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O drama da administração pública

por henrique pereira dos santos, em 02.02.25

Para uma visita rápida às entranhas da administração pública, pode-se, por exemplo, ler este artigo de Tiago Rebelo de Andrade.

Infelizmente termina como é habitual: "Se quisermos mudar este cenário, é fundamental promover uma reforma profunda no sistema de licenciamento em Portugal".

No caso é o licenciamento de construções, mas pode ser de qualquer coisa, acabamos quase sempre a concluir que temos de fazer reformas profundas de processos, sem mexer no essencial, a responsabilização dentro da administração pública.

O drama é que é praticamente impossível mexer nisso.

Tomemos o exemplo de uma notícia da semana passada, e que penso que virá na sequência de afirmações do governo, da semana anterior, sobre a dificuldade em recrutar dirigentes na administração pública (Leitão Amaro na Assembleia da República: "“Olhem para os concursos da Cresap e vejam a quantidade crescente que termina com a seguinte conclusão: a Cresap não conseguiu identificar o número mínimo de candidatos”).

A notícia dá origem à manchete do Público desse dia "Concursos no Estado repetidos por falta de candidatos atingem o máximo".

Dentro da notícia aparece o presidente da CRESAP a "alertar para a "dificuldade em atrair candidatos com mérito para o exercício das funções de dirigente de topo".

Só que esta afirmação é, no essencial, falsa, para ela ser verdadeira, ter-se-ia de verificar um imenso tempo de vacatura de lugares de dirigentes, demonstrando dificuldade em atrair pessoas para o exercício dessas funções, o que se verifica não é isso, o que se verifica é que não há candidatos aos concursos, que é matéria muito diferente: há muita gente que não está para se sujeitar às palhaçadas a que a CRESAP chama concursos.

Há algum tempo concorri para um lugar de chefe de departamento, nesse nível não há intervenção da CRESAP, o concurso seguiu o seu curso (longo curso, deve ter demorado mais de um ano) e tinha candidatos. É certo que parte dos condidatos é gente sem juízo que se candidata a tudo, mas havia candidatos suficientes para, tendo eu ganho o concurso mas por razões pessoais declinado a possibilidade de ocupar o lugar, o lugar foi ocupado pela pessoa que ficou em segundo no concurso, como é normal.

Mais tarde, concorri a dois concursos que, por serem de nível mais elevado, envolviam a CRESAP (eu tenho esta mania de concorrer a concursos quando são lugares para os quais tenho qualificações mais que suficientes).

Sobre outras vezes em que me relacionei com a CRESAP tenho escrito bastas vezes, como aqui, e aqui (neste caso vale mesmo a pena ler como era a mecânica da coisa até os tribunais obrigarem João Bilhim a cumprir a lei que se recusava a cumprir, apesar das intervenções da comissão de acesso aos documentos administrativos e da provedoria de justiça, que ignorava olimpicamente), ou aqui.

Nestas duas últimas vezes em que participei nos concursos, o resultado é ter sido classificado na "short list" como agora se diz.

No primeiro caso, o ministro, dois dias antes de deixar de ter a faculdade de nomear pessoas (graças à inovação constitucional de Marcelo Rebelo de Sousa a norma que impede governos em fim de vida de fazer nomeações foi completamente esvaziada), nomeou a pessoa que estava no cargo há quatro ou cinco anos em substuição, que era o único curriculum relevante na área de actuação do organismo em causa, no segundo caso, parece (digo parece porque os concorrentes nem são informados dos resultados dos concursos) que não havia três pessoas a tal "short list", o que implica nova abertura do concurso, evidentemente, com o mesmo resultado, de maneira que os membros do governo passam a ser livres de nomear outra pessoa qualquer que não concorreu (não estou a caricaturar, as regras são mesmo assim), e até hoje não faço ideia se nomeou ou não.

Encontrar uma pessoa para nomear é fácil, encontrar pessoas que estejam disponíveis a caucionar este enxovalho candidatando-se é que é mais complicado.

Dir-se-á que então é preciso reformar a administração.

