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Por coincidência, tinha intenção de fazer uma crónica sobre um dia dedicado a questões ambientais, e hoje o Público tem duas páginas sobre Rachel Carson, em que, sem surpresa, lá aparecem os comentários de Viriato Soromenho Marques, para ilustrar a tese do tal post que tinha intenção de fazer.
Pediram-me (a mim e a mais um monte de pessoas, não sei com que critérios, nem isso me interessa muito), para comentar um plano de gestão de valores naturais de uma empresa. Para isso, a empresa organizou uma sessão, no campo, mandando antecipadamente o documento que queria discutir.
Tudo normal, portanto, para mim.
Mas não para uma das pessoas que estavam presentes que fez questão de dizer, no fim, que embora depois se tenha esbatido essa ideia, a sensação de partida era a de que a empresa a estava a usar.
Por lhe pedir umas horas de trabalho gratuito, o que eu compreenderia?
Não, era mesmo porque, achando-se a pessoa em causa muito importante (não o disse, claro, é a minha interpretação), a empresa só poderia estar a convidá-la para fazer o que agora se chama greenwashing.
Confesso que nem percebi a lógica do raciocínio: a empresa está a fazer um documento interno para ter melhores práticas de gestão dos valores naturais nos milhares de hectares que gere, contrata uns consultores para os ajudar a fazer o plano, pede a um conjunto de pessoa diversificado que comentem o plano para o rever e melhorar, e uma das pessoas convidadas, imediatamente, se sente usada e envolvida num processo de greenwashing.
Note-se que a empresa não fez uma sessão pública, não tinha jornalistas metidos ao barulho, mandou o plano a pessoas cuja opinião considerou útil ouvir, não pediu nada em troca - para além da leitura do plano e umas horas de uma sessão no campo, a quem, por cortesia, serviu um almoço normal e no fim deu um saquinho com três produtos da empresa -, mas há quem, imediatamente se sinta a ser usado para esverdear a imagem da empresa.
De onde vem isto?
Exactamente de uma visão moral do ambientalismo que Viriato Soromenho Marques sintetisa maravilhosamente num dos seus comentários sobre Rachel Carson e o seu "Primavera Silenciosa", publicado há sessenta anos: "Rachel Carson mostrou muita coragem nos anos 60 - e ainda hoje há poucas pessoas que o fazem - que, se analisarmos, dos departamentos e institutos que trabalham na área dos insectos [nos EUA], só 2% se focam em controlo biológico (controlo natural das pragas), sendo que os restantes 98% recebem financiamento da indústria química. E esta entrada em cena do dinheiro faz toda a diferença".
Passemos por cima do facto de Viriato Soromenho Marques estar a dizer que o que diz resulta de quem lhe paga, visto ser esse o critério que usa para falar de terceiros, e note-se como esta formulação elimina toda a discussão racional sobre o uso de químicos: são intrinsecamente maus e se, por acaso, houver investigação que diga o contrário, é porque é financiada pelos interesses da indústria química.
Esta visão conspirativa do mundo é muito, muito generalizada, ao ponto da jornalista que faz o artigo varrer para debaixo do tapete o maior problema criado pela publicação de "Silent spring" e de toda a manipulação emocional associada ao uso de químicos (curiosamente, só na agricultura, quando se trata da química da saúde, há sempre muita teoria de conspiração sobre os interesses da "Big Farma", mas ninguém se lembraria de dizer que só uma percentagem mínima da investigação é que se dedica à homeopatia, ou à acunpuntura, ou outra coisa qualquer que se queira escolher, e por isso a investigação farmacêutica não é válida, porque a "entrada em cena do dinheiro faz toda a diferença").
"O DDT era apresentado como uma panaceia para a malária em países africanos - e, por isso, os detractores acusaram Rachel Carson de "assassinar" milhões de crianças afectadas pela doença".
Mais uma vez, deixemos de lado o facto da jornalista que escreve sobre o assunto não saber que a malária não era um problema dos países africanos, mas um problema quase global, que apenas poupava as regiões demasiado frias para que o vector da doença se aguentasse.
