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A comissão independente sobre abusos sexuais na igreja católica, em Portugal, tinha uma missão difícil, a de caracterizar a situação referente a um crime que é, por natureza, muito elusivo.
E sobre ser muito elusivo, ocorre dominantemente no contexto de relações de poder assimétrico (pais e irmãos mais velhos, treinadores desportivos, guias espirituais, conselheiros, amigos próximos, professores, etc.) em que as vítimas são escolhidas pela sua vulnerabilidade e em que o contexto é favorável ao agressor.
É favorável ao agressor, não apenas por ter uma relação de poder sobre a vítima, mas também por ter relações privilegiadas com a comunidade envolvente (seja a família, o grupo desportivo, a igreja, o escutismo, etc.), que tornam muito difícil à vítima, quando se consegue libertar as relações de dependência em relação ao agressor, ter uma envolvente social de apoio.
Nestas circunstâncias, não há muita alternativa que não passe por ter um crivo muito largo de aceitação de testemunhos, chegando ao ponto de aceitar testemunhos como "Nascido na década de 30, M preencheu o inquérito online com a ajuda de um neto. Conta que, com 14 anos, foi uma vez confessar-se, numa igreja importante de uma cidade do Norte e o padre lhe fez perguntas «impróprias e sexuais. Disse: "já namoras? Já puseste as mãos nas maminhas da tua namorada? e nas coxinhas?" (…) Fui-me embora e nunca mais entrei numa Igreja.» Contou aos pais que lhe pediram «para não falar»". (testemunho transcrito aqui).
Até aqui, nada a dizer sobre isto, como digo, tenho as maiores dúvidas de que houvesse qualquer alternativa a isto.
Questão diferente é a forma como depois alguns membros da comissão, com especial destaque para Daniel Sampaio, pretenderam equivaler testemunhos a denúncias e interpretações da realidade em orientações normativas, chegando Daniel Sampaio a fazer afirmações gravíssimas que se escusa de fundamentar, como considerar que há tentativas de desvalorizar o relatório feito (sempre sem concretizar mais do que "arautos daquilo que eu tenho chamado as pessoas que não querem uma igreja renovada") e, pior ainda, "a igreja é responsável por milhares de vítimas de abuso sexual" (não acreditei que Daniel Sampaio tivesse dito isto, ispsis verbis, mas está aqui, vale a pena ouvir a partir do minuto 26).
Por puro acaso, há hoje um artigo no Observador sobre responsabilidades de entidades colectivas em crimes com dolo que explica muito bem o problema: "atenção que a responsabilidade penal das empresas não pode servir como ‘biombo’ ou ‘para-raios’ da responsabilidade individual das pessoas individuais; atenção que a responsabilidade penal das empresas é e tem de ser autónoma, assente em fundamentos e critérios próprios, e não nasce nem se forma automaticamente por decalque, como mera consequência acessória da responsabilidade penal de pessoas individuais."
A preocupação de Daniel Sampaio é claríssima, tão clara que salta levianamente por cima de direitos fundamentais que separam a civilização do resto: "quando eu proponho que os padres devem ser imediatamente afastados, os padres suspeitos, ..., há razões para isso, é porque essas pessoas não são doentes mentais no sentido rigoroso do termo, são até pessoas muito bem inseridas na comunidade, são pessoas que prestam relevantes serviços, porque são pessoas que desempenham funções importantes, mas são pessoas que têm uam sexualidade perturbada, de uma forma muito simples são pessoas que têm um alerta sexual perante a imagem de uma criança ... portanto se essas pessoas não tiverem uma intervenção teraupêutica, essas pessoas ficam em alerta sexual, e portanto nós estamos a ter muitas pessoas que estão em risco de repetir o crime que cometeram".
Qual é o problema?
É quando se verifica que isso significa que deve ser suspenso um padre que é padre há mais de quarenta anos porque há uma denúncia anónima, sem caracterização dos factos que permita avaliá-los.
Estou a defender que este testemunho anónimo deve ser desconsiderado?
De maneira nenhuma, há matérias sobre as quais não ponho as mãos no fogo por ninguém, e já aprendi o suficiente sobre o problema de abusos sexuais de menores para saber que não se podem descartar testemunhos deste tipo, nem se podem invocar as consabidas virtudes públicas das pessoas visadas como penhor da ausência de vícios privados.
Mas, como diz Daniel Sampaio, se é de um abusador que falamos, então esse testemunho serve essencialmente para que se procurem apurar outros testemunhos, se a situação é como Daniel Sampaio a descreve, mais de 40 anos padre devem ser suficientes para que o crime se tenha repetido e haja outras vítimas hoje caladas, ou a vítima que testemunhou se sinta hoje suficientemente segura para dizer, mesmo sob anonimato, onde e quando ocorreram os factos descritos.
Insistir na lógica tremendista de que todos os referidos em denúncias que não podem ser validadas, porque lhes falta o mínimo dos mínimos de elementos verificáveis, devem ser sumamente imolados, como se acusações injustas sirvam as vítimas existentes e não criem novas vítimas de outro tipo, serve apenas para reforçar a convicção de que a comissão independente fez um relatório que serve como diagnóstico da situação, mas não é lá grande coisa como bússola para orientação da acção futura.
E que a insistência de alguns membros da comissão nas posições públicas que têm tido (Daniel Sampaio, na entrevista ligada acima mente com a maior das facilidades, ao dizer que a confusão sobre a lista de nomes foi criada pela conferência episcopal e não pela própria comissão independente que anunciou uma lista e entregou uma lista substancialmente diferente da que anunciou) resulta apenas das suas agendas pessoais e não de qualquer compromisso nem com as vítimas passadas e muito menos com as vítimas potenciais futuras.
E isso cria um risco de efeito de boomerang sobre o trabalho da comissão (bem como a credibilidade dos seus membros) que não interessa a ninguém.
"Por isso, o Direito tem um enorme cuidado no que toca a denúncias anónimas. Em Portugal, para que uma denúncia anónima seja sequer investigada, é preciso que existam indícios de um crime. Não basta dizer às autoridades informações vagas, sem sequer nomear a vítima. Uma denúncia que se limite a dizer que a pessoa x fez o crime y há z anos terá como destino o lixo.
Isto é um princípio básico de qualquer Estado de Direito. Qualquer pessoa tem o direito de não ver a sua vida investigada e revirada"- José Seabra Duque
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