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É fácil constatar que é cada vez mais difícil juntar 10 convivas num jantar sem o risco de uma zanga e alguns amuos numa cacofonia de arengas inconvenientes. As redes sociais confirmaram que deixou de existir um chão comum, uma base de entendimento, que toda a gente, mesmo toda, pode ter e afirmar a sua opinião muito própria, sobre história, física quântica ou teologia, e até da vida dos outros. Há muito que as opiniões de alguns, os mais afoitos ou até alcoolizados, extravasou o café do bairro para o Facebook ou o Twitter. Entretanto, as correntes de opinião foram sendo cortadas em fatias cada vez mais fininhas para dar para todo o pessoal, cada vez mais categórico e cioso da sua originalidade.
Evidentemente que ainda sobram os grupos de amigos que não subjugam uma boa conversa a um duelo de opiniões ribombantes arremessadas para prazer narcísico, ou apenas por “intransigência nos princípios”. A boa conversa é uma arte delicada que não resiste à tirania de quem quer impor uma perspectiva “muito sua” da verdade, muito menos da vida alheia. O pior por estes dias é mesmo a atomização das razões por que cada um pugna, com tanto denodo. Tempos houve em que poucos mais temas como o divórcio ou a homossexualidade fracturavam os salões da sociedade que “contava” – hoje tudo serve e o país tornou-se num gigantesco circo de indignações. A democratização das opiniões deu cabo das velhas regras de boa educação e do bom senso que durante séculos serviram para domesticar os mais extremos ímpetos opinativos, com um normativo que delimitava o âmbito das conversas, para não aborrecer os convivas (não se falar de doenças) ou evitar que a refeição acabasse numa zaragata (não falar de política e religião). Aqui chegados, constata-se que as opiniões próprias que todos se vêm animados a cultivar revelou-se um exercício pouco mais que estéril. Como toda a gente sabe é esse o destino das ideologias em decadência: foi o que aconteceu com os trotskistas de quem se dizia que “um trotskista é um partido, dois são uma internacional, três preparam uma cisão”. Ou o fenómeno acontecido com o movimento monárquico depois de 1910, definhando num processo de apuramento insaciável de pureza ideológica e de princípios, enquanto o Estado Novo punha ordem nas hostes. Ou como a direita portuguesa que desistiu de tentar juntar liberais e conservadores, num processo de desmultiplicação em correntes de graduação progressiva. E vem o Chega dar mau nome aos conservadores, há décadas (ou séculos, desde o rei Dom Miguel) oprimidos no colete-de-forças que era o CDS quando queria ocupar o centro político - um lugar à mesa do destino da Pátria. Já para não falar dos católicos entrincheirados em correntes progressistas ou tradicionalistas, guerras intestinas pela missa em latim, contra a missa em latim, contra a comunhão na mão ou a favor da comunhão na boca, a favor do Papa quando é “progressista” e contra ele quando é conservador – as discussões que para aí correm, meu Deus!
Evidentemente que toda esta impertinente vozearia é potenciada pelas redes sociais, instigando permanentemente os incautos utilizadores ao desafio a fazer exaltados juízos definitivos sobre tudo e nada, com a pretensão que lhes cabe – a cada um - o sagrado papel de educar o seu semelhante – sim, eu sei que isto tudo começou com os blogs, e que eu tenho a minha parte de culpa. O problema é que este fenómeno, que na política nos roubou o pouco sossego possível em democracia, um chão comum e algum sentido do longo prazo, está a transformar o sistema num exercício ensurdecedor de populismo, de gente exaltada e ofendida em constante troca de posições. É neste ambiente que emergem das catacumbas dos partidos personagens de inimaginável vulgaridade.
Mas o pior mesmo – e é essa a mais grave das ameaças - é permitirmos que esta cacofonia invada os salões das nossas casas a estragar qualquer conversa civilizada, livre de moralismos ou proselitismos. Cuidado, não deixem que o Twitter se sente à vossa mesa, que o que sobra da nossa civilização ruirá bem mais depressa, pois não haverá convivialidade que resista. Uma opinião é apenas uma opinião, e só tem utilidade a quem a pedir. Por favor, não no-la gritem aos ouvidos.
* Título adaptado do genial livro “Não me grite” de Quino, cujo desenho da capa ilustra esta crónica
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