O controlo da malária em países pobres foi fortemente prejudicada pelas restrições no uso do DDT, morrendo muito mais gente anualmente de malária que pessoas afectadas pelo DDT desde a sua invenção, mesmo nos anos de uso desregrado do DDT, sem qualquer consideração pelos seus efeitos secundários.
A Organização Mundial de Saúde ainda hoje apoia o uso de DDT no interior de casas nas regiões onde a malária é um problema maior (ainda hoje morrem milhares de pessoas de malária e outras doenças em que o DDT pode ser útil, enquanto componente dos programas integrados de gestão do vector dessas doenças), coerentemente com o facto da convenção sobre pesticidas persistentes (convenção de Estocolmo) ter uma excepção para o seu uso por razões de saúde.
Rachel Carson tinha razão quanto ao facto de ser necessário mais conhecimento sobre tecnologias novas, mais controlo independente do seu uso e sobre o facto dos poluentes persistentes se espalharem nos ecossistemas, com problemas ambientais potenciais muito relevantes.
Não tinha razão nenhuma sobre a forma como se deve lidar com isso (todas as suas previsões sobre o futuro, mais ou menos como acontece com qualquer pessoa que resolva descrever hoje o que vai acontecer amanhã, revelaram-se grosseiramente erradas), ao pretender que a solução era não recorrer aos químicos de síntese e diabilizar os interesses dos que ganham dinheiro criando soluções para problemas reais.
No fundo, um bocado como o que define o ponto de ruptura entre a parte do movimento ambientalista de que faço parte (em qualquer caso, ultra-minoritária) e a generalidade do movimento ambientalista (o tal das teorias de conspiração) sobre o regadio.
Para a esmagadora maioria do movimento ambientalista, o regadio e, genericamente, a intensificação agrícola (um bocadinho selectiva, é muito divertido ver a diferença de encarnecimento contra o olival intensivo por comparação com a razoável complacência para com a vinha), deve ser combatido na raiz, defendendo-se o montado, a produção extensiva de alimentos e outras coisas que tais que conhecemos há duas ou três gerações.
Não consigo perceber como ao introduzir água e nutrientes, ou seja, aumentando a produtividade primária, que o mesmo é dizer a base das cadeias tróficas, se obtêm sistemas piores ou com menos opções.
É verdade, é nessa parte em que estamos todos de acordo, que ao intensificar o uso agrícola (ou florestal) estamos a simplificar sistemas (desde sempre, desde que deixámos de ser caçadores-recolectores, portanto muito antes do capitalismo e da "entrada em cena do dinheiro"), e que nessa simplificação se perde diversidade.
Ganhamos riqueza, morremos mais tarde, alimentamo-nos melhor, somos mais a usar o engenho humano para gerir melhor as nossas vidas e o nosso mundo, somos mais criativos, vivemos vidas com mais liberdade, ou seja, há benefícios decorrentes das tecnologias, incluindo a química, com largo destaque. Gostaria de sublinhar esta contribuição da química para a nossa qualidade de vida para contrariar a ideia de que para se ser ambientalista é preciso ser quimiofóbico (embora isso não pareça incoerente com o facto de se defender que o uso de contraceptivos químicos foi fundamental para redefinir o papel das mulheres na sociedade).
Se, para ter tudo isto, temos de simplificar sistemas e perder valores que não queremos perder, o que temos é de melhorar os nossos modelos de gestão, usar melhor o génio humano, para reintroduzir complexidade nesses sistemas, mantendo os benefícios que resultam do facto de sermos capazes de manipular a água e os nutrientes para aumentar a produtividade dos sistemas.
Comigo não contam para a posição dominante no movimento ambientalista, que essencialmente é uma posição reaccionária de medo da mudança e de recusa da tecnologia.
Tenho muito respeito pelas comunidades Amish, que se mantêm fiéis aos seus valores, mas eu não partilho esses valores: eles que vivam como entenderem, e que me deixem a mim viver como entender.
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