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Luz numa espécie de ruína

por José Mendonça da Cruz, em 16.06.22

Eu tive um grande amigo, uma cabeça privilegiada, que um dia, há mais de 50 anos – exatamente quando o meu Mini passava sobre o Viaduto Duarte Pacheco para nos levar não sei onde –, me explicou que no fim do curso de Direito ia para Padre. Assombroso quando vindo de quem seria sem dúvida um líder político de combate, com carisma, competência e ideias, ou um temível advogado de barra (provavelmente não um diplomata). Acabou com brilho o curso, e foi para padre. Teve uma vida notável e no outro dia morreu.

Eu olho à volta, para a bagunça subdesenvolvida do aeroporto de Lisboa, para o caos intencional e ideologicamente provocado no Serviço Nacional de Saúde, para a demanda incansável de nivelamento por baixo na educação, ouço as vacuidades com que se tenta mascarar a disfuncionalidade do país – temperada de cobardia, venalidade e propaganda, quando não da grosseria mais rasca – e lembro-me dos tristes suspiros moribundos do coronel Kurz, em Apocalipse Now, sobre a enorme força moral de um grupo dos seus inimigos: «Se eu tivesse uma divisão de homens assim esta guerra acabaria muito depressa». Se nós tivéssemos um batalhão de homens como o Padre João Seabra, o meu querido amigo João, este país mudava muito depressa para muito melhor.

Conheço de ter estado atento, e de algumas vezes ter sido beneficiário – e alguns memoriais inteligentes e comovidos refrescaram-me a memória – da obra do Padre João Seabra, mas este não é um obituário sobre um amigo de infância, o meu querido amigo João. Foi uma obra Cardeal, a dele – e no entanto nunca foi a Bispo. Nunca se queixou.

Conheci de perto o Colégio de São Tomás, que a minha filha mais nova frequentou desde a primária até ao 12.º ano. O São Tomás era um colégio católico e um colégio de exigência. Perguntei certa vez porque tinha ela que escolher como disciplina suplementar o Latim ou o Alemão. Explicou-me, para meu consolo e satisfação, que além de obterem novos conhecimentos (o Latim, sobretudo, digo eu, é um ginásio mental) os alunos ganham em aprender concentração e esforço.

Tento informar-me nos media que por aí há sobre como vai a Educação socialista. Pedem-me para atravessar, primeiro, uma barragem de ignorância e iliteracia: aprendo que há porta-aviões chineses que conseguem sobrevoar Taiwan; sei pela célula bloquista do insuspeito Observador que «Guterres encostou Putin à parede»; constato com surpresa que há muitas coisas que dantes alastravam e agora «alastram-se»; e aumenta a minha admiração pela raça equina ao saber pela Sic que, no jubileu de Isabel II, às tantas «foram os cavalos a assumir o protagonismo». E tudo isto é normal, pois ouvi há semanas na mesma Sic que «as autoridades insistem na possibilidade de poder haver» não sei quê em Mariupol. A possibilidade de poder haver disparates – como o de a CNN/Portugal anunciar na Quinta Feira Santa que o «Papa dá início à Semana Santa» – alastra-se.

Consigo, por fim, saber que no Ensino socialista não há professores, não há avaliação, nem destes, nem dos alunos, não há mérito e que o que é preciso é toda a gente ser ignorante e feliz. Aprendo que há uma derradeira inovação progressista que consiste em acabar com a matemática, porque, dizem, a abstração é tenebrosa. Há filósofos modernos que veem na matemática a nova filosofia. O socialismo, não. O socialismo ambiciona que as crianças contem peras e moedas de cêntimo; dependam do Estado e sonhem com «apoios» dele; tenham umas noções sobre os ganhos da raspadinha e uns rudimentos de contabilidade, 1 mais 1, 2, 2 mais 2, 4, coisas práticas e modestas, rabos de bacalhau basta.

