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Dizem-me que morreu hoje o Manuel do Rato.
O Manuel não se chamava assim, era Manuel Quental, mas era da casa do Rato, tal como o meu pai era o João do Aidinho por ser da casa do Aidinho, e eram dois grandes amigos, separados por milhares de quilómetros durante muitos anos.
Grande parte do que escrevo hoje sobre paisagem tem raízes mais fundas em conversas com o Manuel que na minha licenciatura e doutoramento em arquitectura paisagista.
O António, seu filho mais ou menos da minha idade, era o meu grande amigo quando eu estava no Covelo. Naquela altura o trabalho era bem a sério e bem cedo, de maneira que lá ia eu com o António para a rega, esbandeirar o milho, vindimar ou com as vacas para o monte, na posição privilegiada de quem não tinha obrigações mas dava uma mão, quanto mais não fosse para libertar o António mais cedo do trabalho para irmos ao que nos interessava.
Nunca soube se realmente o Manuel não percebia as entradas e saídas do António pela janela do quarto para corrermos as festas todas das aldeias ali à volta, ou se percebia muito bem o que se passava mas, desde que ao romper da manhã o António pegasse ao trabalho e o Manuel pudesse manter intocada a sua posição de pai severo e autoritário (e se era autoritário), deixava correr as coisas por saber que a vida é o que é.
Muito do interesse que fui ganhando em compreender o mundo rural nasceu à volta da mesa daquela casa, uma travessa para todos, cada um com o seu talher (nas primeiras vezes ainda vinha um prato para mim, que estaria habituado a outra maneira de fazer as coisas, mas rapidamente essa deferência da Ana passou à história) o jarro de vinho que se tinha ido encher à adega servia a todos directamente (aí sim, eu tinha direito a um copo de água, eu não bebia vinho, uma esquisitice que se aceitava à conta das manias da cidade, mesmo que se estranhasse tanto que quando a minha avó me viu beber água, com seis anos, me perguntou se eu estava doente) e falava-se sobretudo do trabalho que ainda era preciso fazer, da vaca que tinha a pata magoada, da chuva que faltava ou vinha a mais e milhares de outros assuntos que fazem a vida de um agricultor que sabe que o sustento da família depende do trabalho de todos e da orientação que ele lhe dava.
O Manuel era um homem culto (penso que teria a quarta classe, não mais, não tenho a certeza), lia bastante, era correspondente da Tribuna de Lafões (não tenho a certeza, hoje, de qual dos jornais regionais era correspondente, mas penso que era deste), era louvado, fazia avaliações de terrenos por muito lado e era um homem a quem se pedia conselho, por saber, por ser inteligente, muito inteligente, e por ter um sólido bom senso.
Numa das últimas vezes em que conversei com o Manuel, a Ana, já cega e que tinha passado um sofrimento horrível durante umas horas em que, sozinha em casa, desencaixou um osso que a impedia de procurar ajuda e não havia ninguém para ouvir os gritos, já tinha aceitado ir para o lar em Valadares, a quatro quilómetros de casa, e até estava muito satisfeita por afinal ter lá muitas raparigas do seu tempo.
O Manuel resistia a ir também para o lar, apesar das dificuldades em andar e outras mazelas próprias de quem tinha quase 90 anos, mantendo-se estoicamente sozinho em casa (com visitas frequentes das filhas e do António) e dizia-me, a rir-se de orgulho: vou visitar a Ana, desde que foi para Valadares, não lhe falhei um dia, e lá subia meio a custo para o trator, fazia os quatro quilómetros para Valadares, e voltava depois para a casa de onde não queria sair.
A última vez que o vi já foi mesmo no lar, quando finalmente se rendeu à evidência de que essa era a melhor solução para todos, começando por ele próprio.
A Ana morreu há meses e o Manuel deve ter achado que já lhe estava a faltar há demasiados dias.
Obrigado Manuel, eu duvido que acredite nisto, mas com poucas pessoas aprendi tanto.
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