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Memória e cultura democrática

por henrique pereira dos santos, em 15.02.18

O Facebook teve a delicadeza de me lembrar de um post que aqui fiz há um ano e que vem mesmo a propósito de haver tantos dos meus amigos que acham que o escrutínio de mails oficiais de um gabinete ministerial, feita pelo Ministério Público, cumprindo todas as regras processuais, é uma devassa inadmissível só justificável com suspeitas gravíssimas.

Ora a verdade é que não é assim.

O post que fiz na altura já era sobre Mário Centeno e sobre a escusa em mostrar trocas de comunicações no âmbito das suas funções, com o argumento de seriam comunicações privadas.

Até Francisco Louçã, na altura como agora, parecia o mais institucionalista dos revolucionários defendendo que as comunicações privadas de servidores públicos, trocadas no âmbito das suas funções públicas, são correio privado e, como tal, invioláveis.

Que Francisco Louçã, cujo respeito pelas regras da democracia formal não é propriamente sólido, esteja ao lado de tantos ditadores neste tipo de argumentação, não me espanta: todos os autocratas são pardos em matéria de escrutínio do poder pelos cidadãos.

Que Centeno não tenha ainda percebido que a natureza de serviço público do seu cargo acarreta maiores responsabilidades de transparência e não maiores garantias de privacidade, não me espanta porque corresponde uma à cultura política de António Costa.

Se dúvidas houvesse sobre isso (apesar dos inúmeros exemplos de falta de respeito democrático pelo parlamento na forma como se recusa a prestar informação aos deputados), bastaria o famoso caso do relatório sobre adjudicações na Câmara Municipal de Lisboa: apesar de, desde o primeiro momento, António Costa saber bem quais eram as suas obrigações legais, foi obrigando os contribuintes a pagar uma querela jurídica que durou mais de dois anos nos tribunais, só tendo acabado no Tribunal Constitucional por não haver instância de recurso, antes de cumprir a lei.

António Costa, nisto, como nas outras coisas, não está muito interessado nos princípios, na qualidade da democracia, no reforço dos escrutínio do poder mas apenas nos efeitos políticos sobre si, e na verdade conseguiu o que queria: quando o relatório foi tornado público já António Costa tinha feito o controlo de danos, alterado os procedimentos e podia dizer tranquilamente que o relatório se referia a um passado que entretanto tinha sido mudado por sua iniciativa.

E os custos para si foram irrisórios: do ponto de vista material, foram os contribuintes que pagaram esta litigância de má-fé, do ponto de vista político não há risco nenhum da sua imagem ser beliscada pela obstrução ao escrutínio público que, noutros países, teria destruído a carreira política de quem tentasse fazer uma coisa destas.

E este é o problema, nós achamos mesmo, apesar destes anos todos de aprendizagem democrática, que António Costa foi muito hábil a gerir a situação e que isso de escrutinar o poder é uma ingenuidade de idiotas porque todos sabemos que são todos iguais, olhós submarinos, olhá Tecnoforma, e não saímos disto.

É por isso que tiradas como esta, "E, a não ser que haja fundamentos que não tenham ainda vindo a público, não considero razoável que se tenha acesso aos emails do Ministério das Finanças.", vindas de quem vem esta, Luís Aguiar-Conraria, que não conheço pessoalmente mas por quem tenho vindo a aumentar o meu apreço para seriedade que põe no debate público, com um doutoramento feito no país que cito no meu post de há um ano, quando havia uma investigação séria ao facto de eventualmente haver emails de Hillary Clinton não registados como é obrigatório, são tiradas que me deprimem profundamente.

A ideia de escrutínio público do poder é tão frágil em Portugal que pessoas informadas, com princípios democráticos bem aferidos, ainda têm dúvidas de que todos os mails de serviços públicos, em especial de gabinetes de membros do Governo, são, por definição, públicos, mesmo que haja o normal desfasamento entre a sua produção e o conhecimento generalizado do seu conteúdo.


2 comentários

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De Isabel a 15.02.2018 às 13:59

Vamos ao fundo do problema: em Portugal há escrutínio sério de alguma acção política? 
O partido que manda na AR é o mesmo que manda no governo. E, portanto, é o mesmo que faz as leis que a justiça aplica e decide sobre o funcionamento e os meios de que esta dispõe. Sobre separação de poderes, estamos conversados.
Em conjunto, os deputados que estão na AR foram eleitos por 45% dos eleitores ( 55% de votantes menos votos brancos, nulos e em cerca de 12 partidos que não elegeram nenhum deputado; e não venham com a história dos eleitores registados que não existem porque analisadas as estatísticas eles não passam de 1 ou 2% ) e ninguém sabe quem são 99% deles. Sabe-se, sim, que foram designados pelas chefias dos partidos. Chefias essas que eles próprios elegeram e que não  representam mais do que uma das correntes que coexistem dentro do partido. 
Se pensar que os militantes dos partidos constituem uma percentagem mínima dos eleitores e que essa pouca gente decide tudo, sendo que tudo é cada vez menos já que Bruxelas vai chamando a si sempre mais competências sem que a gente saiba de nada, admira-se que não haja escrutínio e que se discutam bilhetes de futebol em vez da adequação de um sistema político desenhado em 1975 aos problemas de hoje ou da justeza do caminho que a Europa está a tomar e as implicações para 
o futuro do país?
Todo o pseudo-debate em Portugal conduz à mesma questão: será que não há mesmo questões de fundo a colocar?
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De pitosga a 15.02.2018 às 21:01

Henrique Pereira dos Santos, o Senhor explicou-se muito claramente.
Felicito-o

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