Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]
Joana Gorjão Henriques lá prossegue o seu objectivo de vida, o de ser uma espécie de Simon Wiesenthal dos racistas.
Não vou perder tempo com pormenores sobre se havia Coca-cola em Angola antes do 25 de Abril (acho que não, que era só em Moçambique), nem sobre a opção de ter mais testemunhos de pessoas que explicam que testemunhos deveriam os retornados dar, que testemunhos directos dos próprios.
O que verdadeiramente me interessa neste post é um aspecto muito curioso que consiste na sistemática desvalorização, ao ponto do silenciamento (silenciamento relativo, nestas coisas mais institucionais, o que não falta é literatura memorialista com esse tipo de testemunhos), dos testemunhos de quem viveu nos anos sessenta e setenta nessas colónias, sem ser originário.
Não vou perder tempo com a distinção entre colono e originário, mas gostaria de fazer uma breve referência à natureza evidentemente racista com que essa distinção é usada, frequentemente, em textos institucionais e académicos. A peça de Joana Gorjão Henriques tem um exemplo magnífico na expressão, usada por Dulce Maria Cardoso "eu, pequena colona". O que distingue um pequeno colono de um originário, se não a cor da pele? A que propósito se atribui a qualificação de colono a um filho de um colono, haverá um ferrete hereditário que será preciso carregar, faça cada um o que faça da sua vida? Quem usa esta expressão é uma romancista, uma pessoa que trabalha com palavras e a expressão é magnífica "eu, pequena colona", mas tem um problema: socialmente não quer dizer nada e remete para um vazio, porque não existem pequenos colonos, quando cada pessoa é olhada por si mesma.
A resposta a estas perguntas procurarei enquadrá-la mais à frente, em torno do meu argumento central: quando se olha para pessoas, em vez de se olhar para estruturas sociais, o mundo parece diferente, por mais que se reconheça que as pessoas existem em contextos sociais e são as pessoas que fazem os contextos sociais.
Talvez consiga explicar melhor o que pretendo dizer fazendo uma citação cuja origem não identifico por ser irrelevante, o que me interessa é a ideia base que explica a mais que estafada opção de não ouvir uma parte da sociedade porque já "ouvi centenas de vezes a ladaínha da mundivivência colona (ou retornada) que insistentemente remete para experiências pessoais que dulcificam os traços "pesados" no regime colonial".
"O regime europeu em África foi bastante diversificado.... Ainda assim tinha duas características básicas:
a) racismo: a crença na legitimidade da tutela exercida sobre os locais, pretos. ... na década de 60 ... as barreiras raciais administrativas foram muito aliviadas, as sociais algo matizadas, nesgas de assimilacionismo urbano medraram. São essas nesgas que sempre surgem convocadas no memorialismo dos ex-colonos....
b) opressão e sobreexploração".
Que isto é assim, não me parece que haja dúvidas, pelo menos a mim, o que está escrito apenas suscita dúvidas sobre a dimensão dessas nesgas na primeira metade dos anos 70 do século XX, dúvidas que só podem dar origem a discussões produtivas se forem assentes em investigação assente em números e factos (o que é muito raro, nestas matérias, se é raro na história económica, ainda mais é nas dimensões sociais da história, tanto quanto me parece).
O que me interessa aqui é tentar perceber como havendo um grupo social enorme (a tal mundivivência retornada), cujo discurso sobre a realidade é bastante consistente, apesar da sua diversidade (a tal ladaínha), pessoas experimentadas na investigação do discurso de terceiros achem aceitável ignorá-lo porque não bate certo com o modelo, com o tal "regime colonial".
Não me interessam nada cabotinos como Álvaro Vasconcelos que entendem que cada pessoa branca era uma peça do sistema colonial e deveria fazer uma espécie auto-crítica à maneira da revolução cultural maoista, como forma de se purificar desse pecado.
Também não me interessam académicos que produzem trabalho científico onde escrevem isto " Em meados da década de 1940, em Moçambique havia 15.641 mestiços registados, representando 57 por cada 100 brancos; já em Angola havia 61 mestiços por cada 100 brancos, num total de 31.564 mestiços (Lemos, 1947: 17). Estes dados adquirem particular interesse quando comparados com a realidade de regiões vizinhas: nessa altura havia mais de dois milhões de brancos na África do Sul, quando em Moçambique, com 5,7 milhões de habitantes, havia 48.000 brancos (Anderson, 1962: 100). De facto, apesar de o carácter supostamente aberto à mestiçagem por parte dos portugueses ter sido a principal bandeira do luso-tropicalismo em contextos africanos, estes números falam por si. O suposto humanismo e a natureza mestiça da colonização portuguesa eram desmascarados por estes números", sem que percam um minuto do seu tempo a explicar o que é os números dizem sobre mestiçagem ou o que quer que seja que desmascare qualquer humanismo, nem sequer expliquem o interesse da comparação feita com o África do Sul nessa matéria.
Mas há outros, bem melhores, com quem nascem conflitos de ideias que eu não esperaria e que não compreendo facilmente.
A hipótese que tenho, que ajuda a explicar as razões para descartar os testemunhos de uma parte substancial da sociedade, substituídos por prédicas de terceiros sobre as razões pelas quais se pode dizer que o que os outros viram, não era o que viram, tem uma raíz ideológica funda: uns olham para regimes e organizações sociais, determinadas pelas estruturas de poder, outros, como eu, olham para pessoas e para uma mão invisível que "que ergue e destroi coisas belas", para citar o Caetano Veloso.
Daí a resistência dos primeiros em aceitar que o colonialismo da primeira metade dos anos setenta do século XX estava muito longe do "regime colonial" da primeira metade do século XX, e a resistência dos segundos em aceitar que mesmo estando muito longe, subsistiam nele muitos aspectos que se vêem melhor à luz das suas raízes racistas e opressivas.
Joana Gorjão Henriques, noutro contexto que não o dos artigos que fez agora, diz que questiona a “perspectiva de brandura de olhar sobre nós próprios, portugueses”.
O que me distingue dela é que só estou de acordo com a frase até à vírgula, a perspectiva de brandura de olhar sobre nós próprios é da natureza humana e atinge-nos todos por igual, é um assunto com o qual o racismo tem muito pouca relação.
E é por isso que, para mim, todos os testemunhos são iguais no sentido em que todos precisam de ser verificados com informação tão objectiva quanto possível, porque ninguém é bom juiz em causa própria.
O que, infelizmente, tem sido difícil aceitar em matérias controversas, como a relação entre colonialismo e racismo (que está longe de ser uma relação linear).
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.
Caro SenhorPercebe-se (?) que a distribuição cultu...
"..., não podia ter sido mais insólita, mais bizar...
Como (ex) vizinho de duas, tirando o cheiro pela m...
Muito bem! É sempre um gosto lê-lo/ouvi-lo.Cumprim...
Ontem como hoje como sempre os trastes cobardes nu...