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Mitos e ideologia

por henrique pereira dos santos, em 17.08.24

"Rien ne ressemble plus à la pensée mythique que l'idéologie politique". (Lévi-Strauss)

Fizeram-me notar que eu faria uma "vasculha constante sobre a temática colonial para dulcificar a questão".

É o tipo de processos de intenções a que estou habituado, quer quando discuto fogos, eucaliptos, gestão florestal, epidemias, gestão de paisagem, conservação da natureza, enfim, assuntos sobre os quais me interesso em determinado momento e sobre os quais resolvo ler, tanto quanto possível, fontes relativamente primárias (ou melhor, literatura académica cujas fontes primárias eu consigo escrutinar minimamente).

Note-se que desses assuntos, apenas sei um bocado mais de gestão da paisagem (que inclui a conservação da natureza), nos outros sou um leigo, um leigo interessado em determinado momento, mas um leigo.

O que acontece é que perante textos, posições, ideologias, investigação em que estranho as conclusões, por não baterem certo com o que é a minha sensibilidade e bom senso (as duas são evidentemente limitadas e informadas pelo conhecimento que tenha dos assuntos), faço a mim, e a terceiros, perguntas que têm como objectivo avaliar até que ponto a minha subjectividade tem, ou não, fundamento.

Não tenho, de maneira geral, uma agenda ideológica prévia muito definida (alguma ideologia terei, claro), o que tenho é, de forma muito clara, a ideia de que o mundo objectivo que existe é formado por muitos mundos subjectivos, portanto a procura de objectividade não se pode basear apenas no que uma pessoa qualquer pensa (eu, ou outra pessoa), mas num esforço de conciliação de diferentes mundos subjectivos (diria que sem Lévi-Strauss eu não escreveria este parágrafo, mas ele não tem responsabilidade nenhuma nas asneiras que eu possa ecrever, são minhas, mesmo que eu ache que as fui buscar, pelo menos parcialmente, a outros).

Cito em francês (e faço uma tradução google) por causa da beleza da última frase que se perde na tradução pelo facto de em francês pensamento ser feminino e mundo masculino, e em português os dois serem masculinos "La connaissance ... consiste dans une sélection des aspects vrais, c’est-à-dire ceux qui coïncident avec les propriétés de ma pensée. Non point comme le prétendaient les néo-kantiens, parce que celle-ci exerce sur les choses une inévitable contrainte, mais bien plutôt parce que ma pensée est elle-même un objet. Etant « de ce monde », elle participe de la même nature que lui" ("O conhecimento...consiste numa selecção de aspectos verdadeiros, isto é, daqueles que coincidem com as propriedades do meu pensamento. Não como afirmavam os neokantianos, porque exerce uma restrição inevitável sobre as coisas, mas antes porque o meu pensamento é em si mesmo um objeto. Sendo “deste mundo”, ele (o pensamento) participa da mesma natureza que ele (o mundo)").

Quando me irrito com uma citação deturpada de uma publicação e se refere que o comércio de escravos representou 20% das receitas da coroa portuguesa num determinado momento, não é porque queira dulcificar nada, é porque é uma aldrabice que dificulta a delimitação das tais visões subjectivas que nos ajudam a aproximar-nos do mundo objectivo que existe (ou existiu).

A citação está errada: não diz respeito a todo o período de dois ou três séculos do comércio colonial, mas a um curto período no século XVIII, não diz respeito ao comércio de escravos, mas a todos o comércio colonial, incluindo o asiático, o período em causa é excepcional porque ao longo desses dois ou três séculos as receitas da coroa provenientes da opção colonial andaram bem abaixo dos 5% e a explicação para esse curto período excepcional está perfeitamente identificada e prende-se com o quinto do ouro do Brasil.

E por estar errada não contribui para conhecermos melhor o mundo objectivo que existe ou existiu, mas para obscurecer a nossa compreensão do mundo.

É legítimo que se questione o que interessa isso a quem não é historiador.

A mim interessa-me bastante por razões puramente intelectuais (não gosto de ser aldrabado, é uma coisa que me chateia) mas interessa-me mais ainda porque me ajuda a compreender melhor outros fenómenos coloniais, como o imposto de palhota e suas consequências.

A questão é relevante apenas a partir do fim do século XIX, princípios do século XX e tem efeitos ainda hoje no mundo real, mas também nos mundos subjectivos de cada um de nós, que influenciam as decisões quotidianas que vamos tomando.

