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Não me gritem! *

por João Távora, em 24.05.23

Não me grite.jpg

É fácil constatar que é cada vez mais difícil juntar 10 convivas num jantar sem o risco de uma zanga e alguns amuos numa cacofonia de arengas inconvenientes. As redes sociais confirmaram que deixou de existir um chão comum, uma base de entendimento, que toda a gente, mesmo toda, pode ter e afirmar a sua opinião muito própria, sobre história, física quântica ou teologia, e até da vida dos outros. Há muito que as opiniões de alguns, os mais afoitos ou até alcoolizados, extravasou o café do bairro para o Facebook ou o Twitter. Entretanto, as correntes de opinião foram sendo cortadas em fatias cada vez mais fininhas para dar para todo o pessoal, cada vez mais categórico e cioso da sua originalidade.

Evidentemente que ainda sobram os grupos de amigos que não subjugam uma boa conversa a um duelo de opiniões ribombantes arremessadas para prazer narcísico, ou apenas por “intransigência nos princípios”. A boa conversa é uma arte delicada que não resiste à tirania de quem quer impor uma perspectiva “muito sua” da verdade, muito menos da vida alheia. O pior por estes dias é mesmo a atomização das razões por que cada um pugna, com tanto denodo. Tempos houve em que poucos mais temas como o divórcio ou a homossexualidade fracturavam os salões da sociedade que “contava” – hoje tudo serve e o país tornou-se num gigantesco circo de indignações. A democratização das opiniões deu cabo das velhas regras de boa educação e do bom senso que durante séculos serviram para domesticar os mais extremos ímpetos opinativos, com um normativo que delimitava o âmbito das conversas, para não aborrecer os convivas (não se falar de doenças) ou evitar que a refeição acabasse numa zaragata (não falar de política e religião). Aqui chegados, constata-se que as opiniões próprias que todos se vêm animados a cultivar revelou-se um exercício pouco mais que estéril. Como toda a gente sabe é esse o destino das ideologias em decadência: foi o que aconteceu com os trotskistas de quem se dizia que “um trotskista é um partido, dois são uma internacional, três preparam uma cisão”. Ou o fenómeno acontecido com o movimento monárquico depois de 1910, definhando num processo de apuramento insaciável de pureza ideológica e de princípios, enquanto o Estado Novo punha ordem nas hostes. Ou como a direita portuguesa que desistiu de tentar juntar liberais e conservadores, num processo de desmultiplicação em correntes de graduação progressiva. E vem o Chega dar mau nome aos conservadores, há décadas (ou séculos, desde o rei Dom Miguel) oprimidos no colete-de-forças que era o CDS quando queria ocupar o centro político - um lugar à mesa do destino da Pátria. Já para não falar dos católicos entrincheirados em correntes progressistas ou tradicionalistas, guerras intestinas pela missa em latim, contra a missa em latim, contra a comunhão na mão ou a favor da comunhão na boca, a favor do Papa quando é “progressista” e contra ele quando é conservador – as discussões que para aí correm, meu Deus!

Evidentemente que toda esta impertinente vozearia é potenciada pelas redes sociais, instigando permanentemente os incautos utilizadores ao desafio a fazer exaltados juízos definitivos sobre tudo e nada, com a pretensão que lhes cabe – a cada um - o sagrado papel de educar o seu semelhante – sim, eu sei que isto tudo começou com os blogs, e que eu tenho a minha parte de culpa. O problema é que este fenómeno, que na política nos roubou o pouco sossego possível em democracia, um chão comum e algum sentido do longo prazo, está a transformar o sistema num exercício ensurdecedor de populismo, de gente exaltada e ofendida em constante troca de posições. É neste ambiente que emergem das catacumbas dos partidos personagens de inimaginável vulgaridade.

Mas o pior mesmo – e é essa a mais grave das ameaças - é permitirmos que esta cacofonia invada os salões das nossas casas a estragar qualquer conversa civilizada, livre de moralismos ou proselitismos. Cuidado, não deixem que o Twitter se sente à vossa mesa, que o que sobra da nossa civilização ruirá bem mais depressa, pois não haverá convivialidade que resista. Uma opinião é apenas uma opinião, e só tem utilidade a quem a pedir. Por favor, não no-la gritem aos ouvidos.

 

* Título adaptado do genial livro “Não me grite” de Quino, cujo desenho da capa ilustra esta crónica


16 comentários

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De Anonimo a 25.05.2023 às 14:38


Nenhuma novidade, isso já está mais que estudado, e admitido por elementos das próprias empresas.
A ideia passa por prender as pessoas ao ecrã (ao nível da televisão, com a diferença de que não levamos, ou levávamos, a televisão debaixo do braço como carregamos um telemóvel, nos transportes, emprego, etc), mas também por gerar tráfego. Daí a aparência das aplicações, e o conceito da recompensa rápida. Não interessa às empresas que uma pessoa passe horas agarrada a ler um artigo, mas sim que o reenvie, que o comente, que o avalie. Tráfego gera dinheiro, e gera dados, que por sua vez também se transformam em dinheiro.
Há já aí uma geração de agarrados, que não vivem sem instagram ou tiktok, do mesmo modo que alguns não vivem sem a dose de que substãncia for.

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