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Quando em toda a Europa havia casos registados de infecção com o novo corona vírus, os media portugueses davam notícia de um Portugal incólume à epidemia, acolhiam a garantia da Direcção Geral de Saúde de que o vírus não chegaria cá, e nem sequer colocavam a hipótese de alguma insuficiência de diagnóstico, de algum descaso e impreparação. Eu não tenho qualquer necessidade de media que celebram a nossa suposta singularidade, cegos à mais elementar curiosidade, interrogação ou suspeita.
Quando os primeiros casos foram registados em Portugal, os media portugueses decretaram imediatamente que nenhum país estava preparado para isto, o que é verdade; mas do mesmo passo varriam para debaixo do tapete o facto de alguns países estarem mais impreparados do que outros, como Portugal estava clamorosamente. Omitiram assim os anos de cativações, de diminuição de horário de trabalho e de calotes a pessoal e fornecedores que levaram à ruptura vários sectores do Serviço Nacional de Saúde. Eu não preciso para nada de media que, em defesa do poder, fingem que são iguais situações radicalmente diferentes, e desculpam com catástrofes sanitárias o que resulta sobretudo de incúria, má gestão e satisfação de clientelas.
Eu não preciso para nada de media que admoestam as pessoas por usar máscaras que dão «falsa sensação de segurança», que minimizam a utilidade dos testes por eles não estarem acessíveis, que fazem descaso das luvas pelas mesmas razões de «falsa sensação de segurança». Eu não sigo nem respeito media que admoestam as pessoas para que usem máscaras, e ponham luvas, e façam testes, logo que o poder muda de ideias.
Quando se tornou evidente a tragédia económica que resultará da tragédia sanitária, os media portugueses esqueceram-se da primeira. Esqueceram-se dos anos de aumento ininterrupto da dívida pública – cujo disfarce falsário em «diminuição em percentagem do PIB» sempre tinham engolido –, esqueceram-se da baixa taxa de crescimento e do empobrecimento relativo do país – cujo disfarce enganoso em «aumento acima da média da EU» sempre tinham celebrado – e passaram a apontar dedos e discursos excitados a uma Europa imaginariamente cruel e egoísta, que se preparou, foi previdente, e agora não quer pagar a perdulários e ideologias falidas. Eu nunca terei qualquer falta destes media que torcem a realidade para incensarem o poder que os subsidia.
Quando as entidades oficiais divulgam números da pandemia com um pico diário de 1500 infectados a seguir a uma infecção diária de 300 e antes de um dia com 500 infectados, os media papagueiam os números e transmitem-nos como se fossem fiáveis e sérios. Eu não tenho a menor necessidade de media que levam a falta de questionamento e escrutínio a este grau zero de profissionalismo. Não preciso, dispenso e desprezo media que recusam a pluralidade; recusam a pluralidade política, e recusam a pluralidade científica, não debatem nem se interrogam sobre nada, não são curiosos, não estudam nem perguntam, apenas promovem unicidade e pânico.
Quando o poder decide colocar todo o país em quarentena e fechar toda a gente em casa, os media portugueses assumem prontamente a missão de correia de transmissão do poder, seus arautos, seus justiceiros. Ralham com os portugueses, a que chamam «desequilibrados», ou «ignorantes», ou «irresponsáveis». Vêem pessoas ser «detidas» sem sequer se interessarem sobre porquê, e onde, e como, e com que fundamentos, e em que termos e com que destinos. Eu indigno-me com media que celebram os excessos autoritários de autoridades com o rei na barriga, ou que criticam 20 portugueses por passearem esparsamente num areal de 3 quilómetros. Eu tenho nojo de media que assumem esta vocação presunçosa e estúpida e ameaçadora de pastores e vigilantes do povo, em nome do poder que incensam.
Agonia-me a reverência dos media perante primeiro-ministro e governo, a passividade e falta de contraditório com que acolhem todos os ditames; e enoja-me que disfarcem o seu comportamento ovino e acrítico arvorando-se em heróis do escrutínio e do contraditório (e da patetice) em relação a chefes de governo e de Estado de outros países que não o deles.
Eu considero irresponsáveis, e abúlicos, e serviçais e estúpidos os media que papagueiam que não vai haver austeridade (que nunca deixou de haver), que lamentam a morte do bom registo dos «essenciais» da economia (que nunca passaram de artifício), e do mesmo passo ignoram – ignoram em absoluto, omitem crapulosamente – as situações de desemprego, fome e falência que acontecem no país, agora mesmo, debaixo dos seus olhos com palas, agravados pela incúria de 5 anos.
Eu não preciso para nada de media que se alvoroçam contra «fake news» e «redes sociais» onde, porém, se encontra todos os dias informação, dados, perguntas, dúvidas, debate, críticas que escapam aos media, miseravelmente.
No «Dia da Voz», o pivô do telejornal diz que a voz já era comemorada no hino nacional «quando refere os egrégios avós» Eu dou de barato que ele talvez saiba que se trata dos «egrégios avós», e não de «egrégios a voz». Mas registo que não compreendeu que a voz dos avós de que fala o hino é mais do que as cordas vocais, é, sim, o exemplo e o legado. E registo ainda que o pivô escolheu para celebrar a voz o relato de um comentador desportivo aquando da vitória de um português numa etapa da Volta a França. Escolheu isto quando teria escolhas sobre vozes para todos os gostos: a voz do «band of brothers» ou de «o meu reino por um cavalo»; a voz de Luís XIV ou dos enciclopedistas; a voz do sonho de Luther King ou do «império do mal de Reagan»; a voz vil de Hitler ou a voz heróica de Winston Churchill; a voz de Carreras ou Domingo ou Amália ou Araújo. Ficou-se pelo relato excitado de um feito desportivo. Eu dispenso em absoluto esses media que pairam a este grau zero de cultura.
*Abro excepção de tudo o que escrevo para o Observador, e não por escrever para lá, episodicamente, mas porque é um dos poucos órgãos de informação onde sobrevive a curiosidade, a serenidade, a pluralidade e o escrutínio.
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Olha! Parece quase a história do Cavaco com a Quin...
Calculo que tenha lido uma pequena sátira antiga e...
Parabéns. Excelente ironia da nossa triste realida...
estudei matemáticas dita superiores. nunca levei a...
Sendo tudo isso verdade, e por isso referi no post...