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Nós e eles

por João Távora, em 15.12.22

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Chamou-me a atenção no passado sábado (sim, continuo a ler o Expresso aos sábados) o artigo da Eugénia Galvão Teles que fazia referência aos resultados de um estudo de uma equipa de economistas sobre a importância do “Capital Social” (a rede de relações) feito através da análise das amizades de 72 milhões de americanos no Facebook publicado na revista “Nature”. Acredito que com gráficos coloridos e números minuciosos a evidência da relevância do meio que cada um frequenta para o seu sucesso ganhe outro brilho, no caso um “fundamento científico”. É sob esse mote que a autora reclama a legitimidade das famosas quotas no acesso ao ensino superior para as escolas dos bairros desfavorecidos. Ainda na área do ensino, que é supostamente o principal campo de batalha para a mobilidade social (não caí no erro de escrever luta de classes), a cronista bate-se na defesa dum ensino público interclassista, porque “os mais prejudicados com o desaparecimento dos mais ricos da escola pública são os mais desfavorecidos”. Nada mais verdadeiro: em termos práticos quer dizer que urge promover, portanto, a liberdade de escolha no ensino. Ao contrário, tudo o que a marca socialista nas nossas políticas tem feito nas últimas décadas em Portugal vai no sentido da consolidação dessa estratificação social, dividindo os mais pobres e os menos pobres entre escola publica e privada. É disso exemplo a extinção progressiva dos contratos de associação do Estado com as escolas privadas, que as tornava acessíveis aos mais desfavorecidos – uma bandeira do governo da geringonça.

Essa estratificação social tem-se vindo a agravar de tal forma que suspeito que para muita gente com menos de quarenta anos seja difícil de acreditar que eu, um autêntico “menino família”, no final dos anos sessenta tenha frequentado a 1ª e 2ª classe na Escola da Câmara n. 6 em Campo de Ourique (paredes meias com o Casal Ventoso) e a 3ª e 4ª classe na Escola n.º 68 da Rua da Bela Vista à Estrela. Isto pela altura da reforma do ministro Veiga Simão, quando há muito a primária era obrigatória e estava universalizada, se não em Portugal, pelo menos em Lisboa. Escusado será dizer que isso acontecia com bastante normalidade no meu meio social, solução vista nas grandes famílias como uma forma de nos preparar para a “vida real”. O bem que me fez e os amigos que ganhei.

Outra instituição de particular importância na “miscigenação” social que também não é muito querida dos poderes em voga é a Igreja Católica, que ao contrário de algumas caricaturas sempre foi um espaço interclassista e intercultural. Nas paróquias, toda a sorte de actividades, desde a catequese aos retiros espirituais, passando por peregrinações ou campos de férias, sempre me pareceram espaços profundamente interclassistas, duma mistura saudável de diferentes sensibilidades e vivências. Sendo também possivelmente do desconhecimento das actuais elites nas suas bolhas, nos dias de hoje, no nosso país, à frente de algumas comunidades paroquiais, podemos encontrar padres de diferentes etnias, africanas ou orientais, espelho de uma diversidade social e étnica que se estende aos fiéis que as frequentam. De resto, todos os grupos de interesses, mais ou menos formalmente associados, continuarão sempre a tudo fazer para subir a escadaria do poder, favorecendo relacionamentos endogâmicos. Por exemplo, não conheço grupo social mais estratificado e preconceituoso que o académico, mas será injusto não referir muitos outros, sejam de advogados ou economistas, que cuidadosos nas suas ligações pessoais se promovem mutuamente, na ânsia de reconhecimento ou promoção social – é da natureza humana.

O que me parece certo é que em Portugal é difícil encontrar pessoas descomplexadas e descomprometidas com os corredores do poder – somos pobres e mal-habituados. E o pior é que neste nosso mundo hedonista existem cada vez menos pessoas que percebam qual é o poder que realmente conta e verdadeiramente liberta. Esse problema não se resolve com enfáticas denúncias, decretos ou medidas ortopédicas. Só através da mudança do coração de cada um. Para explicar isto não são necessários gráficos e dados estatísticos, talvez baste perceber o verdadeiro sentido Natal.

Tenho pena que o artigo da Eugénia Galvão Teles, que é uma pessoa civilizada, não tenha ido por aí.


10 comentários

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De balio a 15.12.2022 às 16:34


os contratos de associação do Estado com as escolas privadas, que as tornava acessíveis


Está mal escrito, sugerindo algo de errado. Deveria ter escrito "os contratos de associação do Estado com algumas escolas privadas, que as tornava acessíveis".


