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Manchester by the sea

por henrique pereira dos santos, em 28.11.20

Um dia destes vi o filme que tem o mesmo título do post (embora me pareça evidente, sei que a evidência é uma coisa muito subjectiva, de maneira que assinalo que escrever a frase assim é uma mera pequena piada irónica, claro que é o post que tem o mesmo título do filme mas convém exercitar sempre a capacidade de não nos levarmos muito a sério).

Trago-o aqui, não por ser um bom filme, que acho que é, mas por causa da cena em que a médica comunica ao doente o diagnóstico de uma doença grave, identificando-a. Claro que o doente não faz a menor ideia do que quer dizer o nome da doença e pede para lhe explicar o que significa esse diagnóstico. É a resposta da médica que me interessa trazer para aqui por ilustrar muito bem um corte epistemológico (este post dá-me um trabalhão por me obrigar a ir à wikipedia verificar se as palavras que uso servem para dizer o que quero) que convém ter em atenção na discussão da epidemia.

Para explicar o que é a doença, a médica cita um conjunto de dados estatísticos (ou seja, descreve as implicações da doença no nível epidemiológico, forçando um bocadinho a definição de epidemiologia) e depois remata dizendo que o doente não é uma estatística, é uma pessoa, portanto nada do que disse antes é determinístico (ou seja, retoma o plano da clínica, em que o caso é mais importante que a estatística).

A necessidade de separar decisões clínicas, isto é, que dizem respeito à pessoa em concreto que está à frente do médico, de decisões de gestão de epidemias, isto é, que dizem respeito às comunidades em que evolui um surto de uma doença, é a principal razão pela qual não é boa ideia ter médicos treinados essencialmente na prática clínica a influenciar excessivamente decisões sobre a gestão da epidemia e, parece-me, um dos maiores problemas sociais que temos enfrentado na gestão desta epidemia.

Para além disso há uma outra zona cinzenta da discussão que é ainda mais difícil de enquadrar de forma socialmente útil, exactamente por ser cinzenta.

"Pelo que leio e pela conversa que tenho com especialistas existe sempre uma relação parasita-hospedeiro que determina a dinâmica das infecções. Até porque é o hospedeiro que transporta e transmite o parasita. Esse dependerá sempre do comportamento do hospedeiro.
(Carlos Antunes)
Elementar, meu caro Watson. Pelo menos numa infecção que se transmite de pessoa a pessoa."

Isto que acabei de citar é um post de uma das minhas irmãs a que convém dar um bocado de contexto antes de procurar fundamentar a minha opinião de que estamos perante um tremendo equívoco. A parte inicial da citação é uma resposta de Carlos Antunes a umas objecções minhas sobre a importância que atribui às medidas não farmacêuticas na evolução da epidemia, discussão na qual levo anos de experiência, não com esta epidemia, mas com a questão das ignições no problema da gestão do fogo.

A afirmação de Carlos Antunes parece auto-evidente, elementar, como diz a minha irmã, mas na verdade é sobretudo uma demonstração de uma abordagem escolástica do problema, que vou procurar decompor.

É inteiramente verdade que é a relação parasita-hospedeiro que determina a dinâmica das infecções. É também verdade que é o hospedeiro que transporta e transmite o parasita. Digamos que estamos no ponto em que dizemos que sem ignições não há fogos e que as ignições resultam dominantemente da actividade humana (nas nossas condições).

O problema está no passo seguinte - o parasita dependerá sempre do hospedeiro - que poderemos descrever como "Portugal sem fogos depende de todos", a base ideológica para uma abordagem de gestão do fogo desastrosa.

Se as coisas fossem realmente assim, a lógica inatacável estaria, com certeza, demonstrada em dezenas de papers com avaliações empíricas da sua validade, usando o clássico modelo da observação, hipótese, experimentação e verificação independente.

O problema é que a experimentação destas hipóteses - a evolução da epidemia depende essencialmente do comportamento do hospedeiro, ou o padrão de fogo depende essencialmente do número de ignições - não só é particularmente difícil, como é contaminado por uma ideia absolutamente lógica mas, infelizmente, pouco demonstrada: a de que qualquer diminuição de contágios ou ignições tem tradução positiva na contenção dos efeitos negativos da epidemia ou do fogo.

Se para a epidemia não existe tempo suficiente para haver um sólido corpo de produção científica que demonstre que não é bem assim, existe para o fogo, e o simples facto de ser tão difícil demonstrar que as medidas não farmacêuticas têm o impacto esperado na evolução da epidemia é um fortíssimo indicador de a hipótese, sendo lógica, provavelmente não ser verdadeira.

