesmo esta frase: "Por que motivo existem um pico de afluência às urgências depois do fim do ano? Se a variável fosse o tempo frio, era uma grande coincidência o tempo frio ocorrer sempre com o mesmo timing".
Independentemente de se fazer notar que esse pico de urgências varia na dimensão de ano para ano (e isso não é explicável por Natais mais ou menos sociais), a verdade é que não há coincidência nenhuma em o tempo ter um padrão climático semelhante na mesma altura do ano, o que está em causa não é a meteorologia, mas o clima, o tal que nos permite esperar mais chuva em Abril, mais frio em Janeiro, mais secura em Agosto e por aí fora.
Claro que pode chover em Agosto, isso é do domínio da meteorologia, mas é razoável esperar tempo de praia em Agosto e geada em Janeiro, independentemente de não sabermos se não vai estar calor daqui a uma semana (não é provável, já agora, isso costuma acontecer mais pelo São Martinho).
O que tem acontecido com esta epidemia é que há um monte de matemáticos e médicos de clínica que resolveram interpretar a evolução dos surtos desta doença com base numa unidade geográfica errada - o país - e fazem sofisticadas análises matemáticas da curva que ocorre nessa unidade geográfica, como se ela tivesse algum sentido real, o que manifestamente é tanto mais errado, quanto maior e mais diverso é o país.
Até aqui, não é grave, o grave é quando com base numa série de silogismos lógicos - Froes dizia ontem na TVI que existe alguma probabilidade da nova estirpe se propagar mais em pessoas mais novas, logo maior afectação de grupos mais jovens significa maior contágio na sociedade, logo maior contágio na sociedade significa maior contágio nos mais vulneráveis, logo maior contágio nos mais vulneráveis significa mais casos graves, logo mais casos graves significa mais internamentos, logo significa mais cuidados intensivos, logo maior pressão sobre os serviços de saúde, logo é provável que tenhamos que reavaliar o ensino presencial para que os mais novos não infectem os avós - se influenciam decisões sociais brutais, como o fecho do ensino presencial, já defendido por várias pessoas e adoptados pelos políticos mais fragilizados de alguns países.
Que nenhum jornalista pergunte a Froes por que razão se acha no direito de, com essa fundamentação infantil, propor medidas que afectam os mais pobres e frágeis da sociedade, como os filhos das auxiliares de limpeza do hospital onde trabalha, mesmo que tenham os avós em Cabo Verde, é para mim um mistério.
Daqui a meia dúzia de horas teremos uma ideia mais clara de como está a evoluir a epidemia em Portugal, ao termos um termo de comparação entre os dados desta quarta-feira e da anterior.
Estou convencido de que há com certeza um crescimento razoável da epidemia, neste momento, que resulta da descida da área mais afectada, de Norte para Sul, que se conjuga com os efeitos nas doenças infecciosas pulmonares do frio (em rigor, do tempo, não faço ideia se é o frio, se é a combinação de frio, sol, humidade atmosférica e etc., que influencia a actividade viral e o comportamento das pessoas, o que sei é que nestas condições sinóticas, é habitual as urgências ficarem cheias de gente aflita com infecções pulmonares) que se faz sentir desde os dias 24 e 25 de Dezembro, ou doutro factor qualquer que desconheço.
E, provavelmente, também do contágio no Natal.
Qual é o peso de cada um dos factores na evolução da doença, e como lidar com eles é que não sei, o que sei é que as medidas de fecho coercivo da actividade nas sociedades, procurando limitar ao máximo os contactos sociais, não demonstram, até agora, ter um efeito tão relevante na evolução da epidemia que compensem os efeitos devastadores noutros parâmetros que não os da estrita contenção da epidemia.
Se dúvidas houvesse, a nossa - não é de Portugal, é mais ou menos em todo o mundo - incapacidade para proteger os lares da entrada de infecções, parece-me mais que suficiente como demonstração de que somos capazes de muito menos do que pensamos no controlo de infecções em geral e, por maioria de razão, da epidemia.
Pretender que as mesmas sociedades que são incapazes de criar barreiras eficazes entre a generalidade da sociedade e grupos vulneráveis, concentrados e claramente identificados, o conseguem fazer no conjunto da sociedade, parece-me pura estupidez.
Estou aberto a ser convencido de que a estupidez é minha, e não de outros.
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