Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]
Conheço o Miguel há muitos anos e foi um dos meus três orientadores do doutoramento: Teresa Andresen, que foi a minha orientadora principal e sem a qual eu não teria feito doutoramento nenhum, Miguel B. Araújo e Carlos Aguiar.
Estarei sempre em dívida para com eles porque qualquer deles foram fundamentais para o resultado final (hesitei bastante nesta concordância verbal. Eu sei que a regra é dizer nem ele, nem ela foram eleitos deputados, porque os dois poderiam ser eleitos, e nem ele, nem ela foi eleito presidente da república, porque só um poderia ser eleito, mas tenho dúvidas sobre a concordância na frase que escrevi).
Todos tiveram uma enorme paciência para as minhas idiossincrasias e, ao mesmo tempo, um respeito intacável pela minha liberdade na forma como decidi fazer a tese. Penso que não me enganarei muito se disser que nenhum deles terá concordado com as minhas decisões sobre a forma de fazer a tese e todos eles terão acahado que poderia ter feito uma coisa muito mais sólida que o que fiz, se seguisse os seus conselhos em matéria de praxis académica.
No fundo, no fundo, penso que partilharão da opinião de um dos arguentes da tese: isto era como se fazia ciência no século XIX, actualmente já ninguém faz ciência assim (e eu tendo a concordar com esta observação).
O Miguel, academicamente, é o exacto oposto de isto tudo, é o que eu ironicamente caracterizo como um industrial da publicação: publica muito, bem e com um sentido apurado do mercado para que está a produzir ciência.
Acresce que publica numa área que para mim é mais metafísica do que eu estou disposto a ler, portanto nem sou um grande leitor dos artigos do Miguel, mas quando preciso de perceber alguma coisa neste domínio, o que o Miguel escreve é sólido e é-me útil.
Talvez eu possa dizer que o Miguel parte das grandes abstracções associadas à modelação de processos naturais para tentar ter respostas sobre o concreto, exactamente o percurso inverso de Carlos Aguiar, que parte da observação atenta do concreto para a compreensão das questões gerais e estas duas perspectivas complementares foram igualmente fundamentais para o que fui fazendo na tese.
A verdade é que não tenho a menor apetência para a tralha académica e para a formatação académica do pensamento e não fora o esforço dos meus três orientadores, seguramente não teria feito tese nenhuma: eu não tenho a menor vocação para investigador, a metafísica interessa-me pouco e gosto mesmo, mesmo, é de pensar o que tenho de fazer hoje para obter um resultado amanhã, fazê-lo, ver se o resultado é o que esperei, que nunca é, claro, para poder olhar para os desvios à procura de corrigir o que pensei mal antes.
É por isso que este exercício do Miguel para que faço ligação no primeiro parágrafo me parece tão interessante e, já agora, tão útil para me dar algum alívio intelectual em relação às minhas dúvidas sobre o que tenho escrito sobre a epidemia.
O que o longo post faz é uma retrospectiva sobre o caminho intelectual de alguém que tenta capturar os processos naturais em modelos, e por isso, por ter dedicado tanto esforço e tempo ao assunto, do que mais fala é de incerteza e da evidente dificuldade em reproduzir processos naturais em modelos, um trabalho nunca acabado porque não é possível reproduzir processos naturais complexos em modelos, o mais que conseguimos é ir tornando os modelos cada vez mais úteis, à medida que vamos percebendo por que razão se afastaram na realidade na tentativa anterior.
Trata-se de uma enorme diferença para esta tendência recente de substituir a realidade pela produção de modelos, partindo do pressuposto de que sabemos o suficiente para tomar decisões com base nos modelos que estão suficientemente próximos da realidade para isso.
Quando o Miguel escreve: "Os desafios futuros nesta matéria são, portanto, menos de cariz científico—onde os progressos das últimas décadas foram tão notáveis como subutilizados—e mais na área da transferência de conhecimento e da tecnologia, assim como no domínio normativo e dos interfaces entre a ciência e a política" eu só posso discordar (como discordo muitas vezes de qualquer destes meus três orientadores, apesar de saber que qualquer um deles sabe muito mais que eu) porque decorre de posições sociais e políticas em que estamos em pontos muito distantes.
Ao contrário do Miguel, não estou convencido deste papel da ciência e, muito menos, de que a sub-utilização dos progressos científicos não se deva também à natureza da ciência tal como ela é produzida hoje, de forma manifestamente desligada da sociedade.
Claro que existem os factores que o Miguel enuncia acima, o que não existe é a possibilidade de isso se resolver por mera transferência dos resultados científicos, como se esses resultados científicos não fossem inerentemente parcelares e incapazes de integrar a imensa diversidade do mundo e das sociedades.
O que é notável, para mim, não são estas diferenças - algumas irreconciliáveis - mas sim o Miguel, reconhecendo a incerteza e as limitações do seu trabalho, continuar empenhado em chegar ao mundo das pessoas e do concreto.
Tenho a certeza de que questionado com a pergunta que tenho ouvido frequentemente ser feita a outros modeladores, ao longo deste ano, "mas acha que isto vai ser mesmo assim?" o Miguel nunca se satisfaria com a resposta que também tenho ouvido frequentemente: "é o que diz o modelo".
Tenho a certeza que depois de dizer que "é o que diz o modelo", acrescentaria, mas o modelo não é a realidade, e há este e aquele aspecto que devem ser tidos em atenção, se se quiser utilizar o modelo como orientação para as opções a tomar, o que não deve ser feito sem compreender bem o modelo que está a ser usado.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.