Como escrevia há alguns meses alguém, é verdade que se em todo o mundo, ao mesmo tempo, durante quatro semanas, todos os contactos humanos cessassem, a actividade deste vírus desapareceria e, nesse sentido, é verdade que a actividade viral depende do comportamento do hospedeiro.

Só que esta é uma hipótese teórica sem qualquer interesse porque os efeitos negativos desta opção, em mortalidade, seriam várias vezes superiores aos efeitos negativos da doença e porque a sua execução é manifestamente impossível, quanto mais não fosse porque para obrigar toda a gente a ficar em casa seria preciso montar um sistema repressivo que obrigaria outros a sair de casa.

Ou seja, se quisermos sair de um pensamento escolástico, com primazia da lógica e da fé, para uma discussão política, isto é, uma discussão sobre o que é possível fazer na realidade que existe, não podemos dar como adquirido que é possível obter o resultado esperado pela alteração do comportamento do hospedeiro sem discutir os limites dessa opção.

Há um limite teórico que tem sido objecto de discussão: os hospedeiros não são todos iguais e a relação parasita/ hospedeiro não é uniforme, depende das condições externas aos dois que determinam a maior ou menor facilidade do parasita encontrar um novo hospedeiro, depende da susceptibilidade do potencial hospedeiro ao ataque do parasita e depende da forma como cada hospedeiro se relaciona com os potenciais hospedeiros.

Ou seja, tal como no fogo, o contexto e a heterogeneidade são condições contingentes que determinam grande parte da evolução do surto ou do fogo: uma ignição que ocorra hoje é irrelevante, porque não há condições para o desenvolvimento de grandes fogos, tal como um contacto parasita/ potencial hospedeiro pode ser irrelevante se as condições ambientais forem desfavoráveis para a actividade viral ou o potencial hospedeiro for pouco susceptível ou ainda se, sendo muito susceptível e por isso for infectado, se relacionar escassamente com outros potenciais hospedeiros susceptíveis. Pelo contrário, qualquer ignição nos doze dias do ano mais favoráveis ao fogo tem um potencial de provocar uma situação dramática como a de Pedrógão, tal como um contacto do parasita com um potencial hospedeiro altamente susceptível, que trabalha em condições ambientais favoráveis (entrepostos de frio, lares, dormitórios, fábricas) à difusão da infecção, rodeado de pessoas susceptíveis, pode dar origem a um surto, mesmo que os comportamentos dos hospedeiros e potenciais hospedeiros seja adequado à ameaça existente.

Há depois um limite prático para aplicação desta ideia, nunca vai ser possível cessar 100% dos contactos e diminuir parcialmente contactos, como Portugal diminuiu em um terço (O Paulo Fernandes corrigiu, Portugal reduziu para um terço do que era há uns vinte anos) o número de ignições, não resolve grande coisa porque um pequeno número de ignições é responsável pela maioria dos problemas, tal como um pequeno número de contágios, em alturas particularmente favoráveis à actividade viral - como foi a entrada do Outono na Europa - podem resultar no crescimento galopante do número de infecções, independentemente de reduções de contactos de 20, 30, 40 ou 70%.

Por estas razões, o que era elementar na citação acima não é, para mim, nada elementar e é um risco tremendo, com implicações reais na vida e morte de milhares de pessoas, adoptar medidas tremendistas com base em hiper-simplificações de problemas complexos, em vez de, prudentemente, verificar que há dinâmicas internas do surto que resultam na sua própria limitação e, consequentemente, adoptar medidas sensatas, equilibradas e calibradas pelos seus potenciais efeitos negativos noutros aspectos da nossa vida em comum, sabendo que nos faz falta humildade para perceber que a natureza não existe para que nós a estudemos, nós é que insistimos em estudá-la, forçosamente com resultados precários, o que nos obriga a avaliação permanente dos resultados, não os interpretando apenas com base na lógica, mas também com base nos factos verificáveis.


2 comentários

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De Anónimo a 28.11.2020 às 14:48

Então, e que fazer? 
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De balio a 28.11.2020 às 16:08


verificar que há dinâmicas internas do surto que resultam na sua própria limitação


Claro que sim, o problema é que nós não sabemos quando é que essa limitação virá.


Isto é, nós temos a certeza de que qualquer surto acabará, mas não sabemos quanta gente será infetada, durante quanto tempo, antes de ele terminar, e portanto não temos a certeza de que esse surto não vá causar enormes estragos.


Por exemplo, a Peste Negra na Europa também terminou, presumivelmente devido à sua própria dinâmica interna (porque nesse tempo não se conhecia quaisquer medidas eficazes para a fazer terminar), mas antes de terminar matou um terço da população.


O mesmo se passa com o covid-19, temos a certeza de que a atual epidemia passará, mas não sabemos se os danos que ela causará antes de passar não serão terríveis.

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