Mas não é fácil, já que os responsáveis políticos nunca trabalharam na administração pública (podem ser professores universitários no Estado, ou ter andado por gabinetes ministeriais ou empresas públicas, mas nada disso ensina o que quer que seja sobre o que é a administração pública central), e contratam consultores para desenhar modelos de recursos humanos que nunca trabalharam na administração pública, razão pela qual pensam que a informação de gestão produzida tem o mínimo de fiabilidade (não é assim, como Fernando Alexandre descobriu por causa do número de alunos sem aulas).

Para melhorar o desempenho da administração pública, admitindo que grande parte dos dirigentes políticos até gostariam de ser capazes de o fazer (felizmente, nem todos têm a vocação para a degradação das instituições que define o legado político de António Costa), o que sobra, então?

O apoio dos dirigentes da administração pública, isto é, dos dirigentes que resultam destes processos de selecção manhosos, em que a principal qualidade dos que sobrevivem neste contexto é a capacidade de impedir que qualquer problema de gestão se transforme num problema político com repercussão pública, isto é, a capacidade para não fazer nada hoje, prometendo sistematicamente melhorias ... para amanhã, sem que ninguém se preocupe com a avaliação do que se fez ontem.

E é por isto que não vejo como sair destas areias movediças em que as relações dentro de cada unidade orgânica da administração não são as normais relações funcionais que permitem atingir resultados definidos, mas sim relações transacionais, hoje eu não levanto ondas que te possam ameaçar porque conto que amanhã não levantes ondas, quando isso me ameaçar.

E, parece-me, que é isto que tem permitido que, governo após governo, independentemente da vontade política, a administração pública desça, tranquilamente, uma rampa deslizante que só a sua falência deverá estancar.


8 comentários

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De Anónimo a 02.02.2025 às 18:38

Boa tarde HPS
Respeitosamente, assino por baixo.
Mas, tenho dúvidas se a falência estancará a "coisa"
Bom resto de Domingo. Saúde.
António Cabral
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De Filipe Costa a 02.02.2025 às 19:40

Trabalhei no INE em inicio de carreira, 2 anos, fugí mal pude. Aquilo não era uma empresa, era um deixa andar que irritava quem queria mais.
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De Anonimo a 03.02.2025 às 07:35

Estado mínimo. 
Doge!!
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De Francisco Almeida a 03.02.2025 às 11:03

Para governantes e assessores a administração pública é um pouco como o "Google". Funciona e responde se de antemão se soubermos o que procurar e como.
Mário Soares não sabia. Então substituiu o modelo salazarista de gabinetes com chefe, assessor e secretário por literalmente dezenas ou mais de assessores com os quais governava, ultrapassando competências de direcções-gerais e outros. A reacção foi a que o bom senso podia ter previsto: o alheamento e desinteresse, como regra, das estruturas regulares da função pública. E, se há casos em que a dedicação pessoal ainda funciona, também os há em que em que as directivas governamentais são deliberadamente sabotadas.
Hoje o problema é endémico. Cultural, se quiserem.
Como opinião meramente pessoal, isto só poderá ser alterado com um choque cultural. Mais claramente com uma mudança de regime. Este, neste e noutros aspectos, está esgotado.
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De passante a 03.02.2025 às 22:43

Este, neste e noutros aspectos, está esgotado.


Já muita gente percebeu, a esmagadora maioria dos quais mantém estrito segredo. Mas devem aparecer depois a virar a casaca e abominar a "longa noite chupista" 
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De Anónimo a 03.02.2025 às 11:28

Absolutamente de acordo com a opinião expressa pelo sr Francisco Almeida
António Cabral 
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De Anónimo a 04.02.2025 às 20:12

O drama é que é praticamente impossível mexer nisso.

Dir-se-á que então é preciso reformar a administração.

E é por isto que não vejo como sair destas areias movediças...



Moto-serra argentina e, depois, o mais difícil: contratação imparcial de servidores da causa pública. O "drama" é que esta cultura acabou...
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De Anonimo a 04.02.2025 às 21:41

Portugal precisa de um Musk e um DOGE.

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