A exigência do Colégio fundado e dirigido pelo Padre João Seabra não educava, nem formava apenas quem podia pagar; também formava e educava pro bono. Foi abrindo a muitos, que não pagavam, as portas do elevador social. O Colégio era de uma associação privada, e custava dinheiro e esforço mantê-lo. «Desculpa que estou cheio de pressa, vou ali ver se angario um milhão», disse-me ele certa vez à porta «das Conchas». Por vontade dos socialistas fechavam o colégio e o elevador. Mas o Colégio ficou, a continuar um trabalho magnífico.

Em casa do meu querido amigo João Seabra, ainda com 13 anos, ainda não Padre, rezava-se o terço a seguir ao jantar e citava-se muito – ele e o pai – os Maias, o Fradique, as Cartas. Eram capazes de citar parágrafos inteiros. Por exemplo: «A melhor prosa, a mais perfeita, a mais lúcida, a mais lógica, a que tem sido a grande educadora literária e tem civilizado o mundo, é feita com meia dúzia de vocábulos que se podem contar pelos dedos.» Ficou- lhe um nobre respeito pela clareza do discurso e das posições, a que os surdos chamavam brutalidade, e os cegos snobeira. Na esperança de obter afirmações claras com que chocassem as audiências e retratassem uma igreja insensível, algumas televisões convidavam-no. Enganaram-se sempre.

Falou claro e foi influente na defesa da vida na campanha do primeiro referendo sobre o aborto. Ganhou a vida. Foi discreto e obediente, provavelmente com dor, quando a igreja optou pela pusilanimidade no segundo, praticamente abandonando o campo aos defensores dos direitos do corpo e de tudo o que tenha dentro. Faz falta a voz clara e culta do Padre João Seabra para chamar falta de qualidade à falta de qualidade e bandalheira à bandalheira.

O SNS foi levado ao caos por socialistas, e pelas múmias e extremistas cuja passagem Costa franqueou ao derrubar um «muro de Berlim» ao avesso. (Olhem-nos agora a clamar que não tiveram nada a ver com isso!) Morre gente com consultas marcadas para um ou dois anos demasiado tarde, morrem bebés, grávidas no instante decisivo batem com a cara na porta, vítimas de «doenças fatais» sofrem mortes precoces por falta de assistência, as listas de espera somam anos, as esperas na fila somam horas. Os turistas esperam horas no Aeroporto de Lisboa, perplexos com a desorganização e a indigência, e uma inspetora diz que «francamente não estávamos preparados para ter turistas em Junho», no país que sobrevive de turismo e empréstimos. Pedro Nuno Santos aproveita para dizer, como ministro das Infraestruturas de 2050, da Habitação social que não há, e da Ferrovelhovia, que é preciso um aeroporto novo. E como ministro da TAP – que com Costa, o PC e o BE fez pública e destruiu a pretexto de a salvar – diz que se isto continuar vai desviar aviões para outros lados. Sobe a dívida pública, sobem os juros da dívida, disparam os custos da energia, sobe em flecha a inflação, sobem os impostos, afunda o défice da balança comercial, e o país empobrece.

E nunca se fala em gestão. E é sempre culpa de um imprevisto. E nunca se fala em competência. E nunca se fala em bom aproveitamento de recursos escassos. E nunca se fala de organização do tempo. E nada de produtividade.E menos ainda de uma fé e um programa. E menos ainda em inteligência. Tudo coisas sem as quais o Padre João Seabra não teria feito metade do que fez na vida.

Que assuntos importantes «convocam», então, governo e maioria socialista? Estes? Não. Outros.

O primeiro-ministro quer que os salários subam magicamente 20%.

A ministra da Saúde – que não esperava que a política dos extremistas, das múmias, sua e de Costa tivesse as consequências inevitáveis – diz que vai fazer um plano de contingência. «Contingência» é a qualidade daquilo que é contingente, um acontecimento eventual. Em pleno caos no SNS a ministra vai planear (eventualmente) para a eventualidade do caos no SNS.

No aeroporto e no SEF também se vão fazer «planos de contingência» para a eventualidade improvável de aterrarem aviões trazendo pessoas dentro.

A ministra do trabalho – com um brilho de entusiasmo nos olhos e uma expressão alacre verdadeiramente assustadores – diz que o governo vai ser «pioneiro» a nível «mundial» da «semana dos 4 dias».