De facto, os contratos de associação somente existiam para algumas, muito poucas, escolas privadas, escolhidas a dedo - de forma corrupta, ao que parece. Portanto, só alguns, muito poucos, alunos de classes desfavorecidas tinham acesso a algumas, muito poucas, escolas privadas.
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De balio a 15.12.2022 às 17:43

Aliás, estou em crer que boa parte das escolas privadas, se lhes fosse dado ter contratos de associação, não os quereriam ter. De facto, para muitos clientes de tais escolas, a principal vantagem delas é, precisamente, serem frequentadas somente por alunos selectos de classes sociais selectas.
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De henrique pereira dos santos a 16.12.2022 às 14:11

Dizes cada asneira sobre a vida dos outros e sobre o que os outros fazem, que até faz confusão.
O Estado que abra essa possibilidade (porque lhe fica mais barato e logo se vê o que fazem as escolas e as pessoas.
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De balio a 16.12.2022 às 14:35


O Estado que abra essa possibilidade


E eu acho muito bem que a abra, basicamente só com duas condições:


(1) Que a todas escolas privadas seja dada a possibilidade de terem contrato de associação, e não somente a algumas (escolhidas de forma mais ou menos suspeita).


(2) Que os alunos sejam colocados nas escolas com contrato de associação exatamente nos mesmos moldes em que são colocados nas escolas públicas, isto é, sem que às escolas sejam dado escolher os alunos que querem ter.
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De balio a 15.12.2022 às 16:40


não conheço grupo social mais estratificado e preconceituoso que o académico


Depende do ramo de saber.


No Direito, que penso ser a área do João Távora, isso talvez seja verdade. Noutros campos, não é.


Até porque, nesses outros campos, toda a gente tem doutoramento, e quase todos são professores auxiliares - devido à inexistência de concursos de acesso a outras categorias. Por isso, não há verdadeira estratificação.
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De entulho a 15.12.2022 às 16:56

conheci o ximanjinho em Coimbra antes da partida da anedota para Lourenço Marques
numa latada fui num burro alugado aos ciganos a gozar o dito
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De mariam a 15.12.2022 às 19:01

Em 1955/56 em duas aldeias que vivi, já os miúdos frequentavam a Escola. Na verdade os que tinham mais possibilidades vieram a ter mais sucesso.
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De Francisco Almeida a 16.12.2022 às 12:41

Tempos houve em que o mais eficaz "elevador social" - expressão muito moderna e inadequada ao passado histórico - era o favor real. Como exemplo, D. João II quebrava todas as regras sociais em favor do que hoje talvez se pudesse chamar meritocracia.
Cortando linha, no tempo de Salazar, esse elevador funcionava bem. Três dos mais importantes ministros de Salazar eram de origem muito humilde. E a igreja sempre foi um activo agente nesse campo. Quando o pároco de aldeia se apercebia que um miúdo de destacava, convencia os pais a enviarem-no para o seminário que seria a única forma de poderem prosseguir os estudos depois da primária. Se no seminário verificavam que não tinha vocação ou era enviado para Lisboa, Porto ou Coimbra com uma carta de recomendação ou lhe era garantido um emprego, muitas vezes tutor, que lhe permitisse frequentar a universidade.
Claro que não é modelo a que hoje se aspire mas, ainda assim, parece-me mais eficaz do que o actual sistema em que a selecção é avaliada pela disponibilidade para colar cartazes nas campanhas eleitorais e subsequente "carreira" nas jotas.
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De jo a 16.12.2022 às 13:26

É um pouco confuso. diz que as pessoas procuram a escola privada para se isolarem dos mais pobres, depois diz que se o Estado financiar a escola privada os pobres irão para lá. Ora a escola privada desse ponto de vista só faz sentido porque segrega os pobres dos ricos. Se for subsidiada passará a ser uma escola segregada, mas subsidiada.
As escolas com contrato de associação distinguem-se muito pouco das escolas públicas, quer em meios quer em qualidade do ensino lá praticado. A diferença era o modo de financiamento.
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De s o s a 16.12.2022 às 23:01

basta a pureza do Autor (mudança do coraçao)...
Infelizmente a denuncia dos tais contratos  de associaçao sao uma  treta só para  "ingles" ver.
Comigo terminavam mesmo. Como outro fosse poder pois que voltasse aos contratos. Se eu novamente no poder outra vez acabaria com eles...

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