Se, como me parece claro, a política colonial, longe de ser um maná para as finanças públicas era um sorvedouro de recursos, compreende-se melhor as razões para se procurar criar uma fiscalidade colonial que fizesse coincidir o custo de gestão e do Estado com os beneficiários da actuação do Estado.

Se, como parece claro a quem deturpa grosseiramente a citação, a política colonial era um maná para as finanças públicas, o esforço fiscal tentado sobre as populações originárias (andei às voltas para arranjar um termo que evitasse discussões sobre linguagem colonial e decolonial) das colónias tem de ter uma explicação diferente da procura de evitar a contestação em Portugal com os recursos gastos em colónias sem grande utilidade geral (embora com utilidade para alguns que viviam do comércio colonial, incluindo de escravos e estatutos de trabalho forçado subsequentes).

Em economias de baixa monetarização, a colecta de impostos é um problema e um problema gigantesco em zonas que, para além de pouco monetarizadas, têm uma presença reduzidíssima da administração e do Estado (relatório da administração no Norte de Moçambique, em 1936, portanto, uns sete anos depois do fim da concessão a uma companhia majestática "No tocante a agricultura, não há actualmente, um unico europeu que a ela se dedique em todo o antigo distrito do Niassa. Por si só este facto é bem elucidativo para mostrar o atrazo em que vegeta uma área que tem vez e meia o tamanho de Portugal metropolitano. Outrora, no tempo da Companhia, registava-se uns punhados de agricultores brancos em Metangula e na Amaramba, mas temos de confesssar que, nesse capitulo, apenas retrocedemos. (..) O comercio não dá sinais de progredir. Em 1929, havia duas lojas em Mandimba e outra em Metónia. Actualmente, desapareceu uma em Mandimba e existem duas em Vila Cabral.”).

A solução encontrada foi substituir o pagamento em dinheiro por trabalho forçado. Para mim, porque a economia era muito pouco monetarizada e o impostos era excessivo, para quem deturpa a citação, porque esse era o mecanismo para criar legalmente "novos escravos".

O facto de haver indícios seguros de, em determinada altura, haver excesso desses trabalhadores forçados ao ponto da administração (ao arrepio das regras) ter começado a fazer produção agrícola própria (com provável interesse próprio dos administradores, com certeza) não levanta dúvidas a quem olha para esta realidade sempre partindo do princípio de que o objectivo da administração era criar mão de obra forçada, a mim levanta, não por querer dulcificar estas práticas coloniais coercivas, mas porque gosto de tentar perceber o mundo tal como ele é (ou foi).

Em Moçambique (que conheço melhor, Angola é outro mundo), este tipo de actuação deu resultados muito diferentes a Sul do Save (a monetarização da sociedade e consequente pagamento do imposto foi resolvida com a emigração temporária para as minas sul africanas), a Norte (em que uma agricultura camponesa foi largamente desestruturada pela inadequação do imposto à realidade existente) ou ao Centro, em que até 1941 subsistiu uma companhia majestática extractivista que substituía o Estado.

A guerra civil pós independência pode ser muito mais bem compreendida percebendo as diferentes evoluções dentro do país ao longo do século XX que mantendo o mito de uma unidade nacional anti-colonialista, que nunca existiu.

Também a compreensão da rápida mudança que se foi operando no país ao longo do século XX, nos seus primeiros 75 anos antes da independência, ajudam a perceber melhor o dano que os mitos fundadores da república de Moçambique causaram ao país, em especial a sistemática destruição de capital humano que foi justificada com base nesses mitos.

Para não sair do campo das pessoas frequentemente citadas pelo seu humanismo, note-se que quando o famoso Bispo da Beira chega (imediatamente após o fim da companhia majestática que governava no centro do país), a área sob sua jurisdição, que era quatro vezes o tamanho de Portugal, contava com 34 padres, 9 seculares e 25 religiosos (franciscanos e jesuítas) 18 irmãos auxiliares e 22 irmãs franciscanas missionárias, havendo 14 paróquias e sendo os católicos cerca de 1,9% da população (concentrados, católicos, padres e religiosos nas zonas mais urbanas). Pouco mais de vinte anos depois, quando morre, havia 74 padres, 163 missionários, 34 paróquias e missões, os católicos eram pouco mais de 15% da população em praticamente um terço do território inicial, porque entretanto tinham sido criadas as dioceses de Quelimane e Tete.