A ministra da Defesa diz que «estamos a perspetivar para o futuro a possibilidade de dar treino a tropas ucranianas», uma frase que bate em vacuidade a de um pobre repórter da Sic que anteontem, nesse persistente maravilhamento com Costa, imaginava Portugal a «servir de ponte entre a Inglaterra e a União Europeia».

E no Parlamento maioria e oposição debatem como melhor suicidar velhos e doentes.

Curioso! O Padre João Seabra (e o Papa João Paulo II, acrescento) teriam algumas coisas interessantes a dizer a esses cultores do «corpo digno» que tanta energia gastam em apressar a morte no princípio e no fim da vida.

A mente privilegiada do meu querido amigo João Seabra viveu anos incólume dentro de um corpo disfuncional, vítima de «doença incurável», humildemente, pacientemente, cristãmente, produtivamente. Irritei-me com ele só uma vez na vida, quando coincidimos por acaso numa praia e fui conversar com ele, já bastante debilitado. Depois, quando me levantei disse-me «Obrigado». «Obrigado?!», disse eu, «não deves estar bom da cabeça!»

Estou contente por ter dito aquilo.

Há poucos anos, na apresentação da sua biografia, João Seabra À Sua Maneira, o meu amigo João ralhou com os autores, em público e perante considerável  audiência, por não me incluirem na história. Eu não tinha lido o livro e pareceu-me aquilo escusado, como garanti aos autores, ainda que os lados menores que a gente tem rejubilassem vilmente com aquela prova de amizade. É que eu nunca fui companheiro do meu querido amigo João na militância monárquica ou política, e a minha vida deu muitas voltas bem distantes da fé forte que o animava. Éramos só grandes amigos, que é uma coisa que há.

Há poucos meses, o João deixou-me uma pérola escrita. Aconteceu que os confinamentos forçados por causa do virus; um terço de vez em quando e depois diariamente por discreta e amorosa pressão da minha mulher; e, durante esses terços diretamente de Fátima, a voz extraordinária e a tristeza infinita no rosto do Padre Quelhas; e as homilias redentoras do dominicano Frei Filipe, no computador e depois ao vivo – tudo isso me trouxe devagarinho de volta à Igreja. Julguei que o meu amigo João ia gostar de saber, e escrevi-lhe por SMS: «Talvez gostes de saber…» E concluía que ia comungar no domingo.

Respondeu-me o meu querido amigo Padre João Seabra, acabado de vir de Fátima, com «gratidão à Virgem Mãe que me concede esta graça enorme do teu reencontro com Jesus. Comove-me cada passo. Mostra a paciência de Deus».

E eu lembro-me que não sou digno.


12 comentários

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De balio a 16.06.2022 às 10:58

Eu tive um tio, homem de enorme valor, que nasceu pobre numa aldeia perto de Paços de Ferreira e veio em adolescente para o Porto, em restaurantes do qual exerceu todos os serviços que se pode exercer num restaurante, desde limpar o chão até cozinhar e servir à mesa, até que conseguiu amealhar dinheiro e fundar (com um sócio) o restaurante "Abadia", ainda hoje um dos mais afamados do Porto. E disse-me esse tio um dia, precisamente há cerca de 50 anos, que em Portugal havia duas profissões em que se podia enriquecer sem fazer nada de préstimo, e elas eram "político" e "padre", conforme ele disse e eu escutei, sem entender.
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De Anónimo a 16.06.2022 às 11:50

Baliu inevitavelmente um homem pequenino e ressentido lavrando o seu próprio retrato.
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De Fernando Antolin a 16.06.2022 às 21:02

Ao seu tio, certamente, faltou em certa medida o valor do bom senso, generalizando a duas categorias de pessoas, uma opinião digna do mais burgesso dos indivíduos.
E você, inevitavelmente, lá veio oferecer-nos tal "pérola" . 
Que tristeza
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De Anónimo a 17.06.2022 às 19:19

Uma texto maravilhoso _uma autêntica pérola literária_  foi dada a ler ao Balio. Que desperdício, pois foram pérolas a porcos!

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