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Jornalismo

por henrique pereira dos santos, em 29.04.22

Quando uma das minhas filhas andava pelo circuito mundial de surf (qualifying, não a primeira divisão), viajava muito para longe, felizmente com o dinheiro dos patrocinadores (que tinha de dividir com um contabilista, para ter contabilidade organizada que lhe permitisse descontar as despesas, ou tinha de dividir com o Estado, impostos e segurança social, porque o Estado considerava o dinheiro que recebia como rendimentos livres de obrigações).

Aconteceu que numa noite em que eu sabia que ela viajava do Dubai, ou coisa do género, para Singapura, ou coisa do género, eu tinha uma reunião longe de Lisboa e entrei no carro a tempo de ouvir o notíciário das seis da manhã, em que davam notícia de que um avião, que tinha saído do mesmo sítio que o dela, tinha caído no oceano Pacífico.

Como sempre tive a ideia de que as más notícias viajam de forma quase instantânea, segui o princípio que o meu pai repetia frequentemente - no news, good news - e fui andando, embora preocupado com a necessidade de ser o primeiro a falar do avião caído à minha mulher, o que só poderia fazer depois de ter a certeza de que não seria o da minha filha (como realmente não era, vim a saber depois).

Durante quatro horas fui ouvindo todos os notíciários de todas as rádios que consegui apanhar, sempre à espera de uma informação que, desde o princípio, estava disponível mas nenhum jornalista achou relevante: qual era o destino do avião.

Dou muitas vezes esta história como exemplo de um mau jornalismo, incapaz de se pôr na pele do destinatário da informação.

Hoje, ao ouvir a rádio Observador, nuns programas de entretenimento que por lá existem, em que vários jornalistas conversam entre si como se estivessem no café, a falar dos seus cães e a dizer private jokes, tendo como pretexto de fundo o que aparece nos jornais e chamam actualidade, ouço Filomena Martins a falar de uma conferência de imprensa de um bispo, que a tinha incomodado muito.

Com o ar muito leve, de quem está a dizer coisas óbvias - uma boa parte destes jornalistas ainda não sabem que o óbvio é muito subjectivo - indigna-se com o facto do tal bispo não aceitar sequer discutir o estatuto jurídico do segredo da confissão, que o tal bispo (como toda as igrejas, suponho, apesar de Filomena Martins dizer que na Austrália a Igreja, não sei qual, aceita discutir isso) considera inviolável.

Até aqui, nada de especial, apesar de não ser preciso ser cristão para perceber a relevância da inviolabilidade desse segredo.

Faz parte da mesma arrogância jacobina que programa, na televisão do Estado, "A vida de Brian" para uma Sexta Feira Santa. Já agora, esse facto, e a ausência de reacções relevantes por parte dos cristãos e da Igreja Católica, demonstra que os católicos, em Portugal, evoluíram muito na convivência com o direito de terceiros a rir-se das suas convicções. Mas também demonstra que os jacobinos não evoluíram nada e continuam a achar que rir-se de convicções religiosas de terceiros é uma grande coisa, mesmo que hoje não só não represente qualquer risco e possa até ser considerada uma sinalização de virtude, por grande parte da sociedade. Por isso ainda acham irrelevante ter o bom senso de ter respeito pelos outros, tal como eles são.

O caldo entornou-se quando Filomena Martins, do alto do seu achismo sobre coisas sérias, resolve dizer que, ao contrário do que disse o tal bispo na conferência de imprensa, era crime não denunciar um crime de que se tenha conhecimento, mesmo no caso de médicos, advogados e outros que estão cobertos pelo segredo profissional.

O que me acendeu uma luz encarnada não foi tanto disparate por parte de Filomena Martins (pode alguém ser quem não é?), mas a voz de fundo de Paulo Ferreira, esse sim, um jornalista ponderado e que fundamenta o que diz, a concordar como um "é óbvio", quando Filomena Martins diz este disparate monumental.

O que está a ser considerado óbvio é que uma mãe passa a ser criminosa por não denunciar um filho que acaba de lhe revelar que cometeu um crime (note-se que guiar com mais de não sei quanto de alcool é um crime, mas vamos admitir que estavam apenas a pensar no exemplo de Filomena Martins dizer ao seu marido que tinha matado o vizinho da frente).

Não só não é crime, como não existe qualquer obrigação legal de denúncia de um crime de que tenha conhecimento, com uma ou duas excepções (as dos funcionários que tenham conhecimento de um crime no âmbito das suas funções e por causa delas ou as entidades policiais).

Mais extraordinário ainda é que uma jornalista tenha esta ideia de criminalização da não denúncia de um crime, quando, por razões evidentes (estas não são apenas óbvias, são mesmo generalizadamente evidentes) os jornalistas são um dos grupos profissionais abrangidos pelo artigo Artigo 135.º do Código Penal - "Segredo profissional 1 - Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos."

Este artigo diz apenas respeito a testemunhos em tribunal mas, por maioria de razão, isenta estas pessoas da obrigatoriedade de denunciar crimes de que tenham conhecimento.

O que me leva ao editorial do Público de hoje, que me parece demonstrar que um problema de base no jornalismo que temos é mesmo a desorientação moral: "Suportar as idiotices da mundivisão de Bolsonaro ou de Trump não é nada demais; deixar que eles mintam em nome da liberdade e criem robôs para propagar essa mentira por milhões de pessoas, não é liberdade: é a pior das prisões", diz o director de um jornal que pretende ser o farol da imprensa portuguesa.

Quando a generalidade do jornalismo - com certeza há excepções - não sente visceralmente o apelo da liberdade ao ponto de perceber que a liberdade de mentir e propagar a mentira é um risco incomparavelmente menor que o risco de ter uma instância, qualquer que seja, que certifica o que é verdade ou mentira, é a altura de nos preocuparmos mesmo com o jornalismo que por aí se produz.

A primeira história é um exemplo de um jornalismo alienado, a segunda história é um exemplo de jornalismo negligente e moralmente falido, a última referência ajuda-nos a perceber que o problema não é verdadeiramente do jornalismo, é nosso, somos nós que não temos um campo comum de respeito por valores intuitivamente apreensíveis pela generalidade das pessoas comuns, começando pelo reconhecimento do valor intrínseco da liberdade, sem mas nem condições. 


14 comentários

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De balio a 29.04.2022 às 16:26


a liberdade de mentir e propagar a mentira é um risco incomparavelmente menor


Depende de quais sejam as consequências expectáveis da mentira propagada.


Um caso que se discutiu (a propósito dos limites à liberdade de expressão) no Supremo Tribunal dos EUA foi o caso (inventado) de uma pessoa que decide pôr-se aos gritos "Fogo! Fogo!" num teatro cheio de gente. É claro que essa mentira cria um alarme que pode levar toda a gente a pôr-se a fugir em pânico, causando um atropelamenteo enorme e mortes.


Portanto, sim, em geral deve-se poder propagar uma mentira, mas pode haver limites, se fôr previsível que essa mentira leve a um alarme que cause, ainda que indiretamente, vítimas.

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