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Incerteza e precaução

por henrique pereira dos santos, em 18.09.20

tabela OMS.jpg

Esta tabela está no sumário executivo desta publicação "Non-pharmaceutical public health measures for mitigating the risk and impact of epidemic and pandemic influenza", de 2019.

É apenas uma publicação da OMS, não é uma norma política da OMS, mas tem duas vantagens: 1) é de 2019, portanto recente, mas anterior à covid; 2) no essencial, resume o que se sabia sobre medidas não farmacêuticas antes desta epidemia, sendo consistente com o resto da informação científica produzida sobre o mesmo assunto.

Para o que vou escrever a seguir, o que interessa é reter dois pontos: a) o conjunto de medidas disponíveis devem ir sendo usados em função do risco que se conhece; b) a generalidade das medidas não farmacêuticas têm efeitos secundários que devem ser adequadamente ponderadas no momento da tomada de decisão.

Recentemente vi uma discussão por causa de uma afirmação simples de uma pessoa - é impressionante como a generalidade das abordagens actuais se vão aproximando do que André Dias defendeu em Março - e como acontece sempre que se fala de André Dias, a afirmação foi contestada, começando por uma deselegante piada sobre o facto de não dizer só asneiras, e evoluindo para um rol de coisas erradas que André Dias terá dito.

Um dos argumentos, para demonstrar como André Dias quase só dizia disparates, é o de que previu dez mil mortos em Itália. Sei bem o contexto dessa afirmação, foi um palpite assumido como tal, com base numa interpretação das curvas de casos positivos e mortos existentes na altura, e não me lembro se logo nessa altura, ou uns dias depois, André Dias admitia perfeitamente vinte mil mortos (na verdade admitiu 40 mil, como num ano muito mau de gripe, mas vamos saltar por cima disso). Fiquemos então pela previsão de dez mil mortos, que a realidade quadriplicou (na verdade ainda não se chegou aos 40 mil, mas saltemos outra vez por cima disso).

Portanto, um erro do simples para o quádruplo é a demonstração de que André Dias sempre disse só disparates.

Claro que na discussão se omitiu o facto de, na mesma altura, os modelos usados para tomar decisões sobre a gestão da epidemia preverem 400 mil mortos para Itália, ou seja, dez vezes mais que a realidade.

Primeiro aspecto relevante: André Dias estava mais próximo da verdade ao prever uma dimensão dos efeitos desta epidemia na ordem de grandeza de uma gripe má, que os governos e autoridades que tomaram decisões com base na ideia de que esta epidemia teria efeitos dez vezes pior que os de um ano de gripe mau.

Ao olhar para a tabela acima percebemos imediatamente o efeito desse erro de percepção: a serem sólidas as previsões que André Dias, com razão, contestou, talvez se justificassem medidas bem mais disruptivas que as que deveriam ser adoptadas no caso de estarmos perante uma epidemia com um grau de severidade moderado.

Na verdade esta é uma das bases da diferença de abordagem sueca, é absurdo dizer que a Suécia teve uma abordagem laxista da epidemia, a Suécia teve uma abordagem do mais clássico que há, com medidas não farmacêuticas adequadas ao grau de severidade que se poderia esperar, tendo uma mortalidade bem maior que a esperada por causa de um factor crítico para a mortalidade: a protecção dos lares de terceira idade (ainda estou para ouvir algum dos responsáveis por este vento de loucura em Portugal admitir que este ou aquele aspecto correu mal, como já vi suecos, no caso dos lares, ou noruegueses a admitir que terá sido um erro o fecho de escolas).

O segundo aspecto relevante é de que o que a melhor informação disponível na altura dizia é que nunca, em qualquer circunstância, deveriam ser adoptadas medidas como quarentena de pessoas expostas a doentes, fecho de fronteiras e traceamento de contactos.

Mesmo o fecho de escolas e de locais de trabalho só em circunstâncias excepcionais se deveriam considerar (e ponderando os seus efeitos negativos).

Pois bem, a generalidade das autoridades de saúde não só adoptaram medidas que a ciência não suporta, como foram muito mais longe ao decretar lockdowns nunca testados e que esta epidemia também não demonstra terem tido efeitos positivos proporcionais aos efeitos negativos decorrentes dessas medidas.

Em lado nenhum, nem mesmo na Lombardia, Madrid, Nova York ou a Bélgica se chegou a circunstâncias extraordinárias, a demonstração disso é que a mortalidade foi relevante, mas sem atingir valores estratosféricos, sendo rapidamente controlada.

Eu sei que o argumento é o de que isso só foi assim porque foram tomadas as medidas radicais.

Mas quando se pergunta por que razão a intensidade de ataque foi maior nessas zonas que em zonas vizinhas, a resposta é que as medidas foram tomadas demasiado tarde para terem o efeito que deveriam. Se aceitamos este argumento para explicar variações regionais de incidência (e, consequentemente, de mortalidade) não podemos aceitar o argumento de que as medidas tiveram o efeito pretendido para explicar a paragem da mortalidade ao fim de algumas semanas, como seria de esperar a partir das abordagens clássicas.