E nos dez anos seguintes, até à indepedência, a evolução do território acelera muitíssimo, razão pela qual eu não consigo perceber como se continuam a apresentar as características coloniais dos anos 30, 40 ou mesmo 50, como permanecendo quase inalteradas, apenas com outros nomes, em meados dos anos 70 (outro exemplo, a partir de 1961, quer Angola, quer Moçambique, passam a ter estruturas universitárias, incipientes, inicialmente, com certeza, insuficientes em 1974, com certeza, mas muito longe do que era o panorama que acima citei em 1936, mesmo nos territórios mais recônditos).

Resumindo, o que me motiva não é dulcificar coisa nenhuma, ou ter algum ganho argumentativo, numa citação que um dos meus orientadores do doutoramento atribuía a Lévi-Strauss, mas cuja confirmação nunca cheguei a fazer, "Lóbjectif reste le meme: detruire le préjugé", é isso que me faz escrever aqui e ali.


5 comentários

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De Paulo a 17.08.2024 às 14:41

E muito agradeço que continue a escrever, pois é raro encontrar um espírito tão livre e tão pouco disposto a embarcar neste estupidificante "espírito do tempo"
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De Carlos a 18.08.2024 às 10:23

Continue, pf., e tenhamos esperança de que as coisas, neste particular, vão ficar melhores.
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De Francisco Almeida a 18.08.2024 às 11:10

Faço meu o primeiro comentário de Paulo.
Angola era de facto muito diferente e, creio eu, o abuso com o trabalho forçado, especialmente no algodão e na arregimentação para S. Tomé, terá sido mais grave. Por outro lado, sendo menos "europeiamente civilizada" teria menos diferenciação do que em Moçambique, sobretudo na área de influência sul-africana.
A grande diferença era entre Luanda e o resto. Apesar da beleza da baía, Luando tinha todas as más características do Portugal europeu. Uma urbanização caótica - uma armazém com telhado de zinco ai lado de um prédio de dez ou mais andares, uma cintura de musseques (que já o prof. Pacheco de Amorim criticava em folheto clandestino nos anos 50). Era sobretudo, uma cidade de funcionários. Foi, em toda a Angola, o único local onde presenciei uma cena de violência (um pontapé) sobre um negro (vale o que vale mas foi a minha experiência pessoal).
Agora não tenho a mais pequena dúvida de que Angola foi uma criação portuguesa. Sem Portugal nunca Angola teria sido uma unidade política.
E o que Angola é hoje, é igualmente uma criação, não de Portugal mas de uma pequeníssima facção que ocupou o poder a seguir ao 25 de Abril. Sem Melo Antunes, como MNE a autorizar os Antonov russos a escalar os Açores e sem Rosa Coutinho a instalar os cubanos ainda antes da independência, nunca o MPLA poderia ter dominado Angola.
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De anónimo a 18.08.2024 às 12:33

Escavatura?. O "negócio de escravos" nunca foi um, o negócio da "coroa portuguesa" em África. Os intervenientes activos sempre foram, ao tempo: os chefes tribais vencedores, os proprietários da cadeia comercial de trocas e distribuição de mercadorias e o cliente final.

De um lado panos, anéis de cobre, bebidas ... do outro sobretudo marfim e ouro se o houvesse. Escravos?. Da costa oriental de África para a Madagascar e Índia. Da costa ocidental de África para as Américas.   

Na África austral -ao contrário das invasões inglesa, holandesa com características de infiltração, domínio, exploração e establecerem-se em todo o vasto território- as pindérica, minúsculas presenças portuguêsas em pontuais feitorias, na Costa, sempre tiveram como realidade -ao tempo do negócio de escravos- as míticas "Possessões da Coroa Portuguesa", do Fidelíssimo Soberano(a) Rei de Portugal e dos Algarves... e Costa do Oceando Índico desde o Cabo (da Boa Esperança) até ao Rovuma.

Ao tempo da escravatura o rendimento das alfândegas nunca foi enriquecimento. Era apenas um formato -muitas vezes ignorado pelos demais actores na região- de afirmar os (pseudo) domínios de Sua Majestade o Rei de Portugal.   
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De Licínio Bingre do Amaral a 20.08.2024 às 16:28

Havia Coca-cola em Angola antes do 25 de Abril.
Não havia era na metrópole.

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