Acresce que mesmo nos países em que ou não houve medidas coercivas radicais - como na Suécia - ou em que houve medidas coercivas radicais cuja aplicabilidade prática é questionável, como o Peru - um dos países com medidas mais radicas e mais no início da epidemia e, simultaneamente, um dos países com maior mortalidade relativa, só ultrapassado pela Bélgica - e em diferentes regiões de países com as mesmas medidas e resultados díspares, nunca se conseguiu demonstrar que o que parou a epidemia foram as medidas não farmcêuticas, e muito menos se consegue saber o que funcionou ou não (França tem sete dias de quarentena, nós temos 14 e não conseguimos saber o efeito dessa diferença, por exemplo).

Ou seja, a abordagem clássica à epidemia - no fundo, a que está na tabela do início - associada à adequada ponderação da incerteza associada a quaisquer projecções, em especial no início de uma epidemia associada a uma doença desconhecida - outras das coisas para as quais André Dias chamou insistentemente a atenção em Março - provavelmente produziriam resultados muito semelhantes do ponto de vista da epidemia, como implicações totalmente diferentes na economia e na sociedade (qualquer epidemia que seja entendida pelas pessoas comuns como uma ameaça pessoal, e esse é o caso desta, teria efeitos negativos na economia visto que as nossas sociedades se baseiam na confiança entre todos: nós cruzamo-nos permanentemente com desconhecidos na rua mas confiamos que não nos vai matar).

O barulho que continua a ser feito hoje, a propósito das escolas, é, por isso, uma barbaridade e não tem na base uma adequada ponderação do risco.

Quando Manuel Carmo Gomes - que é muito influente na forma como as autoridades têm tratado disto tudo - diz "As escolas preocupam-me seriamente, receio que se possam tornar o próximo epicentro da epidemia. Quando detectamos um caso numa escola, pode haver já mais dez casos assintomáticos a circular, os quais já tiveram tempo para espirrar para fora da escola", exactamente antes da abertura do ano escolar, está a ser irresponsável e claramente a violar as recomendações existentes para a gestão de epidemias com base em medidas não farmacêuticas: o que se sabe hoje da severidade da epidemia desaconselha completamente o fecho de escolas.

Vamos por partes na análise desta afirmação.

1) Manuel Carmo Gomes está a partir do princípio de que se não houver escolas, o padrão de mobilidade e interacção dos alunos entre eles, fora de contexto escolar, tem uma influência radicalmente diferente na epidemia. Infelizmente ninguém pergunta a Manuel Carmo Gomes o que pensa que fazem os alunos quando não há escola e se a circulação do vírus na sociedade não é já suficientemente alargada para que as escolas não tragam nenhuma alteração relevante;

2) Ainda que Manuel Carmos Gomes parta desse princípio teórico, é estranhíssimo que se fique pela análise teórica do problema e não use a informação proveniente dos outros países que têm (alguns sempre tiveram) escolas em funcionamento há meses. Infelizmente não há jornalista que lhe pergunte por que razão não dá crédito à experiência existente sobre a matéria;

3) Mas ainda que Manuel Carmo Gomes tenha razão total nas questões relacionadas com a gestão da epidemia, por que razão não valoriza os efeitos negativos associados ao fecho de escolas, que estão abundantemente descritos na literatura? Em que medida diminuir os contágios tem um efeito socialmente mais positivo que ter os miúdos a fazer a sua vida normal na escola, o que implica ter os pais a fazer a sua vida normal no trabalho? Por que razão omite a adequada ponderação de efeitos e parte directamente para um alarmismo absurdo?

Eu não sei, como também não sei bem por que razão a OMS e as autoridades públicas de saúde resolveram fazer tábua raza da informação que elas próprias tinham produzido antes a propósito da utilização de medidas não farmacêuticas na gestão de epidemias.

Os políticos eu percebo: perante uma comunicação sensacionalista por parte da OMS, de uma parte relevante da comunidade científica, de uma imprensa histérica e das autoridades de saúde, do que resultou acrescentar medo e incerteza à natural incerteza e medo associada a uma epidemia de uma doença nova, a generalidade dos políticos não tem muita liberdade de decidir, porque não há ganho político em correr os riscos que correram as autoridades de saúde suecas, e não há perda política se tudo correr mal, desde que se consiga passar a percepção de que se fez tudo o que era possível.

O que não percebo é a forma como pessoas treinadas para gerir incerteza e precaução acharam que inventar soluções não testadas era uma boa maneira de gerir uma situação de incerteza e risco.

Isso eu não percebo.


22 comentários

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De voza0db a 19.09.2020 às 20:54


Ah... é isso! "contas através de eleições"! Extraordinário...


Não se é negacionista sobre a existência de algo se nunca foi demonstrada a sua existência!


Mas deixa isso para lá! Continua a votar.

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